segunda-feira, 22 de abril de 2019

Páscoa da liberdade, abundância, universalidade e indefetibilidade


Obviamente a Páscoa é a festa da fé cristã que tem a sua base na Ressurreição de Cristo, que, falando do templo do seu corpo (Jo 2,21), desafiara os contemporâneos que teimavam em não O aceitar:Destruí este templo e eu, em três dias, o reedificarei” (Jo 2,19).
Comentando a perícopa do Evangelho de João (Jo 20,1-10) proclamada na missa da manhã da Páscoa, o Bispo do Porto indica as pistas que levam à certeza da ressurreição e à aceitação do mistério: a perceção de Maria Madalena, a pedra de acesso ao túmulo retirada, as ligaduras no chão, o sudário enrolado”. E, admitindo a insuficiência destes sinais para muitos por impossibilidade de demonstração laboratorial ou matemática, considera-os “plenamente reveladores para quem os vive a partir da experiência da proximidade, da fé e do amor”.
Assim, o discípulo que chegou ao túmulo em primeiro lugar “viu e acreditou”. Assenta o prelado portucalense que João (“porventura apelidado de louco pelos comerciantes da estreita rua que, da cidade velha de Jerusalém, saía em direção ao monte Calvário”), o mais jovem dos Apóstolos, fora o único a viver de perto “os dramas do julgamento, crucifixão e sepultura do Senhor”, ou seja, “fez-se ‘próximo’ de Jesus, quando os outros se afastaram”, movido por amor do “Amigo” e da “Mãe do Amigo”, recebendo d’Ele “o sagrado encargo de amparar a Mãe, já viúva e, a partir daquele momento, sem ninguém para cuidar dela”. E terá sido “esta contínua presença junto do Amigo” que a fé na ressurreição “se tornou um dado quase natural” para o “discípulo amado”. Assim, “viu a partir do olhar da afetividade e acreditou confiadamente ou com a naturalidade com que uma criança acredita na mãe” – disse Dom Manuel Linda. Embora a razão não compreendesse tudo, garante o prelado diocesano, “o amor ajudou o coração a abrir-se e a ver” – “intuição amorosa e de proximidade” que lhe permitiu “ver e acreditar antes de todos os outros”. Dito de outro modo, em João, “a alegria pascal maturou sobre uma base de amor fiel”, que “nada nem ninguém pode quebrar ou pôr em causa”. E é a via da proximidade existencial e amorosa com o Senhor que garante o acesso ao mistério central da nossa fé: a ressurreição de Cristo. Com efeito, “comendo e bebendo com Ele”, como invocava Pedro no discurso em Casa de Cornélio, a fé de que “Deus O ressuscitou dos mortos” e “O constituiu juiz dos vivos e dos mortos” torna-se uma “absoluta certeza” – dizia o Bispo do Porto aludindo à perícopa dos Atos dos Apóstolos (At 10, 34a.37-43), assumida como 1.ª leitura da Liturgia da Páscoa, e acrescentava: 
Certeza pregável a ‘toda a casa de Israel’, mais familiarizada com a crença na ressurreição, mas também pregável ao ainda pagão Cornélio e sua família, o qual, curiosamente, o chamou à cosmopolita Cesareia marítima, porque se impressionou com esse testemunho e se dispôs a ser batizado”.
