quarta-feira, 3 de abril de 2019

Afinal, no quadro dum surto de amnésia, há quem tenha memória!


Quando Vítor Constâncio, com memória lacunar, diz que “a CGD (Caixa Geral de Depósitos) sempre foi uma instituição que nunca deu problemas” ao supervisor, Carlos Costa apresenta memória genérica sobre o que se passou e que se espelha no “não me lembro” e Florbela Lima refere que a auditoria não teve acesso a todos os documentos que suportam a concessão de créditos problemáticos, vêm Eduardo Paz Ferreira (ao tempo presidente do Conselho Fiscal) e Manuel Oliveira Rego (ex-revisor oficial de contas da CGD) mostrar que sabem dizer muito do que se passou.
Estes dois gestores, que estiveram à frente dos dois órgãos de fiscalização do banco público durante grande parte das últimas duas décadas, agora ouvidos no Parlamento, alertaram, há mais de 10 anos, para risco de fraude na CGD. Oliveira Rego, da Oliveira Rego & Associados, foi ouvido, a 2 de abril, na II CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) à recapitalização da CGD e aos atos de gestão e Paz Ferreira é ouvido hoje, dia 3.
Fraudes e erros”. Era assim que o ROC (Revisor Oficial de Contas) da CGD alertava logo em 2007 para o risco de irregularidades no controlo interno do banco público, nomeadamente no tocante à gestão do risco, ao compliance (verificação do cumprimento de regras) e à auditoria interna. E, tendo em conta os pareceres do ROC, estes avisos foram sucessivamente repetidos pelo conselho fiscal até 2014, sem merecerem a devida atenção dos governos e do BdP (Banco de Portugal).
Manuel de Oliveira Rego respondeu perante os deputados relativamente ao seu trabalho enquanto ROC do banco público entre 2000 e 2016, período abrangido pelo relatório da auditoria da EY aos atos de gestão no banco do Estado. Não se trata duma estreia em CPI a bancos, pois, em 2012, tinha ido ao Parlamento explicar o acompanhamento que a sua sociedade revisora fez às contas do nacionalizado BPN. E, a partir das 17 horas de hoje, é a vez de ir à Assembleia da República Eduardo Paz Ferreira, que na CGD presidiu ao conselho fiscal entre 2007 e 2010 e, posteriormente, à comissão de auditoria entre 2011 e 2015.
Estas audições visam sobretudo responder à questão dos grandes créditos que se revelaram lesivos para o banco público. Com é sabido, a CGD veio, com os 25 principais financiamentos, a registar perdas por imparidade na ordem dos 1.200 milhões de euros. O relatório da auditoria da EY mostrou que, em muitas operações, as regras internas e o risco não foram devidamente tidos em conta. E quem fiscalizou o banco neste período tem uma palavra a dizer.
Antes de mais, os responsáveis dos órgãos de fiscalização são chamados a explicar quais eram exatamente estes riscos de “fraudes e erros” que tinham sido detetados pelo ROC no relatório e contas de 2007. Na altura, a Oliveira Rego & Associados até considerava que o “ambiente de controlo interno existente na CGD” era “adequado à dimensão e à natureza e risco das atividades desenvolvidas” pelo banco público. Porém, como dizia o conselho fiscal do banco, foram “identificadas algumas situações de exceção e apresentadas recomendações resultantes da perceção” que este órgão obteve do controlo interno, pelo que alertou para o facto de, “tendo em conta as limitações inerentes aos sistemas de controlo interno”, poderem ocorrer fraudes e erros sem serem detetados. E o alerta acrescentava que o conselho fiscal “iria acompanhar esta matéria em articulação técnica com o ROC”.
Depois, levantam-se outras questões sobre de que forma o banco, acionista (Estado) e supervisor (BdP) tiveram em conta estes alertas e implementaram medidas para mitigá-los. E Eduardo Paz Ferreira disse que, enquanto fiscalizadores, tanto ele como o ROC cumpriram os seus “deveres fazendo os alertas”. Ainda assim, segundo disse ao Jornal Económico, reconhecia que os avisos “não tiveram grande tradução de medidas, nomeadamente do Ministério das Finanças, para quem estes relatórios eram enviados”.
Uma análise aos vários relatórios e contas da CGD permite acompanhar um pouco a evolução do tema ao longo dos anos. Por exemplo, em 2008, após um aviso do BdP para o todo o sistema, o conselho fiscal notou uma “evolução muito significativa no processo de reorganização interna da área do controlo dos riscos nas várias vertentes, designadamente através do projeto Risco Operacional e Controlo Interno”.
