Obviamente a Páscoa é a festa da fé cristã que tem a sua base
na Ressurreição de Cristo, que, falando do templo do seu corpo (Jo 2,21),
desafiara os contemporâneos que teimavam em não O aceitar: “Destruí
este templo e eu, em três dias, o reedificarei” (Jo 2,19).
Comentando
a perícopa do Evangelho de João (Jo 20,1-10) proclamada na missa da manhã da
Páscoa, o Bispo do Porto indica as pistas que levam à certeza da ressurreição e
à aceitação do mistério: “a perceção de Maria Madalena, a pedra de
acesso ao túmulo retirada, as ligaduras no chão, o sudário enrolado”.
E, admitindo a
insuficiência destes sinais para muitos por impossibilidade de demonstração
laboratorial ou matemática, considera-os “plenamente reveladores para quem os
vive a partir da experiência da proximidade, da fé e do amor”.
Assim, o discípulo que chegou ao túmulo em primeiro lugar “viu e acreditou”. Assenta o prelado portucalense que
João (“porventura
apelidado de louco pelos comerciantes da estreita rua que, da cidade velha de
Jerusalém, saía em direção ao monte Calvário”), o mais jovem dos Apóstolos, fora o único a viver de
perto “os dramas do julgamento, crucifixão e sepultura do Senhor”, ou seja,
“fez-se ‘próximo’ de Jesus, quando os outros se afastaram”, movido por amor do “Amigo”
e da “Mãe do Amigo”, recebendo d’Ele “o sagrado encargo de amparar a Mãe, já
viúva e, a partir daquele momento, sem ninguém para cuidar dela”. E terá sido “esta
contínua presença junto do Amigo” que a fé na ressurreição “se tornou um dado
quase natural” para o “discípulo amado”. Assim, “viu a partir do olhar da
afetividade e acreditou confiadamente ou com a naturalidade com que uma criança
acredita na mãe” – disse Dom Manuel Linda. Embora a razão não compreendesse
tudo, garante o prelado diocesano, “o amor ajudou o coração a abrir-se e a ver”
– “intuição amorosa e de proximidade” que lhe permitiu “ver e acreditar antes
de todos os outros”. Dito de outro modo, em João, “a alegria pascal maturou
sobre uma base de amor fiel”, que “nada nem ninguém pode quebrar ou pôr em
causa”. E é a via da proximidade existencial e amorosa com o Senhor que garante
o acesso ao mistério central da nossa fé: a ressurreição de Cristo. Com efeito,
“comendo e bebendo com Ele”, como invocava Pedro no discurso em Casa de
Cornélio, a fé de que “Deus
O ressuscitou dos mortos” e “O
constituiu juiz dos vivos e dos mortos” torna-se uma “absoluta certeza” – dizia o Bispo do Porto aludindo à perícopa dos Atos dos Apóstolos
(At 10, 34a.37-43), assumida como 1.ª leitura da
Liturgia da Páscoa, e acrescentava:
“Certeza pregável a ‘toda
a casa de Israel’, mais familiarizada com a crença na
ressurreição, mas também pregável ao ainda pagão Cornélio e sua família, o
qual, curiosamente, o chamou à cosmopolita Cesareia marítima, porque se
impressionou com esse testemunho e se dispôs a ser batizado”.
***
Este discurso homilético, que envolve a ressurreição com
dinamismo da fé e com o amor que se faz próximo, abre para a libertação da
descrença, dos germes da destruição, do erro e da morte. E a homilia de Manuel
linda na Vigília Pascal, sob o signo “Salvação e luz”, garantia a libertação
das trevas, do medo e da tristeza para a luz, para a fortaleza e para a alegria
incontida. Por isso, a maior iluminação é a que surge dentro da alma e que se
descreve “como alegria, que não pudemos calar e exprimimos com uma luz acesa na
nossa mão”, dando por nós “a cantar um aleluia festivo, genuíno e emotivo”. Mas
esta alegria pascal postula o testemunho em saída e a comunicação a todos.