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Este discurso homilético, que envolve a ressurreição com dinamismo da fé e com o amor que se faz próximo, abre para a libertação da descrença, dos germes da destruição, do erro e da morte. E a homilia de Manuel linda na Vigília Pascal, sob o signo “Salvação e luz”, garantia a libertação das trevas, do medo e da tristeza para a luz, para a fortaleza e para a alegria incontida. Por isso, a maior iluminação é a que surge dentro da alma e que se descreve “como alegria, que não pudemos calar e exprimimos com uma luz acesa na nossa mão”, dando por nós “a cantar um aleluia festivo, genuíno e emotivo”. Mas esta alegria pascal postula o testemunho em saída e a comunicação a todos. Aponta para a universalidade. E, se a homilia do prelado portucalense no dia de Páscoa aponta a universalidade da salvação no gesto de Cornélio (a pedir o Batismo a Pedro), pois todo aquele que acredita em Jesus – judeu ou pagão – recebe pelo seu nome a remissão dos pecados (cf At 10,43), a homilia da Vigília Pascal é mesmo apostólica e universalista, como se vê pelo quadro seguinte, concluído a partir dos Evangelhos:   
As mulheres são enviadas a comunicar o facto a Pedro e aos outros discípulos. E é este dado que faz com que a ressurreição do Senhor deixe de ser uma experiência privada, pessoal, sujeita à ilusão, e se torne um acontecimento de toda a Igreja e vivido como celebração e festa coletiva.”.
O homiliante prossegue fazendo a atualização:
Assim tem de acontecer hoje. Páscoa não rima com experiência individual. Tem de ser facto difundido e comunicado a todos. E no ato de se comunicar, de falar dele, de lhe pronunciar o significado, verifica-se a dupla vertente da fé: a transmissão a quem, porventura, andará mais esquecido e o aumento em quem a anuncia. Se pensarmos bem, damo-nos conta de que, quase sempre, na nossa vida, aconteceu uma situação que nos gerou fé ou, pelo menos, nos ‘prendeu’ à fé.”.
E, colocando-nos na situação dos outros, interpela-nos:  
Uma comunicação da nossa experiência de fé não poderia gerar neles uma interrogação e consequente adesão à fé? Então, porque não anunciamos aos outros alguma manifestação do Senhor nas nossas vidas? A nossa fé na ressurreição obriga-me a comunicá-la, tal como às mulheres de que fala o Evangelho?”.
Por fim, exortava:
Nesta Páscoa, ide dizer a todos que, por amor de Deus, ‘não busquem entre os mortos Aquele que está vivo’.”.
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 Porém, na Missa da manhã da Páscoa, o prelado encarece a relevância atual do testemunho “dado por aqueles que vivem a tal proximidade amorosa com o Senhor” em contraponto à “nova cultura de massas, por vezes de base materialista e hedonista, e assegura:
É preciso apresentar o grande ‘sinal’ histórico: ao longo de dois milénios, milhões e milhões de cristãos afinaram a sua existência pela ‘ressurreição’ e celebraram-na ininterruptamente no próprio dia semanal em que aconteceu: no primeiro dia da semana ou domingo. De tal forma que fé em Jesus Cristo, crença na ressurreição, guarda do Domingo como dia absolutamente diferente e celebração festiva [se] aglutinaram numa mesma unidade, qual marca identitária da cultura ocidental humanista.”.
Verificando que esta marca está a perder-se “em detrimento da dignidade pessoal e dos direitos humanos”, denuncia “o novo esclavagismo da laboração contínua, ‘legalmente’ imposta pelos novos senhores do mundo que dominam a economia e, por esta, os governos”. E exemplifica com “os critérios dos ‘turnos’, em setores onde, para [lá] da ganância, nada os justifica, a par dos graves transtornos psicológicos do trabalhador e do fracionamento dos encontros familiares”, o que “está a gerar a ‘morte do Domingo’, o fim dos ritmos semanais, a abolição dos verdadeiros momentos celebrativos e o fracionamento da família e das relações de amizade”. De igual modo, acusa a abertura dominical dos supermercados e centros comerciais como “expressão de um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico”. Tudo isto, na ótica do nosso Bispo, contribui para “gerar uma civilização fria, sem alma, individualista, sem profundidade de relações” e sem outros contactos “que não sejam os da realidade virtual”. E o pregão libertador soa concreto, dirigido aos cristãos, mas tendo todos como destinatários:
Caros cristãos, convoco-vos para esta tarefa urgente de trazer nova alma à nossa cultura mediante a inserção nela da crença profunda na ressurreição. Dizei-o a todos e vivei-a convictamente a partir da proximidade amorosa com o Senhor Jesus. A Páscoa é a alegria do céu que irrompe sobre a terra. A Páscoa é a luz da esperança que desfaz as nossas trevas e angústias. A Páscoa é a forma de percebermos uma nova comunhão entre as pessoas. Jesus está vivo! Brilhe em todos nós a alegria da ressurreição.”.
