Quando Vítor Constâncio, com memória lacunar,
diz que “a CGD (Caixa Geral de Depósitos) sempre foi uma instituição que nunca deu problemas” ao
supervisor, Carlos Costa apresenta memória genérica sobre o que se passou e que
se espelha no “não me lembro” e Florbela Lima refere que a auditoria não teve
acesso a todos os documentos que suportam a concessão de créditos problemáticos,
vêm Eduardo Paz Ferreira (ao tempo presidente do Conselho Fiscal) e Manuel Oliveira Rego (ex-revisor oficial de contas da CGD) mostrar
que sabem dizer muito do que se passou.
Estes dois gestores, que estiveram à frente dos dois órgãos de fiscalização
do banco público durante grande parte das últimas duas décadas, agora ouvidos no Parlamento, alertaram, há mais
de 10 anos, para risco de fraude na CGD. Oliveira Rego, da Oliveira Rego & Associados, foi ouvido, a 2 de abril, na II CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) à recapitalização da CGD e aos atos de gestão e Paz Ferreira é ouvido
hoje, dia 3.
“Fraudes e erros”. Era assim que
o ROC (Revisor Oficial
de Contas) da CGD alertava logo em 2007 para
o risco de irregularidades no controlo interno do banco público, nomeadamente
no tocante à gestão do risco, ao compliance (verificação
do cumprimento de regras) e à
auditoria interna. E, tendo em conta os pareceres do ROC, estes avisos foram
sucessivamente repetidos pelo conselho fiscal até 2014, sem merecerem a devida
atenção dos governos e do BdP (Banco de Portugal).
Manuel de Oliveira Rego respondeu perante os deputados relativamente ao seu trabalho enquanto ROC
do banco público entre 2000 e 2016, período abrangido pelo relatório da
auditoria da EY aos atos de gestão no banco do Estado. Não se trata duma
estreia em CPI a bancos, pois, em 2012, tinha ido ao Parlamento explicar o
acompanhamento que a sua sociedade revisora fez às contas do nacionalizado BPN.
E, a partir das 17 horas de hoje, é a vez de ir à Assembleia da República Eduardo Paz Ferreira, que na CGD presidiu ao conselho fiscal
entre 2007 e 2010 e, posteriormente, à comissão de auditoria entre 2011 e 2015.
Estas audições visam sobretudo responder à questão dos grandes créditos que
se revelaram lesivos para o banco público. Com é sabido, a CGD veio, com os 25
principais financiamentos, a registar perdas por imparidade na ordem dos 1.200
milhões de euros. O relatório da auditoria da EY mostrou que, em
muitas operações, as regras internas e o risco não foram devidamente tidos em
conta. E quem fiscalizou o banco neste período tem uma palavra a dizer.
Antes de mais, os responsáveis dos órgãos de fiscalização são chamados a
explicar quais eram exatamente estes riscos de “fraudes e erros” que tinham
sido detetados pelo ROC no relatório e contas de 2007. Na altura, a Oliveira
Rego & Associados até considerava que o “ambiente de controlo interno
existente na CGD” era “adequado à dimensão e à
natureza e risco das atividades desenvolvidas” pelo banco público.
Porém, como dizia o conselho fiscal do banco, foram “identificadas algumas
situações de exceção e apresentadas recomendações resultantes da perceção” que este
órgão obteve do controlo interno, pelo que alertou para o facto de, “tendo em
conta as limitações inerentes aos sistemas de controlo interno”, poderem ocorrer fraudes e erros sem serem detetados. E o
alerta acrescentava que o conselho fiscal “iria acompanhar esta matéria
em articulação técnica com o ROC”.
Depois, levantam-se outras questões sobre de que forma o banco, acionista (Estado) e supervisor (BdP) tiveram em conta estes alertas e implementaram medidas para mitigá-los. E
Eduardo Paz Ferreira disse que, enquanto fiscalizadores, tanto ele como o ROC
cumpriram os seus “deveres fazendo os alertas”. Ainda assim, segundo disse
ao Jornal Económico,
reconhecia que os avisos “não tiveram grande tradução de medidas, nomeadamente
do Ministério das Finanças, para quem estes relatórios eram enviados”.
Uma análise aos vários relatórios e contas da CGD permite acompanhar um
pouco a evolução do tema ao longo dos anos. Por exemplo, em 2008, após um aviso
do BdP para o todo o sistema, o conselho fiscal notou uma “evolução muito
significativa no processo de reorganização interna da área do controlo dos
riscos nas várias vertentes, designadamente através do projeto Risco Operacional e Controlo Interno”.
Nos anos seguintes, o conselho fiscal salientava a “melhoria nos
procedimentos de controlo interno ao nível das funções de gestão de riscos, compliance e auditoria interna”, ao
mesmo tempos que notava um “conjunto de deficiências e/ou aspetos a melhorar”. Estes
avisos foram sendo repetidos, até 2014, a várias administrações da CGD, dois
governos (José Sócrates e Passos Coelho) e dois
supervisores (Vítor Constâncio e Carlos Costa).
