sexta-feira, 12 de abril de 2019

Gesto surpreendente e comovente com sabor evangélico


Depois de ter pedido “como irmão” aos líderes do Sudão do Sul o esforço de “permanecerem na paz”, o Santo Padre, com visível sofrimento, quis ajoelhar-se ante eles para lhes beijar os pés. Prostrou-se então diante do presidente da República do Sudão do Sul, Salva Kiir Mayardit, e dos vice-presidentes designados presentes, entre eles, Riek Machar e Rebecca Nyandeng de Mabio. E este gesto do Servo dos Servos de Deus foi a marca – surpreendente e comovente de profundo sabor evangélico – de encerramento do retiro espiritual de cariz ecuménico e diplomático pela paz no Sudão do Sul, que o Sumo Pontífice acolheu na sua casa.
Para Andrea Tornielli, como referiu ao Vatican News, o gesto de Francisco no final do retiro espiritual de dois dias pela paz tem um sabor evangélico e aconteceu precisamente uma semana antes de o mesmo gesto se repetir nas igrejas de todo o mundo para lembrar a atitude de Jesus na Última Ceia, quando, na véspera da sua Paixão, ao lavar e oscular os pés dos apóstolos, lhes apontou o caminho do serviço como promoção e resultado do amor fraterno.
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Sob proposta do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, Primaz da Igreja Anglicana, que o Papa aprovou e assumiu, realizou-se nos dias 10 e 11 de abril, na Casa Santa Marta, no Vaticano, um retiro espiritual com a participação de autoridades civis e eclesiásticas do Sudão do Sul – tudo em conformidade com a notícia divulgada, no passado dia 9, pelo diretor interino da Sala de Imprensa da Santa Sé, Alessandro Gisotti, que havia anunciado, na semana passada, a possibilidade deste evento.
As autoridades civis que participaram no retiro são os membros da presidência do Sudão do Sul, que, nos termos do “Acordo Revitalizado sobre a Resolução de Conflitos no Sudão do Sul”, assumirão altos cargos de responsabilidade nacional no próximo dia 12 de maio: o Presidente da República, Sr. Salva Kiir Mayardit, e 4 dos 5 vice-presidentes designados: Srs. Riek Machar Teny Dhurgon, James Wani Igga, Taban Deng Gai, e a Sra. Rebecca Nyandeng De Mabior.
Recorde-se que o Sudão do Sul, com uma população maioritariamente cristã, obteve a sua independência ao separar-se do Norte árabe e muçulmano em 2011, mas no final de 2013 mergulhou num conflito civil causado pela rivalidade entre o presidente, Salva Kiir, e o seu então vice-presidente, Riek Machar.
Da parte das autoridades eclesiásticas do país, participaram no evento ecuménico e diplomático os oito membros do Conselho de Igrejas do Sudão do Sul. E os pregadores do retiro foram o Arcebispo de Gulu, Uganda, Dom John Baptist Odama, e o presidente da Conferência dos Superiores Maiores da África e Madagascar, Padre Agbonkhianmeghe Orobator, S.J.
No entanto, foi o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, quem abriu este retiro espiritual que reuniu, durante dois dias, na Casa Santa Marta, as autoridades máximas civis e eclesiásticas do Sudão do Sul, para oferecer reflexão e oração tendo em vista um futuro de paz para o povo do país.
No início da sua intervenção, no dia 10, o purpurado foi portador da saudação do Pontífice e recordou o encontro do Pontífice com os participantes ao final do retiro, na tarde do dia 11.
Estas jornadas, simultaneamente espirituais, ecuménicas e diplomáticas, foram organizadas de comum acordo entre a Secretaria de Estado e o Departamento do Arcebispo de Cantuária, com o objetivo de oferecer, da parte da Igreja, uma ocasião profícua para a reflexão e oração, e também para o encontro e a reconciliação, num espírito de respeito e confiança, para os que, neste momento, têm a missão e a responsabilidade de trabalhar por um futuro de paz e prosperidade do povo do Sudão do Sul.
O retiro terminou na tarde do dia 11, quando às 17 horas, o Papa pronunciou o seu discurso.
A seguir, foi entregue aos participantes uma Bíblia assinada pelo Papa Francisco, pelo Primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby, e pelo Rev. John Chalmers, ex-Moderador da Igreja Presbiteriana da Escócia, com a mensagem “Procurai o que une. Superai o que divide”. E, por fim, foi dada a bênção aos líderes que assumirão o compromisso comum com a paz.
Segundo o Cardeal Secretário de Estado, o encontro constituiu um “período de graça” dedicado à reflexão e à oração para pedir a Deus “um futuro de paz e prosperidade para o povo” daquele país. Trata-se de uma “oportunidade” de encontro e reconciliação  no espírito “do respeito e da confiança” por aqueles que, “neste momento, têm a missão e a responsabilidade especial de trabalhar pelo desenvolvimento” do Sudão do Sul, precipitado numa guerra civil sangrenta em 2013, com ao menos 400 mil mortes.
