Lendo o Evangelho de João torna-se claro que “de tal modo
amou Deus o mundo que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o
que n’Ele crê não se perca, mas tenha a vida eterna”, pois “Deus não enviou o
seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por
Ele” (cf Jo 3,16). Assim, Ele veio para que tenhamos a Vida e a tenhamos em
abundância (cf Jo 10,10).
Por seu turno, o Evangelho de Mateus e o de Marcos referem que “o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a
multidão” (Mt 20,28; Mc 10,45). Esta asserção
vem no contexto do pedido feito pelos dois filhos de Zebedeu a Jesus no sentido
de os sentar, aquando da realização do Reino, um à sua direita e outro à sua
esquerda e tendo eles respondido afirmativamente à questão do Mestre se eram
capazes de beber do cálice que Ele ia beber e, segundo Marcos, se eram capazes
de receber o Batismo que Ele ia receber.
É claro que o cumprimento da vontade do Pai começa logo com a
encarnação do Verbo divino por obra graciosa do Espírito Santo no seio virginal
de Maria, abrange todo o percurso terreno de Jesus vida oculta, semelhante à de
muitas crianças, adolescentes e jovens, a sua vida pública de ensinamentos e
realização de obras e prodígios e, obviamente a Paixão e Morte, de que decorrem
a descida à mansão dos mortos, a ressurreição dos mortos, a ascensão aos Céus e
o envio do Espírito Santo. Reza o símbolo niceno-constantinoplitano:
“E
por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos Céus. E encarnou pelo
Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e Se fez homem. Também por nós foi
crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao
terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos Céus, onde está sentado à
direita do Pai. De novo há de vir em sua glória, para julgar os vivos e os
mortos; e o seu reino não terá fim (…); o Espírito Santo, Senhor que dá a vida,
e procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: Ele
que falou pelos Profetas.”.
Para tanto,
Jesus revelou que, “assim como Moisés
ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem
seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna”
(Jo 3,14-15), de modo que “hão de olhar para Aquele que
trespassaram” (Jo
19,37). E o ato supremo de Jesus no mundo comporta
constitui a sua glorificação e a do Pai no próprio Jesus. Tanto assim é que,
após a saída de Judas, no fim da Ceia, Jesus disse:
“Agora é que se revela a glória do Filho do Homem e assim se revela n’Ele
a glória de Deus. E, se Deus revela n’Ele a sua glória, também o próprio Deus
revelará a glória do Filho do Homem, e há de revelá-la muito em breve.” (Jo
13,31-32).
***
Ora, Sexta-feira Santa torna-se o
dia central do processo de Jesus. Com efeito, depois da Ceia, na noite de
quinta-feira – em que eucaristicamente entregou o Corpo e o Sangue aos
discípulos, mandando que façam sempre esta Ceia em sua memória, celebrando a
sua morte e ressurreição até que Ele venha, e fazendo-lhes a respetiva
catequese – dirige-Se ao Getsémani para orar e ali é manietado. Em seguida, é
apresentado ao tribunal do Sinédrio, que O declara réu de morte por Se ter
proclamado Filho de Deus (e obviamente ter ultrapassado a Lei e
perdoado pecados),
para ser, depois, apresentado ao tribunal romano na qualidade de Rei e
supostamente um rival de César. Pilatos, mesmo não vendo nada que O incrimine,
manda açoitá-Lo, permite que o coroem de espinhos, apresenta-O ao povo como Rei
dos Judeus (será esta a causa da sua morte, escrita no topo da
cruz em aramaico, grego e latim),
lava ostensivamente as mãos em sinal da sua irresponsabilidade pela morte do
Justo e entrega-O à crucifixão. E, de imediato, desenrola-se a via crucis (com
o cireneu, a Mãe e as outras mulheres)
para o Gólgota, onde é desnudado, pregado na cruz e alçado, entre dois
malfeitores, cumprindo-se a predição plasmada nos dois versículos (14-15) do capítulo 3 do 4.º Evangelho,
acima transcritos, e o v. 17 do Salmo 22.
É de anotar que o ato redentor,
consumado na morte de Cristo (anote-se que a penúltima palavra na
cruz é exatamente “[a obra] está consumada”), tem como beneficiários os homens de todos os
tempos e lugares segundo o que reza o salmista:
“Os pobres comerão e serão saciados;
louvarão o SENHOR, os que o procuram. ‘Vivam para sempre os vossos corações’.
Hão de lembrar-se do SENHOR e voltar-se para Ele todos os confins da terra;
hão de prostrar-se diante dele todos os povos e nações, porque ao SENHOR
pertence a realeza. Ele domina sobre todas as nações.” (Sl
22,27-29).
Todavia, os primeiros para quem o
Senhor pede ao Pai o perdão são os seus algozes, porque não sabem o que fazem,
vindo, logo a seguir, o ladrão arrependimento porque, no meio da caçoada de
todos, incluindo o outro salteador que morreu em castigo proporcionado aos
crimes cometidos, segundo as leis da época, reconheceu a inocência do Crucificado
justo: “Hoje mesmo estarás comigo no
Paraíso”. E não podemos olvidar o pormenor da entrega testamentária da Mãe
ao discípulo amado e do discípulo amado à Mãe de Jesus, ora tornada mãe de
todos os discípulos. E, se o aparente e doloroso desamparo a que o Pai votou o
seu Filho unigénito nos confrange, é de anotar que o Cristo agonizante, como
bom judeu, assume todo o teor do salmo 22, cuja portada é por Ele proferida em
hebraico antigo. Assume, pois, o abandono, a descrença e caçoada dos
circunstantes, a perseguição, mas também as vertentes do louvor, da missão, da
comunidade, da universalidade – o que fica bem expresso no balbucio “Tenho
sede”.
E à real sensação que teve de
abandono do Pai responde por fim: “Pai,
em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Dizem os comentadores que era
invulgar proferirem-se tai palavras para assinalar o último suspiro, pelo que
estas palavras significarão a entrega ao Pai pelos homens, não só do corpo, mas
também do espírito, ou seja, a entrega de Jesus é a entrega total para que a
glória e a redenção sejam também totais. Por outro lado, como o Criador no
princípio, insuflou o espírito vital no barro de que fez o homem (Gn
2,7), também agora
Cristo insufla o sopro vital na massa de que formou a Igreja, estabelecida na
frágil rocha petrina (cf Mt 16,18) – só colmatada pela fé (cf
Mt 16,16), pelo amor
que Pedro expressou em tríplice confissão (cf Jo 21,15-17) e pela oração de Jesus por
Pedro para que a fé não lhe desapareça e, uma
vez convertido, fortaleça os irmãos (cf Lc
22,32).
E esta Igreja, como deduzem os Padres, que mostrou todo o irromper da sua
pujança no dia do Pentecostes, graças à força do Alto que lhe dá o Paráclito, nasce
hoje do lado aberto do divino Crucificado, de que jorrou sangue e água. Com
efeito, São João Crisóstomo
ensina:
“Certamente
[o sangue dum cordeiro tem poder para libertar o homem racional], não porque é
sangue, mas porque prefigura o Sangue do Senhor. (…) Repara donde brotou [o
sangue de Cristo morto] e qual é a sua fonte. Começou a brotar da cruz, e a sua
fonte foi o lado do Senhor. Estando já morto Jesus, diz o Evangelho, e ainda
cravado na cruz, aproximou-se um soldado, trespassou-Lhe o lado com uma lança e
logo saiu água e sangue: água como símbolo do Batismo, sangue como
símbolo da Eucaristia.”.
E, mais adiante, explica a
relação com a Igreja:
“Disse que
esta água e este sangue simbolizavam o Batismo e a Eucaristia. Foi destes
sacramentos que nasceu a Igreja, pelo banho de regeneração e pela renovação do
Espírito Santo, isto é, pelo sacramento do Batismo e pela Eucaristia que
brotaram do lado de Cristo. Foi do lado de Cristo, por conseguinte, que se
formou a Igreja, como foi do lado de Adão que Eva foi formada.” (vd “O
Valor do Sangue de Cristo”, in Das
catequeses de São João Crisóstomo, Liturgia das Horas, CEP).
Por seu turno, Paulo ensina:
“Cristo amou a Igreja e entregou-Se por ela, para a santificar,
purificando-a, no banho da água, pela palavra. Ele quis apresentá-la
esplêndida, como Igreja sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas
santa e imaculada. (…) De facto, ninguém jamais odiou o seu próprio corpo; pelo
contrário, alimenta-o e cuida dele, como Cristo faz à Igreja; porque nós somos
membros do seu Corpo.” (Ef 5,25-27.29-30).
***
Tudo isto aconteceu
historicamente em Sexta-feira Santa, dia da Igreja, dia dos redimidos. Vejamos,
pois, como eles passam este dia a Igreja em sua liturgia, expressando a sua fé
na Cruz.
Desde logo, o invitatório do
Ofício proclama Cristo como Filho de Deus (como exclamou o
centurião e os guardas, Mt 27,54)
e convida à adoração, o que se cumpre rezando o Salmo 95, de exortação
profética, de convite ao louvor a Deus e de apelo à docilidade do povo para com
o achamento de Deus. Vem, a seguir, no Ofício de Leituras, o hino, que pode ser
um cântico à cruz em que se sintetiza o desígnio de Deus sobre o mundo. A
salmodia é constituída pelo Salmo 2, um dos salmos reais, cantando o domínio universal de Deus
e acolhendo as conotações messiânicas que a tradição lhe foi dando (At 4,25; 13,33; Heb 1,5; 5,5); o Salmo 22, cujo teor vem exposto acima; e o Salmo 38, um cântico
penitencial recitado durante o sacrifício memorial de que fala o Levítico e em
que o salmista confessa suportar com paciência uma grave doença. Seguem-se as
leituras com o respetivo responsório breve: Heb 11-28, em que se refere que
Jesus, Sumo Sacerdote, entrou de uma vez para sempre pelo seu próprio Sangue no
santuário Celeste; e um trecho das catequeses de São João Crisóstomo, sobre o Valor
do Sangue de Cristo, como foi referido. E termina com a oração para que o
Senhor atenda esta família dos redimidos.
A Hora de Laudes, iniciada com um hino ao Cordeiro redentor que
Se entregou na Cruz, a árvore santa e gloriosa e insígnia triunfal, canta o Salmo
51, um ato de súplica e um dos salmos penitenciais em que se exprime com dor e
confiança e o arrependimento pelo pecado cometido, em razão do qual Deus não
poupou o próprio Filho que entregou à morte por todos nós (vd antífona); o Cântico de Habacuque (Hab 3,2-4.13a.15-19), uma
oração sobre o tom das lamentações, em que o profeta confessa ter ouvido a
mensagem de Senhor e canta as maravilhas que Ele fez, passadas e futuras; e o Salmo
147 B, um convite a louvar a Deus, que merece ser louvado pela sua providência
relativamente ao funcionamento ordenado do universo. Segue-se a leitura breve,
de Isaías (Is,
52,13-15) sobre como prospera o Servo de Javé, de
desfigurado a exaltado a ponto de assombrar as nações e, em vez o responsório
breve, recita-se a antífona: “Por nosso amor, Cristo obedeceu até à morte, e
morte de cruz”. Vem, a seguir o Cântico de Zacarias, o Benedictus,
em que se proclama a visita de Deus ao seu povo e a redenção que operou, envolvido
pela antífona que menciona o título que encima a cruz indicando a causa da sua
morte: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”. Termina-se com as preces que
evocam a kénosis divina e as suas consequências práticas para as
pessoas, a Igreja e o mundo de hoje, seguidas da oração comum às demais horas
do Ofício.
A Hora Intermédia – iniciada com o hino que evoca as circunstâncias
cósmicas que rodearam a morte de Jesus, bem como a reação dos amigos, do
discípulo amado e do centurião, e convida a dar glória a Cristo Redentor e a
louvar e adorar a Trindade adoração – tem a salmodia composta pelo Salmo 40, de
ação de graças pelos benefícios do passado e
de pedido de ajuda para problemas novos com que se debate o salmista (tem analogias com os poemas do
Servo do Senhor em Isaías e, em vários passos do NT, ganhou sentido
cristológico); o Salmo 54, em que o salmista
pede a ajuda de Deus contra os inimigos que lhe põem em perigo a vida e promete
oferecer o côngruo sacrifício de ação de graças pelo auxílio que lhe virá da parte
de Deus; e o salmo 88, de súplica (com semelhanças com o espírito de Job), em que as queixas e angústias não são retóricas e distantes,
servindo para compor um quadro de oração ou justificando a proclamação de uma
atitude de confiança em Deus, mas em que ameaça do sofrimento é insistente até
ao fim. A antífona, a leitura breve e versículos são consentâneos com as
diversas horas intermédias. Assim, em Tércia, refere-se o momento da crucifixão
e lemos Is 53,2-3 (“cresce como um rebento sem distinção nem beleza”), após o que adoramos e bendizemos Jesus que nos remiu na cruz; em
Sexta, evocam-se as trevas sobre a terra, lemos Is 53,4-5 (“suportou as nossas enfermidades,
foi trespassado mercê das nossas culpas e suas chagas curaram-nos”), após o que pedimos ao Senhor que Se lembre de nós à chega ao Reino;
e, em Noa, menciona-se o brado de abandono sentido por Cristo, lemos Is 53,6-7
(“como ovelha levada ao matadouro
não abriu a boca”), após o que se diz que o Senhor
fez que salmista habitasse nas trevas.