Nos anos seguintes, o conselho fiscal salientava a “melhoria nos procedimentos de controlo interno ao nível das funções de gestão de riscos, compliance e auditoria interna”, ao mesmo tempos que notava um “conjunto de deficiências e/ou aspetos a melhorar”. Estes avisos foram sendo repetidos, até 2014, a várias administrações da CGD, dois governos (José Sócrates e Passos Coelho) e dois supervisores (Vítor Constâncio e Carlos Costa).
Florbela Lima, partener da EY e que foi à CPI a 27 de março, revelou que a auditoria ao banco público detetou falhas no cumprimento do “normativo” ao longo do período em análise, mas recusando associar tais desvios às regras internas às perdas com o crédito, por haver “muito mais fatores”. E Constâncio, que admitiu “falhas em relação a alguns aspetos da supervisão”, mas não só em Portugal, disse que a “CGD sempre foi uma instituição que nunca deu problemas” ao supervisor.
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Como já foi referido, o ex-ROC da CGD (foi seu ROC entre 2000 e 2015) aponta o dedo aos vários Governos considerando que “é o acionista que tem de ser ativo” no controlo da CGD, o seu banco, e diz que os vários Governos foram alertados para irregularidades na concessão de crédito do banco público, mas que os Executivos falharam no acompanhamento dos alertas.
Com efeito, disse à II CPI à recapitalização da CGD e aos atos de gestão que os Governos foram alertados, numa base trimestral, para as irregularidades na concessão de crédito da  CGD pelo respetivo ROC, só que falharam no acompanhamento desses alertas. E, como acionista único, o Estado devia ter desempenhado um papel “ativo” no controlo da instituição.
Foi Manuel de Oliveira Rego quem revelou que foram deixados vários alertas à tutela (Ministério das Finanças e Secretaria de Estado do Tesouro) sobre deficiências em alguns empréstimos do banco público, como a escassa cobertura de alguns créditos, e avisou o Executivo sobre a evolução do risco de crédito e das grandes exposições creditícias. No entanto, como refere, só a partir de 2011 é que o Ministério das Finanças “começou a pedir alguns quadros” e, antes disso, não houve nenhum contacto entre Governo e ROC. E, porfiando que não há falta de memória, disse:
O que posso responder é que nós fizemos o nosso trabalho. Como? Não há falta de memória. Está consubstanciado em relatórios trimestres, devidamente apresentados ao Ministério das Finanças e à Secretaria de Estado do Tesouro, em que abordamos todos os temas que podem influenciar no presente ou futuro o capital ou resultados da sociedade. Isto está nos nossos relatórios.”.
Ao invés do BdP, que sabia dessas deficiências e chegou a chamar a atenção do conselho de administração para isso, o acionista Estado não fez o devido controlo. E Oliveira Rego afirmou, no âmbito das responsabilidades do acionista: 
Tinha de ir à assembleia-geral da CGD munido da informação para questionar o conselho de administração e o conselho fiscal sobre aquilo que acha que, realmente, não está a correr como considera que deve correr. (…) Isto não estava a acontecer no tempo em que estive lá e julgo que no tempo do Pedro Bastos [sócio da mesma sociedade] também não acontecia.”.
Nas informações enviadas ao Governo enquanto tutela e acionista, o ROC disse o que constava da análise das “atas do conselho alargado de crédito e se a concessão de crédito percorria todo o processo previsto nas normas internas da CGD”. Explicou que não só detetou como monitorizou “todas essas situações de uma forma discriminada, toda a vida desses empréstimos, a descida forçada desses colaterais e a constituição das respetivas provisões”. E disse que todos os órgãos devem assumir responsabilidade no que se passou na CGD, cujos resultados foram expostos pela auditoria da EY, mas que há um órgão em especial: No plano superior está a assembleia geral e, nessa assembleia, é o acionista que tem de ser ativo“.
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Houve um “certo facilitismo” na concessão de crédito, disse o antigo revisor oficial de contas da CGD à II CPI, e depois veio a crise e as empresas deixaram de conseguir para a dívida. Daí as perdas para o banco.
Respondendo à questão colocada pelo deputado comunista Paulo Sá: “O ROC? Quem falhou então?”, de início, o responsável pela fiscalização da CGD entre 2000 e 2015 começou por associar as perdas do banco à crise económica e, assim, explicou:
Realmente, esse grande volume de imparidades decorre da evolução da economia portuguesa. As empresas têm mais dificuldades em arranjar dinheiro para pagar, para cumprir o serviço da dívida.”.
A seguir, anotou:
Depois há desfasamento entre a incapacidade de recuperar ativo e aquilo que estava inscrito no balanço. É por isso que aparecem as imparidades 1.760 milhões de euros [em 2016].”.
Prosseguiu afirmando que certamente houve outros fatores e frisou que houve “um certo facilitismo” na concessão de crédito por parte da CGD e que “a documentação que suporta a decisão de crédito evidencia” este facilitismo. Na verdade, o banco público “facilitava” porque queria concorrer no mercado com os outros bancos. Depois, veio a crise e as “empresas deixaram de ter dinheiro para cumprir o serviço da dívida” e o malparado e imparidades dispararam no setor.