E o Arcebispo de Cantuária, que propôs o retiro ao Papa, ainda em viagem para Roma, enviou uma saudação e o agradecimento ao Pontífice pela hospitalidade “na sua casa”. O Primaz da Igreja Anglicana enfatizou a solicitude de Francisco pelo Sudão do Sul, com o auspício de que o Espírito Santo “pouse” sobre todos os líderes do país, presentes ou não no retiro.
O padre jesuíta Agbonkhianmeghe Orobator, um dos pregadores e presidente da Conferência dos Superiores Maiores da África e Madagáscar, abordou o verdadeiro significado do retiro espiritual, interpretado como um período “para encontrar Deus” ou, melhor, como um período em que “Deus nos possa encontrar”. O Senhor – explicou o sacerdote – “fala-nos aqui”, não “com o telefone celular” e nem pelo “Twitter, Facebook e Instagram”, mas num percurso de cura, purificação e missão como “artesãos da paz”.
O pregador desenvolveu a sua reflexão em torno do hino nacional do país, intitulado “South Sudan Oyee!”, ao solicitar que os presentes o declamassem e escutassem no retiro. Nele, explicou o jesuíta, Deus é mencionado duas vezes, no início e no fim do texto, pois o povo do Sudão do Sul é “de fé” e, com “uma única voz”, reza, glorifica e expressa confiança no Senhor, “em paz e harmonia”. E o maior recurso e a maior riqueza do país não vêm da terra, da água ou do petróleo: é o povo. O jesuíta lembrou o dia da independência da Khartoum, em 9 de julho de 2011, quando havia alegria, euforia e exultação de todas as etnias porque a nação “nascia” com uma esperança de paz, justiça, prosperidade e liberdade. No entanto, disse o pregador, hoje “quase a metade da população” local, isto é, cerca de “7 milhões de pessoas”, passam por fome extrema e sofrem duramente com a realidade das escolas abandonadas por causa das violências intercomunitárias e entre etnias. Além disso, 4 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar as suas casas, buscando abrigo em campos de refugiados. O apelo, então, a recuperar o “sonho” interpretado no hino nacional: ir além do “ódio” e das “incompreensões”, entre a guerra e a paz escolher “a vida” para uma reconciliação não só “pessoal”, mas “nacional”.
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No seu discurso, o Papa pediu aos líderes do Sudão do Sul que “o fogo da guerra se apague de uma vez por todas” – uma imagem forte que não se compreende a não ser no clima de recíproco perdão que caraterizou os dois dias de retiro, que não constituíram uma conferência político-diplomática, mas uma experiência de oração e de reflexão comum entre líderes a quem, mesmo tendo assinado um acordo de paz, custa a garantir que ele seja respeitado. Ora, como “a paz, para os crentes, se invoca diante de Deus e se invoca rezando ainda mais perante o sacrifício de tantas vítimas inocentes do ódio e da guerra”, algo deve ter sucedido naquelas horas em Santa Marta, principalmente entre os líderes do Sudão do Sul que acolheram o convite do Bispo de Roma, que tem como título o de “Servo dos servos de Deus”, pois, ajoelhando-se com dificuldade para lhes beijar os pés, o Papa curvou-se ante aquilo que Deus suscitou durante esse encontro de oração.
Gestos semelhantes, ícone evangélico do serviço, não são novos na história recente do papado. A 14 de dezembro de 1975, São Paulo VI, na Capela Sistina, na celebração dos 10 anos do cancelamento das excomunhões recíprocas entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla, desceu do altar no final da Missa e, ainda revestido dos sagrados paramentos, lançou-se aos pés do metropolita Meliton de Calcedónia, representante do Patriarca Demétrio, um gesto que invocava de modo inverso, além do lava-pés realizado por Jesus, os eventos do Concílio de Florença quando, em 1439, os patriarcas ortodoxos recusaram beijar os pés do Papa Eugénio IV.  
Relativamente aos outros irmãos cristãos, como diante de quem se deixa tocar o coração e aceita gestos de reconciliação e de paz, os Papas, Servos dos servos de Deus, não têm temor em se humilhar para imitar o seu Mestre.
O Papa, confirmando que espera poder visitar o Sudão do Sul num futuro próximo, juntamente com os irmãos ali presentes, entre os quais se encontrava o Arcebispo de Cantuária, exortou os líderes políticos do Sudão do Sul a cumprirem o compromisso de paz que assinaram no ano passado, rezando com eles após dois dias de um retiro espiritual – ecuménico e diplomático – sem precedentes no Vaticano. E acrescentou improvisando:
A vós os três que assinastes o Acordo de Paz, peço-vos, como irmão, que permaneçais na paz. Peco-vo-lo com o coração. Vamos seguir em frente. Haverá muitos problemas, mas não tenhais medo, ide em frente, resolvei os problemas. Vós iniciastes um processo: que termine bem. Haverá lutas entre vós dois, sim. Que elas ocorram dentro do escritório; diante do povo, as mãos unidas. Assim, de simples cidadãos, vós vos tornareis Pais da Nação. Permiti-me pedir-vo-lo com o coração, com os meus sentimentos mais profundos.”.