Florbela Lima, partener da EY e que
foi à CPI a 27 de março, revelou que a auditoria ao banco público detetou falhas
no cumprimento do “normativo” ao longo do período em análise, mas recusando
associar tais desvios às regras internas às perdas com o crédito, por haver
“muito mais fatores”. E Constâncio, que admitiu
“falhas em relação a alguns aspetos da supervisão”, mas não só em Portugal, disse
que a “CGD sempre foi uma instituição que nunca deu problemas” ao supervisor.
***
Como já foi referido, o ex-ROC da CGD (foi seu ROC entre 2000 e 2015) aponta o dedo aos vários Governos considerando que “é o acionista que tem
de ser ativo” no controlo da CGD, o seu banco, e diz que os vários Governos foram alertados para
irregularidades na concessão de crédito do banco público, mas que os Executivos
falharam no acompanhamento dos alertas.
Com efeito, disse à II CPI à recapitalização da CGD e
aos atos de gestão que os Governos
foram alertados, numa base trimestral, para as irregularidades na concessão de
crédito da CGD pelo respetivo ROC, só que falharam no acompanhamento desses
alertas. E, como acionista único, o Estado devia ter desempenhado um papel “ativo”
no controlo da instituição.
Foi Manuel de Oliveira Rego quem revelou que foram
deixados vários alertas à tutela (Ministério das Finanças e Secretaria
de Estado do Tesouro) sobre deficiências
em alguns empréstimos do banco público, como a escassa cobertura de alguns
créditos, e avisou o Executivo sobre a evolução do risco de crédito e das
grandes exposições creditícias. No entanto, como refere, só a partir de 2011 é
que o Ministério das Finanças “começou a pedir alguns
quadros” e, antes disso, não houve nenhum contacto entre Governo e ROC. E,
porfiando que não há falta de memória,
disse:
“O que posso responder é que nós fizemos o
nosso trabalho. Como? Não há falta de memória. Está consubstanciado
em relatórios trimestres, devidamente apresentados ao Ministério das Finanças e
à Secretaria de Estado do Tesouro, em que abordamos todos os temas que podem
influenciar no presente ou futuro o capital ou resultados da sociedade. Isto
está nos nossos relatórios.”.
Ao invés do BdP, que sabia dessas deficiências e chegou a chamar a atenção
do conselho de administração para isso, o acionista Estado não fez o
devido controlo. E Oliveira Rego afirmou, no âmbito das responsabilidades
do acionista:
“Tinha de ir à assembleia-geral da CGD
munido da informação para questionar o conselho de administração e o conselho
fiscal sobre aquilo que acha que, realmente, não está a correr como considera
que deve correr. (…) Isto não estava a acontecer no tempo em que estive lá e
julgo que no tempo do Pedro Bastos [sócio da mesma sociedade] também não
acontecia.”.
Nas informações enviadas ao Governo enquanto tutela e acionista, o ROC
disse o que constava da análise das “atas do conselho alargado de crédito e se
a concessão de crédito percorria todo o processo previsto nas normas internas
da CGD”. Explicou que não só detetou como monitorizou “todas essas situações de
uma forma discriminada, toda a vida desses empréstimos, a descida forçada
desses colaterais e a constituição das respetivas provisões”. E disse que todos
os órgãos devem assumir responsabilidade no que se passou na CGD, cujos
resultados foram expostos pela auditoria da EY, mas que há um órgão em
especial: “No plano superior está a
assembleia geral e, nessa assembleia, é o acionista que tem de ser ativo“.
***
Houve um “certo facilitismo” na concessão de
crédito, disse o antigo revisor oficial de contas da CGD à II CPI, e depois veio a crise e as
empresas deixaram de conseguir para a dívida. Daí as perdas para o banco.
Respondendo à questão
colocada pelo deputado comunista Paulo Sá: “O
ROC? Quem falhou então?”, de início, o responsável pela fiscalização da CGD
entre 2000 e 2015 começou por associar as perdas do banco à crise económica e,
assim, explicou:
“Realmente, esse grande volume de
imparidades decorre da evolução da economia portuguesa. As empresas têm mais
dificuldades em arranjar dinheiro para pagar, para cumprir o serviço da dívida.”.
A seguir, anotou:
“Depois há desfasamento entre a incapacidade
de recuperar ativo e aquilo que estava inscrito no balanço. É por isso que aparecem as imparidades 1.760 milhões de euros
[em 2016].”.
Prosseguiu afirmando que certamente houve outros fatores e frisou que houve “um certo facilitismo” na concessão de crédito por parte da
CGD e que “a documentação que suporta a decisão de crédito evidencia” este
facilitismo. Na verdade, o banco público “facilitava” porque queria
concorrer no mercado com os outros bancos. Depois, veio a crise e as “empresas
deixaram de ter dinheiro para cumprir o serviço da dívida” e o malparado e
imparidades dispararam no setor.