A Hora de Vésperas começa com o hino que bendiz a cruz que nos abriu os
braços de Jesus Redentor; passa à salmodia constituída pelo Salmo 116 B, de
ação de graças (o salmista, que prometera um sacrifício de ação de graças quando se
encontrava em perigo, agora, na assembleia litúrgica, declara o seu
agradecimento, proclamando as lições de fé válidas para todos e os propósitos
pessoais para o futuro); o Salmo 143, de súplica (o último dos salmos penitenciais:
a situação é de grande angústia, vendo-se salmista já no mundo dos mortos, pelo
que pede a Deus que o livre de cair nas garras da morte, e, sabendo que a
resposta de Deus tem ligação com o seu bom comportamento, suplica e promete); e o Cântico da Carta aos Filipenses (Fl 2,6-11), do abaixamento de Jesus, da
condição divina à de servo, da humilhação até à morte e morte de cruz à
exaltação por Deus Pai e proclamação por todos de que Ele é o Senhor, para
glória de Deus Pai. Segue-se a Leitura breve (1Pe 2,21b-24), em que se diz que Jesus Cristo
sofreu por nós deixando-nos o seu exemplo para que o Sigamos. O responsório é
substituído pela antífona como em Laudes. O Cântico de Maria, o Magnificat
– de alegria Senhor, louvor e testemunho da misericórdia infinita de Deus – precede
as preces comemorativas da morte do Senhor e que são intercessão da Igreja por
todos os redimidos, conscientes ou não do ato redentor.
Por fim, é de realçar a celebração litúrgica mais notável do dia:
a celebração litúrgica da tarde.
Após a entrada silenciosa do celebrante e ministros, emerge a oração em
que se evoca a instituição do mistério pascal no Sangue de Cristo a culminar as
misericórdias do Senhor. Segue-se a Liturgia
da Palavra. Consta da leitura de Isaías (Is 52,13 – 53,12), o 4.º
cântico do Servo do Senhor (sob o título Paixão e Glória) – “trespassado por causa das nossas culpas”, retomando o teor
das leituras de Laudes e das horas intermédias; o Salmo 31, tendo como refrão a
exclamação de Jesus “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” e
contendo vários elementos específicos, como súplica, confiança e ação de graças
e concluindo com um hino de louvor e o convite à coragem (no fim, encontra-se o tema da
comunidade: o texto percorre vários matizes que definem uma atitude de oração
modelo); um trecho da Carta aos Hebreus (Heb 4,14-16;5,7-9), que refere que Jesus “aprendeu a obediência e tornou-Se causa de
salvação para todos os que Lhe obedecem”; a aclamação ao Evangelho, que
reconhece o poder e glória no Cristo que Se humilhou; e termina com a proclamação
da Paixão de Jesus segundo João, em que ressalta que o Cordeiro de Deus cumpriu
na cruz tudo o que o Pai Lhe mandar fazer em testemunho da Verdade.
Segue-se a Oração Universal:
com o olhar no grande sacerdote que atravessou os Céus, roga-se: pela Igreja, o
Papa, os ministros e demais fiéis, os catecúmenos, a unidade dos cristãos, os
judeus, quem não crê em Cristo, quem não crê em Deus, os governantes e todos os
atribulados.
Procede-se à solene apresentação e Adoração
da Cruz, com cânticos e o ósculo individual.
Termina-se com a distribuição da Sagrada
Comunhão, a oração final e a oração sobre o Povo.
***
E faz-se a popular via-sacra (de que é exemplo a Via Sacra no Coliseu de Roma,
presidida pelo Papa) a reforçar a piedade e a zelar
pelo mundo tão oprimido e em perigo, com tantos descartados, procurando o foco
de irradiação da esperança, regada pelo sangue derramado na cruz!
2019.04.19 – Louro de Carvalho
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