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No fim da tarde da Páscoa, a RTP1 passou o filme “Ressurreição”, com realização de Kevin Reynolds, segundo argumento seu e de Paul Aiello, um filme dramático que relata a morte e ressurreição de Cristo. O elenco conta, entre outros, com Joseph Fiennes, Tom Felton, Peter Firth e Cliff Curtis.
Depois do controlo da revolta de zelotes liderada por Barrabás, que lutava contra o domínio de Roma, Pôncio Pilatos incumbiu o tribuno Clavius (interpretado por Joseph Fiennes), poderoso militar romano, e o seu assistente Lucius (interpretado por Tom Felton) de investigarem o mistério do sucedido com Yeshua (Jesus) nas semanas subsequentes à crucificação, a fim de desmentir os rumores sobre o ressurgimento do Messias e impedir uma provável rebelião popular em Jerusalém. Para tanto, teriam de localizar o corpo desaparecido. Ora, após buscas intensivas em todos os lugares e sepulturas sem conseguir encontrar o corpo, Clavius procura os seguidores de Jesus, que lhe mostram as razões da sua crença. Clavius, de natureza cética, tendo visto com os próprios olhos o Ressuscitado, vê-se numa luta interior ao tentar conciliar o que lhe dizem os sentidos com o que sempre acreditou ser possível. Pilatos descobre a traição de Clavius e envia um contingente de tropas romanas para o capturar e matar todos os discípulos de Cristo.
Aquando da sua estreia no Brasil, alguns líderes cristãos pronunciaram-se sobre a importância do argumento, considerando-o uma forma de lembrar a importância e significado do sacrifício de Jesus na Cruz. E destacavam a originalidade de os factos terem sido abordados sob o olhar do perseguidor romano, o que é inédito em relação a outras produções que já apresentaram os factos, mas descritos na narrativa bíblica sobre a crucificação e ressurreição de Cristo pelo olhar dos apóstolos ou de Jesus.
O pastor Russell Sheed, doutor em teologia com pós-doutoramento em Novo Testamento, afirmava que a história do filme deve impactar muitas vidas e discorria:
É excelente ter um filme como esse em cartaz. ‘Ressurreição’ conta uma história verídica ontem e hoje que vai impactar muitas vidas, com certeza!”.
Já o pastor Flávio Valvassoura, da Igreja do Nazareno de Campinas, São Paulo, enfatizava:
Esse filme traz a verdadeira e extraordinária mensagem do evangelho que nos motiva e baseia a nossa fé na vida de Cristo em nós”.
Para lá dos líderes evangélicos, homens do catolicismo como Dom Devair Araújo, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, também pronunciaram. E este bispo comentava:
Ressurreição apresenta os evangelhos de forma muito bem contada. Além disso, o filme parte da morte de Jesus e de uma série de factos que levantam um questionamento profundo até nos dias atuais, falar de Jesus hoje é falar da fé. Então, diante da Ressurreição cada um de nós [é chamado] a professar a nossa fé.”.
E Dom Tarcisio Marques, Bispo Auxiliar da Região Episcopal Belém, dizia:
O filme conseguiu abordar, de forma muito muito humanizada, um dos temas mais importantes do Cristianismo, a Ressurreição, com uma história apaixonante. Para nós que somos católicos é uma verdadeira catequese bíblica que vale a pena ser seguida.”.
Mickey Liddel, um dos produtores do filme, assegurando que sempre quis representar a classe cristã no cinema, observou:
Sempre quis contar uma história como essa, que parece um grande filme de Hollywood, mas quero que os cristãos que irão assistir ao filme se sintam representados de forma correta”.