E sustentou as suas asserções com o facto de, muitas vezes, as garantias
apresentadas pelos clientes não serem suficientes, pois “estavam abaixo de 120%
do nível de cobertura. E, dando como exemplo de risco máximo assumido pela CGD
o financiamento para compra de ações – nesse caso, “o risco da compra de ação é
diretamente transferido para o banco – questionou-se porque é que não obtinham
garantias adicionais e fez notar que já se registaram melhorias no colateral
que é exigido na obtenção de um empréstimo.
Segundo o relatório da EY, os 25 maiores créditos em
incumprimento originaram uma perda por imparidade na ordem dos 1.200 milhões de
euros. Porém, Oliveira Rego disse anteriormente que as imparidades
registadas em 2016 por causa de ativos problemáticos podem dar “resultados
significativos” à CGD nos próximos anos, pois foram constituídas
imparidades em demasia, de que uma parte significativa poderá ser revertida no
futuro. Por isso, como vincou, “a atual
administração tem de gerir estes ativos porque tem ali resultados potenciais
muito significativos”, mas “é preciso
haver uma gestão apertada” destes ativos.
Na verdade, em 2016, a CGD criou um excesso de imparidades associadas aos
ativos tóxicos por imposição das autoridades europeias para permitir a
recapitalização do banco público. Essas imparidades “estão muito sobreavaliadas”.
E a atual administração, para as reverter e obter os resultados significativos expectáveis,
tem de gerir estes ativos com “uma gestão apertada”, o que, pelos vistos, está
a tentar.
Efetivamente, naquele ano, a CGD registou prejuízos de cerca de 1.800
milhões de euros, devido ao registo de imparidades que totalizaram os 3.000
milhões de euros. O reconhecimento destas imparidades foi condição essencial
para a DGComp (Direção-Geral de Concorrência da Comissão Europeia) não considerar a recapitalização do banco com 3.900
milhões de euros de dinheiros públicos uma ajuda de Estado. De acordo com o relatório da EY, só os 25 principais créditos
problemáticos da CGD registaram imparidades no valor de 1.200 milhões de euros.
Ora, Paulo Macedo, atual CEO da CGD, já disse que os créditos mais
emblemáticos continuarão na esfera do banco público para serem recuperados pela
unidade de investimento, o CaixaBI, e revelou que o facto de haver imparidade
no crédito não significa que tenha dado o empréstimo como perdido e,
recuperando o crédito, a anulação da imparidade dará origem a lucro. E Manuel
de Oliveira Rego reforçou:
“Parece natural que a manutenção dos mesmos
ativos em carteira e a respetiva valorização, a execução dos colaterais
associados ou a sua venda de forma prudente em mercado poderá implicar
reversões de imparidades significativas para a CGD, traduzindo-se em resultados
positivos nos próximos anos”.
Com efeito, após os prejuízos de 1.800 milhões de euros em 2016, o banco
regressou aos lucros nos anos a seguir: lucrou 50 milhões de euros em 2017, um
resultado que foi multiplicado por dez no ano passado: 500 milhões de
euros que deverão traduzir-se em 200 milhões de euros em dividendos para o
Estado. E, questionado pelos deputados sobre a política de imparização na CGD, Oliveira
Rego disse que o banco público seguiu os “critérios internacionais” para
o registo de imparidades, sendo tal opção da responsabilidade das autoridades
externas.
***
Pode parecer, pelo exposto, que a causa do que se passou na CGD está
exclusivamente ou em muito boa parte nos governos do período a que se reporta a
auditoria à CGD. Porém, a esses cabe apenas a responsabilidade política – o que
já não é nada pouco – quer no âmbito da responsabilidade do Estado qua tali, quer no âmbito da que tem na
orientação superior da empresa enquanto acionista. Quanto ao mais, não pode diminuir-se
um ápice que seja a responsabilidade do regulador e supervisor e, sobretudo, a
do conselho de administração, bem como a dos beneficiários da má administração do
banco público. E não vale dizer que os administradores foram colocados no banco
público pelos poderes políticos ou que estes faziam pressão política neste ou
naquele sentido. A colocação política não justifica a má atuação de ninguém,
muito menos a decorrente da falta de profissionalismo e de bom senso. Depois,
as pressões existem sempre, umas legítimas e contidas e outras ilegítimas ou
excessivas. Mas o administrador ou sabe resistir-lhes ou é, pelo menos,
cúmplice.
Por isso, ninguém deve nem pode alijar as responsabilidades próprias e
todos devem ser penalizados proporcionalmente em conformidade com os atos
praticados ou as omissões a que houve espaço. Mas dá-me a impressão que a culpa
vai morrer solteira e solitária… há parra excessiva para a uva que existe
aquando do rebusco.
2019.04.03 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário