terça-feira, 9 de abril de 2019

O conceito de Povo segundo o Papa Francisco e suas implicações


Foi apresentado, na tarde do dia 8 de abril, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, o livro “Il Popolo secondo Francesco – una riletura ecclesiologica” (O povo segundo Francisco – uma releitura eclesiológica), do padre Walter Insero, diretor do Departamento de Comunicação Social da Diocese de Roma, uma edição da Livraria Editora Vaticana (LEV).
Estiveram presentes o Padre Dariusz Kowalczyk, decano da Faculdade de Teologia, o Cardeal Angelo De Donatis, vigário geral do Santo Padre para a diocese de Roma, o Padre Juan Carlos Sacannone, professor de filosofia e teologia na Universidade USAL de São Miguel, na Argentina (e foi professor de grego e literatura do jovem Jorge Mario Bergoglio, depois da sua entrada no noviciado dos jesuítas), que participou por videoconferência, e Dom Dario Vitali, professor de eclesiologia na Faculdade de Teologia. O encerramento esteve a cargo de Frei Giulio Cesareo, editor da LEV, e Stefania Falasca, jornalista do jornal “Avvenire foi a moderadora.
Desde a sua saudação do Balcão das Bênçãos da Basílica de São Pedro, o recém-eleito Papa Francisco quis destacar esta dimensão essencial, “E agora iniciamos este caminho: Bispo e Povo”, chancelada pelo seu pedido de oração antes de dar a Bênção e reiterada, depois, na entrevista à revista La Civiltà Cattolica, quando disse:
A imagem da Igreja de que eu gosto é a do santo povo fiel a Deus que, é a definição da Lumen gentium.
A expressão “Povo de Deus” é glosada no capítulo II da “Lumen gentium”, Constituição Dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II; e perpassa (também na forma abreviada “Povo”) a Exortação Apostólica “Evangelii gaudium, considerada o documento programático do seu Pontificado. Ora, vem agora este livro a evocar as raízes deste caminho e o contexto da formação de Francisco no atinente à importância desta “categoria” também a nível pastoral.
Para o Cardeal Angelo De Donatis, vigário do Papa para a diocese de Roma, que falou durante a apresentação, sublinhando a exortação de Francisco aos pastores a colocarem-se “diante, no meio e atrás do povo para que ninguém se perca”, “a categoria de povo não adere a um esquema lógico ou ideológico”. Disse que “Povo” é uma categoria mística e que, para o compreender, “devemos estar imersos nele”.
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Em curta entrevista ao Vatican News, o Padre Walter Insero, referiu que “O povo segundo Francisco” pretende mostrar quão central é o povo de Deus na sua reflexão, sendo um caminho que tem as suas raízes profundas no Concílio. Com efeito, o Papa reporta-se precisamente ao Capítulo II da Lumen gentium.  E o autor explicou:
Os bispos que haviam participado do Concílio Vaticano II, quando regressaram às suas igrejas na América Latina, e especialmente na Argentina, quiseram traduzir a mensagem. Fá-lo-ão graças a uma comissão pastoral, a COEPAL, que trabalhará graças ao documento de São Miguel, que permitirá levar à Igreja argentina a mensagem da Assembleia Geral de Medellín de 1968. Isso para dizer que existe todo um quadro, um contexto a ser considerado.”.
É, pois, neste contexto que Bergoglio cresce e se forma, o dos “Pastores que vivem esta experiência, os bispos que viveram o Concílio e testemunham esta proximidade com o povo”. E o jesuíta, hoje Sumo Pontífice, assume a categoria de povo e restabelece-lhe a centralidade, “considerando que o povo expressa a ideia de um Deus que chama e reúne o povo”. A Igreja, que o Papa Francisco gosta de testemunhar, “é o fiel santo povo de Deus”, ou seja, “o povo de Deus que caminha na história”. Na verdade, Francisco “é um bispo do povo porque sempre viveu dentro do povo a sua missão”. Assim, “não olha para a Igreja de cima para baixo, mas reconhece-se como membro, como participante deste povo”.
Comentando o desataque dado pelo Cardeal Angelo De Donatis à importância de fazer evangelização com o povo, o autor do livro advertiu para o risco que a cada passo nos surpreende e para o que é imperioso assumir em conformidade com o conceito de povo:
O risco é pensar em iniciativas que tenham o povo como destinatário, como objeto, mas não como protagonista. E, em vez disso, o povo é o sujeito ativo, todo o povo, portanto, não só a hierarquia, mas a hierarquia faz parte do povo. E o povo como um todo evangeliza, testemunha e também os pobres e as pessoas que vivem a fé de maneira simples são aqueles que podem realmente transmiti-la.”.
Questionado se Francisco, na última Exortação Apostólica pós-sinodal, a “Christus vivit, ao exortar os jovens a que, vendo um sacerdote que enveredou pelo caminho errado, ousem ajudá-lo e recordar-lhe o seu compromisso com Deus e com o povo, isso resulta da sua conceção do povo de Deus como um corpo, Insero anuiu e relacionou este apelo com a sinodalidade eclesial:
Onde o povo participa, partilha com o sacerdote que vive como irmão, certamente como um padre, mas esta proximidade não só não cria juízo, mas não cria distância, de modo que mesmo aqueles que estão em dificuldade podem sentir a necessidade de serem apoiados. Isto é lindo porque indica precisamente um caminhar juntos.”.
Por fim, a pedido de quem entrevistou, Walter Insero revelou o que o levou a escrever o livro: a gratidão pela experiência e testemunho de Francisco, bem como o desejo de conhecer melhor alguns gestos e algumas expressões suas. E confessou:
Estudando e buscando o quadro teológico, depois vendo as origens e a experiência pastoral que ele viveu na Argentina, pude realmente apreciar e compreender melhor os desafios que, através da Evangelii gaudium e de outras exortações, o Papa dirige à Igreja universal.”.
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O “L’ Osservatore Romano”, órgão oficioso da Santa Sé, faz larga referência ao livro vincando a sua função de ilustrar a realidade mistérica da Igreja, a partir do capítulo II da Lumen gentium, com a conceção da comunidade eclesial como o povo que Deus constitui. Com efeito, ao apresentar aos fiéis na Praça de São Pedro o ciclo de catequeses sobre a Igreja nas audiências gerais das quartas-feiras, o Papa frisou:
É um pouco como um filho que fala da própria mãe, da própria família. Falar da Igreja é falar da nossa mãe, da nossa família.”.
Já lembrara aos cardeais, na predita celebração da Missa (2013.03.14)o que reitera a cada passo:
A Igreja não é uma instituição voltada para si mesma ou uma associação privada, uma ONG, nem deve restringir seu olhar para o clero ou para o Vaticano. (…) É uma realidade muito mais ampla, que se abre para toda a humanidade e que não nasce em laboratório (…), fundada por Jesus, mas é um povo com uma longa história às suas costas e uma preparação que se inicia muito antes do próprio Jesus.”.
Parte da pré-história da Igreja, das páginas do Génesis dedicadas à vocação de Abraão: Deus não o chama  sozinho como indivíduo, mas envolve toda a sua parentela. Pede-lhe que parta e se ponha a caminho para outra terra que lhe indicaria mais tarde. E verifica o Papa:
Uma vez no caminho – sim, assim começa a caminhar a Igreja – então Deus ampliará novamente o horizonte e recompensará Abraão com a sua bênção, prometendo-lhe uma numerosa descendência como as estrelas do céu e como a areia que está na praia”.
A partir da vocação do Patriarca, Deus manifesta seu projeto: “formar um povo abençoado por seu amor e que leve sua bênção a todos os povos da terra”, um projeto imutável e sempre ativo que, em “Cristo teve o seu cumprimento e ainda hoje Deus continua a realizá-lo na Igreja”.
Assim, na predita homilia, Francisco destacou o dinamismo que deve caraterizar a experiência da Igreja no tempo, expressando-a com três verbos retomados da liturgia da Palavra do dia:
Na primeira leitura o movimento no caminho; na segunda leitura, o movimento na edificação da Igreja; na terceira, no Evangelho, o movimento na confissão. Caminhar, edificar, confessar”.
O Pontífice, ciente das dificuldades e fraquezas do caminho da Igreja na história, reconhece que, ao caminhar, edificar e confessar, às vezes há turbulências, movimentos que não são movimentos do caminho, mas que nos puxam para trás. Por isso, adverte:
Quando caminhamos sem a Cruz, quando edificamos sem a Cruz e quando confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor”.
O primeiro dado a destacar é que “Deus forma um povo para que traga a sua bênção a todas as famílias da terra” e desse povo nasce Jesus; o segundo é que não é Abraão que constitui um povo em torno de si, mas é Deus que toma a iniciativa e dá vida a esse povo. E “esse é o início da Igreja e nesse povo nasce Jesus” – diz o Papa.
Como fez com o seu povo, ao longo de toda a história da salvação que pode ser sintetizada como “a história da fidelidade de Deus e da infidelidade do povo”, o Senhor “continua a educar e formar o seu povo” acima de tudo “caminhando connosco” e “é a mesma atitude que mantém a respeito da Igreja”. Por conseguinte, para Francisco, ser Igreja é sentir-se nas mãos de Deus, que é pai e nos ama, nos acaricia, nos espera, nos faz sentir a sua ternura”.
Para formar um povo portador da bênção a todos os povos da terra, Deus “prepara este povo na Antiga Aliança até que, em Jesus Cristo, o constitua sinal e instrumento da união dos homens com Deus e entre si”. E o Papa realça a imprescindibilidade da pertença do cristão a esse povo:
Não estamos isolados e não somos cristãos numa base individual, cada um por sua conta. Não, a nossa identidade cristã é pertença! Somos cristãos porque pertencemos à Igreja.”.
Esta pertença não é um dado secundário, pois é “expressa também no nome que Deus atribui a si mesmo”, quando lemos que Deus responde a Moisés definindo-se “o Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob”, não um deus dos lugares, mas um Deus em relação com as pessoas.