E sustentou as suas asserções com o facto de, muitas vezes, as garantias apresentadas pelos clientes não serem suficientes, pois “estavam abaixo de 120% do nível de cobertura. E, dando como exemplo de risco máximo assumido pela CGD o financiamento para compra de ações – nesse caso, “o risco da compra de ação é diretamente transferido para o banco – questionou-se porque é que não obtinham garantias adicionais e fez notar que já se registaram melhorias no colateral que é exigido na obtenção de um empréstimo.
Segundo o relatório da EY, os 25 maiores créditos em incumprimento originaram uma perda por imparidade na ordem dos 1.200 milhões de euros. Porém, Oliveira Rego disse anteriormente que as imparidades registadas em 2016 por causa de ativos problemáticos podem dar “resultados significativos” à CGD nos próximos anos, pois foram constituídas imparidades em demasia, de que uma parte significativa poderá ser revertida no futuro. Por isso, como vincou, “a atual administração tem de gerir estes ativos porque tem ali resultados potenciais muito significativos”, mas “é preciso haver uma gestão apertada” destes ativos.
Na verdade, em 2016, a CGD criou um excesso de imparidades associadas aos ativos tóxicos por imposição das autoridades europeias para permitir a recapitalização do banco público. Essas imparidades “estão muito sobreavaliadas”. E a atual administração, para as reverter e obter os resultados significativos expectáveis, tem de gerir estes ativos com “uma gestão apertada”, o que, pelos vistos, está a tentar.
Efetivamente, naquele ano, a CGD registou prejuízos de cerca de 1.800 milhões de euros, devido ao registo de imparidades que totalizaram os 3.000 milhões de euros. O reconhecimento destas imparidades foi condição essencial para a DGComp (Direção-Geral de Concorrência da Comissão Europeia) não considerar a recapitalização do banco com 3.900 milhões de euros de dinheiros públicos uma ajuda de Estado. De acordo com o relatório da EY, só os 25 principais créditos problemáticos da CGD registaram imparidades no valor de 1.200 milhões de euros.
Ora, Paulo Macedo, atual CEO da CGD, já disse que os créditos mais emblemáticos continuarão na esfera do banco público para serem recuperados pela unidade de investimento, o CaixaBI, e revelou que o facto de haver imparidade no crédito não significa que tenha dado o empréstimo como perdido e, recuperando o crédito, a anulação da imparidade dará origem a lucro. E Manuel de Oliveira Rego reforçou:
Parece natural que a manutenção dos mesmos ativos em carteira e a respetiva valorização, a execução dos colaterais associados ou a sua venda de forma prudente em mercado poderá implicar reversões de imparidades significativas para a CGD, traduzindo-se em resultados positivos nos próximos anos”.
Com efeito, após os prejuízos de 1.800 milhões de euros em 2016, o banco regressou aos lucros nos anos a seguir: lucrou 50 milhões de euros em 2017, um resultado que foi multiplicado por dez no ano passado: 500 milhões de euros que deverão traduzir-se em 200 milhões de euros em dividendos para o Estado. E, questionado pelos deputados sobre a política de imparização na CGD, Oliveira Rego disse que o banco público seguiu os “critérios internacionais” para o registo de imparidades, sendo tal opção da responsabilidade das autoridades externas.
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Pode parecer, pelo exposto, que a causa do que se passou na CGD está exclusivamente ou em muito boa parte nos governos do período a que se reporta a auditoria à CGD. Porém, a esses cabe apenas a responsabilidade política – o que já não é nada pouco – quer no âmbito da responsabilidade do Estado qua tali, quer no âmbito da que tem na orientação superior da empresa enquanto acionista. Quanto ao mais, não pode diminuir-se um ápice que seja a responsabilidade do regulador e supervisor e, sobretudo, a do conselho de administração, bem como a dos beneficiários da má administração do banco público. E não vale dizer que os administradores foram colocados no banco público pelos poderes políticos ou que estes faziam pressão política neste ou naquele sentido. A colocação política não justifica a má atuação de ninguém, muito menos a decorrente da falta de profissionalismo e de bom senso. Depois, as pressões existem sempre, umas legítimas e contidas e outras ilegítimas ou excessivas. Mas o administrador ou sabe resistir-lhes ou é, pelo menos, cúmplice.   
Por isso, ninguém deve nem pode alijar as responsabilidades próprias e todos devem ser penalizados proporcionalmente em conformidade com os atos praticados ou as omissões a que houve espaço. Mas dá-me a impressão que a culpa vai morrer solteira e solitária… há parra excessiva para a uva que existe aquando do rebusco.
2019.04.03 – Louro de Carvalho   

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