No final do seu discurso de encerramento do retiro espiritual, como já foi referido, o Papa inclinou-se para beijar os pés dos líderes do país reunidos para a iniciativa de paz.
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O gesto de humildade do Papa comoveu o Sudão do Sul. A Irmã Elena Balatti, missionária comboniana que se encontra em Juba, a capital, testemunhou à agência Fides que o gesto do Papa que beija os pés dos políticos sul-sudaneses comoveu muito a população local:
Os sul-sudaneses ficaram positivamente impressionados ao ver o Papa Francisco suplicar a paz aos políticos do país. O Papa que se ajoelha e beija os pés dos líderes do Sudão do Sul. Os vídeos e as imagens do evento passam ininterruptamente nas emissoras de televisão, nas redes sociais e nos telemóveis das pessoas comuns.”.
E pormenorizou:
A população reconhece e aprecia muito os esforços que o Santo Padre, os bispos e toda a Igreja local estão a fazer pela paz no Sudão do Sul. (…) Ficamos impressionados pela insistência do Papa Francisco em recordar aos políticos as suas responsabilidades para com o povo que está sofrendo muito, que sofreu muitos lutos, além dos que tiveram que abandonar o próprio país. Por isso ajoelhou-se, fez isso em nome do povo sul-sudanês. Trata-se de um gesto muito apreciado, que comoveu as pessoas aqui no Sudão do Sul.”.
Por seu turno, a vice-presidente sul-sudanesa Rebecca Nyandeng Garang disse que o gesto do Papa Francisco a deixou profundamente emocionada: “Nunca tinha visto nada parecido – confessou – as lágrimas corriam dos meus olhos”.
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O Padre José Vieira, provincial dos missionários combonianos, que viveu em Juba, no Sudão do Sul, durante 7 anos, disse à agência Ecclesia que o gesto do Papa ao beijar os pés dos líderes políticos poderá ajudar a “colocar Deus” no caminho certo para a reconciliação e paz. E vincou:
Eles têm nas mãos o sangue de 400 mil pessoas e o Papa ter aquele gesto mostra que eles podem ter divergências, mas que as devem sanar no gabinete. As divergências são normais, mas o Papa pediu que deem as mãos, como irmãos, do fundo do coração, para serem pais da nação.”.
O missionário comboniano – que acompanhou de perto o sofrimento daquele povo entre 2006 e 2013, um povo sofredor habituado a “viver em guerra e a esperar a guerra” – sobre o magnífico gesto do Pontífice de beijar os pés dos líderes políticos do Sudão do Sul, refere que, na cultura dinka, uma das etnias do Sudão do Sul, “não há palavras para dizer ‘obrigado’ ou ‘desculpa’ e um líder ajoelhar-se e beijar os pés de uma pessoa, vale por mil palavras”.
Assim, o provincial dos combonianos entende que o gesto de Francisco introduz um novo elemento: “o da oração”. E observa:
Se puserem o elemento Deus na reconciliação, talvez consigam, porque entre as pessoas que seguem a religião cristã, os muçulmanos ou anglicanos, Deus está lá. (…) Há um ecumenismo prático nos crentes no Sudão do sul: rezamos ao único Deus com um nome diferente e com diversas linguagens corporais, mas estamos como irmãos.”.
O missionário dá conta de que, ao longo de anos de conflito e pobreza, as Igrejas sempre foram “os grandes defensores do povo”, preconiza a abertura de um processo de reconciliação e verdade à semelhança do que sucedeu na África do Sul, mas com um mediador externo e supõe, relembrando a experiência de paz em Moçambique, que a entrada da Comunidade de Sant’ Egídio poderia ser um dos mediadores da reconciliação.
E o religioso comboniano adverte que, para alcançar a estabilidade política e social, é necessário acabar com a “divisão do poder” e, como pediu o Papa Francisco, “serem pais da nação e esquecerem as diferenças”.
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Por fim, a versão em português, segundo o Vatican News, do hino nacional do Sudão do Sul:
Oh, Deus,
Nós Te rezamos e glorificamos
Pela Nossa graça do Sudão do Sul,
Terra de grande abundância,
Nós nos apoiamos unidos e em harmonia.
Oh, pátria-mãe,
Levantamo-nos levantando a bandeira com a Estrela do Norte
E cantamos canções com liberdade e com alegria,
Pela justiça, liberdade e prosperidade,
Que reinarão para sempre.
Oh, grandes patriotas,
Deixai-nos em silêncio e com respeito,
Para saudar os nossos mártires cujo sangue
Cimentou a nossa fundação nacional,
Eles prometem proteger a nossa Nação.
Oh, Deus, abençoa o Sudão do Sul.
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Façamos tudo o que for possível de ação, reflexão e ação pelo diálogo que leve à paz, que resulte da educação para o respeito, tolerância e amizade, que se expresse num estilo de sã convivência e que redunde em maior e melhor desenvolvimento, promoção da dignidade humana, dinamismo comunitário e cuidado da Casa Comum.
2019.04.12 – Louro de Carvalho

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