Na verdade, a produção tem um visual espetacular, cenas de ação viscerais e abordagem de mistério de série de investigação policial, que pretende ressoar entre os espectadores cristãos e incrédulos de uma forma impactante. Enquanto se mantém fiel aos ensinamentos do Novo Testamento, Ressurreição conserva um tom atual e, ao mesmo tempo, a sensibilidade para mostrar os conflitos de um homem incrédulo ao se deparar com o inexplicável.
Vi o filme e chamaram-me a atenção a pesca milagrosa com a aparição de Jesus na margem do lago de Tiberíades (Jo 21,1-14) e a missão pastoral de Pedro (Jo 21,15-23).
À ordem de Jesus que aparecera (mas sem = reconhecerem) e pedira algo de comer, que não tinham, os apóstolos lançaram a rede “e, devido à grande quantidade de peixes, já não tinham forças para a arrastar”. E foi na superabundância que o discípulo que Jesus amava O reconheceu e disse a Pedro: “É o Senhor!”. O Ressuscitado faz e testemunha o mistério da abundância do Reino, como o fez em Caná quando Se autorrevelou na transformação da água em vinho bom e muito (vd Jo 2,1-12). Recorde-se que esse episódio do vinho também aconteceu “ao terceiro dia”. E, ao invés do que sucedeu na pesca milagrosa relatada por Lucas em que a rede se rompeu (Lc 5,6-7), agora a rede – quando Jesus mandou que levassem os peixes que apanharam e Pedro subiu à barca e puxou a rede para terra, cheia de peixes grandes – “apesar de serem tantos, a rede não se rompeu”. Não esqueçamos o v 13 a referir que “Jesus aproximou-se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe”. É o gesto eucarístico essencial ao ser e missão da Igreja, que celebra e festeja o Corpo do Senhor no mistério do pão e dele faz dádiva!  
Assim, além da abundância, é de concluir pela indefetibilidade do povo pascal. Com efeito, a pesca milagrosa tem acentuado valor simbólico aludindo à missão da Igreja no mundo: Jesus na praia e os discípulos (“pescadores de homens”: Mc 1,17; Lc 5,10) no mar, com Pedro à frente. Assim, com a não rutura da rede, parece aludir-se à unidade da Igreja e à sua indefetibilidade e a grande quantidade de peixes realçará, além da abundância, a universalidade. O número de 153 peixes é o número simbólico da totalidade. Por outro lado, esta gematria evoca a índole da Igreja como comunidade de amor.
Assim, o amor que o Bispo do Porto realça – e muito bem – em João, agora emerge na tríplice confissão petrina de amor a Jesus Cristo. E, se em Mateus 16,16-18, a base de apoio da firmação da Igreja em Pedro é a fé messiânica e em Lucas 22,32 é a oração de Cristo, aqui em João é o amor de Simão Pedro que suporta o apascentar dos cordeiros e das ovelhas de Cristo. E repare-se que, enquanto Jesus requer um amor divino, profundo intelectual e fator de comunidade, perguntando “agapâs me – amas-me?”, Pedro responde com amor de simples afeição amizade, “Philô se – gosto de ti”. E a tristeza de Pedro por Jesus o questionar uma terceira vez (e, desta feita, perguntando como Simão Pedro o entendia, “phileîs me?”) dever-se-á à conexão que subjetivamente terá feito com a tríplice negação e ao reconhecimento da imperfeição do seu amor.
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Em suma, se a fé é capaz de mover montanhas, o amor total e vivenciado a Cristo e às pessoas em que se encontra presente Cristo (doentes, pobres, oprimidos, explorados, descartados…) moverá corações (o que naturalmente se torna mais difícil) em prol da Páscoa da liberdade e da libertação, da abundância e da unidade, da universalidade e da totalidade, da indefetibilidade e da persistência.
E as portas do inferno não prevalecerão contra ela (a Igreja), porque Jesus Se mantém na praia. Non praevalebunt contra eam. Kai pýlai hadou ou katiskhýsousin autês. (Mt 16,18).
Santa Páscoa!
2019.04.21 – Louro de Carvalho   

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