Francisco, partindo dessa origem de pertença do cristão ao povo da aliança, frisa que “ninguém se torna cristão por si mesmo” e “não se fazem cristãos em laboratório”, mas “o cristão é parte dum povo que vem de longe, pertence a um povo que se chama Igreja e esta faz dele um cristão pelo Batismo e, depois, no percurso das catequeses e assim por diante. Assim, a Igreja é “uma grande família em que somos acolhidos e aprendemos a viver como crentes e como discípulos do Senhor Jesus” – caminhada que pode ser vivida “só graças a outras pessoas” e “junto com outras pessoas”. E, numa das catequeses em que descreve a realidade da Igreja, o Pontífice, expressando a sua reflexão sobre o que significa ser um povo de Deus, assegura:
Deus não pertence a nenhum povo de maneira isolada, porque é ele quem nos chama, nos convoca, nos convida a fazer parte do seu povo. E esse convite é dirigido a todos, sem distinção, porque a misericórdia de Deus ‘quer a salvação para todos’.” (1Tm 2,4).
Consequentemente, na ótica de Bergoglio, ser Igreja “significa ser o Povo de Deus, de acordo com o grande projeto de amor do Pai”, e ser “fermento de Deus no meio da humanidade”. E, no atinente à vertente soteriológica, na Evangelii gaudium, referindo-se ao número 36 da Gaudium et spes, o Papa argentino acrescenta:
Essa salvação, que Deus realiza e que a Igreja anuncia alegremente, é para todos”.
Mercê dessa visão universal, reunindo um povo, Deus delineou um caminho “para nos unirmos a cada um dos seres humanos de todos os tempos” e “atrai-nos levando em conta a complexa teia de relações interpessoais que a vida em uma comunidade humana comporta”. Sendo a Igreja “esse povo que Deus escolheu, convocou e reuniu”, ela é chamada a ser luz, sal e fermento no mundo; e Francisco estende o convite a todos para que sejam isso.
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O cap. II da Lumen gentium, já referido, fala efetivamente do “Povo de Deus” e começa por referenciar a Nova Aliança com o novo Povo de Deus dizendo:
Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente. (…) Escolheu, pois, a nação israelita para Seu povo e com ela firmou uma aliança (…) – preparação e figura da nova e perfeita Aliança que em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais completa que seria transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne. (…) Esta nova aliança instituiu-a Cristo, o novo testamento no Seu sangue (cf 1 Cor 11,25), chamando o Seu povo de entre os judeus e os gentios, para formar um todo, não segundo a carne mas no Espírito e tornar-se o Povo de Deus.”.
Prosseguindo, refere:
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, ‘o qual foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado por causa da nossa justificação’ (Rm 4,25) e, tendo agora alcançado um nome superior a todo o nome, reina glorioso nos céus. E condição deste povo a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como num templo. A sua lei é o novo mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou (cf Jo 13,34). (…) Por último, tem por fim o Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser também por ele consumado no fim dos séculos, quando Cristo, nossa vida, aparecer (cf Cl 3,4) e ‘a própria criação for liberta do domínio da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus’ (Rm 8,21).”.
Por fim, assegura:
Por isso é que este povo messiânico, ainda que não abranja de facto todos os homens, e não poucas vezes apareça como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o género humano o mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido por Cristo como comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também por Ele assumido como instrumento de redenção universal e enviado a toda a parte como luz do mundo e sal da terra (cf Mt 5, 13-16).”:
E este povo, na igualdade, pratica um sacerdócio comum – Cristo fez do novo povo um ‘reino sacerdotal para seu Deus e Pai, que incessantemente se oferece com Cristo ao Pai por si e por todos os homens redimidos por Cristo – e, pela diferenciação, instituiu o sacerdócio ministerial ao serviço do perdão dos pecados e da Eucaristia (presidência da celebração e consagração do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Jesus alimento da comunidade dos homens peregrinos e cimentação da Igreja), sendo que os dois se encaminham um para o outro e se realizam nos sacramentos. Por outro lado, no quadro do sentido da fé e dos carismas, o Povo santo de Deus participa “da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome”, sendo que “a totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo não pode enganar-se na fé”.
Além disso, o Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas, “distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz” distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja na sólida, unitária e diversidade dinâmica odegética.
Com toda esta força anímica e movido pelo dever de não silenciar o mistério de Deus e de testemunhar o seu desígnio de salvação para todos os homens, este Povo, a que todos são chamados, assume-se como em missão permanente em todo o tempo e lugar; e, pela razão vocacional de se estender a toda a parte, a todos e a cada um, sem proselitismo, mas em diálogo respeitador, sente em si as marcas da catolicidade e da universalidade. Por outro, lado enquanto crê na necessidade instrumental da Igreja para a salvação, sente-se impelido a reforçar os seus vínculos com os cristãos não-católicos, em razão do único Batismo e numa arejada e crescente perspetiva ecuménica; na saudável relação com os não cristãos, na linha do diálogo inter-religioso; e no acolhimento aos não crentes e no diálogo com eles – tudo em prol da paz e da preservação da Casa Comum e na demanda do mesmo fim último.
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É esta a abertura a todo o mundo, é o estabelecimento de pontes que unem e dão passagem!
2019.04.09 – Louro de Carvalho

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