Aponta para a universalidade. E, se a homilia do prelado portucalense no dia de
Páscoa aponta a universalidade da salvação no gesto de Cornélio (a pedir o Batismo a Pedro), pois todo aquele que acredita em
Jesus – judeu ou pagão – recebe pelo seu nome a remissão dos pecados (cf At 10,43), a homilia da Vigília Pascal é mesmo
apostólica e universalista, como se vê pelo quadro seguinte, concluído a partir
dos Evangelhos:
“As mulheres são enviadas a comunicar o
facto a Pedro e aos outros discípulos. E é este dado que faz com que a
ressurreição do Senhor deixe de ser uma experiência privada, pessoal, sujeita à
ilusão, e se torne um acontecimento de toda a Igreja e vivido como celebração e
festa coletiva.”.
O homiliante prossegue fazendo a atualização:
“Assim tem de acontecer hoje. Páscoa não
rima com experiência individual. Tem de ser facto difundido e comunicado a
todos. E no ato de se comunicar, de falar dele, de lhe pronunciar o
significado, verifica-se a dupla vertente da fé: a transmissão a quem,
porventura, andará mais esquecido e o aumento em quem a anuncia. Se pensarmos
bem, damo-nos conta de que, quase sempre, na nossa vida, aconteceu uma situação
que nos gerou fé ou, pelo menos, nos ‘prendeu’ à fé.”.
E, colocando-nos na situação dos outros, interpela-nos:
“Uma comunicação da nossa experiência de fé
não poderia gerar neles uma interrogação e consequente adesão à fé? Então,
porque não anunciamos aos outros alguma manifestação do Senhor nas nossas
vidas? A nossa fé na ressurreição obriga-me a comunicá-la, tal como às mulheres
de que fala o Evangelho?”.
Por fim, exortava:
“Nesta Páscoa, ide dizer a todos que, por
amor de Deus, ‘não busquem entre os mortos Aquele que está
vivo’.”.
***
Porém, na Missa da manhã
da Páscoa, o prelado encarece a relevância atual do testemunho “dado por
aqueles que vivem a tal proximidade amorosa com o Senhor” em contraponto à “nova
cultura de massas, por vezes de base materialista e hedonista, e assegura:
“É preciso apresentar o grande ‘sinal’
histórico: ao longo de dois milénios, milhões e milhões de cristãos afinaram a
sua existência pela ‘ressurreição’ e celebraram-na ininterruptamente no próprio
dia semanal em que aconteceu: no primeiro dia da semana ou domingo. De tal
forma que fé em Jesus Cristo, crença na ressurreição, guarda do Domingo como
dia absolutamente diferente e celebração festiva [se] aglutinaram numa mesma
unidade, qual marca identitária da cultura ocidental humanista.”.
Verificando que esta marca está a perder-se “em detrimento da
dignidade pessoal e dos direitos humanos”, denuncia “o novo esclavagismo da
laboração contínua, ‘legalmente’ imposta pelos novos senhores do mundo que
dominam a economia e, por esta, os governos”. E exemplifica com “os critérios
dos ‘turnos’, em setores onde, para [lá] da ganância, nada os justifica, a par
dos graves transtornos psicológicos do trabalhador e do fracionamento dos
encontros familiares”, o que “está a gerar a ‘morte do Domingo’, o fim dos
ritmos semanais, a abolição dos verdadeiros momentos celebrativos e o
fracionamento da família e das relações de amizade”. De igual modo, acusa a abertura
dominical dos supermercados e centros comerciais como “expressão de um certo subdesenvolvimento humano e mesmo económico”.
Tudo isto, na ótica do nosso Bispo, contribui para “gerar uma civilização fria,
sem alma, individualista, sem profundidade de relações” e sem outros contactos “que
não sejam os da realidade virtual”. E
o pregão libertador soa concreto, dirigido aos cristãos, mas tendo todos como destinatários:
“Caros cristãos, convoco-vos para esta
tarefa urgente de trazer nova alma à nossa cultura mediante a inserção nela da
crença profunda na ressurreição. Dizei-o a todos e vivei-a convictamente a
partir da proximidade amorosa com o Senhor Jesus. A Páscoa é a alegria do céu
que irrompe sobre a terra. A Páscoa é a luz da esperança que desfaz as nossas
trevas e angústias. A Páscoa é a forma de percebermos uma nova comunhão entre
as pessoas. Jesus está vivo! Brilhe em todos nós a alegria da ressurreição.”.
***
No fim da tarde da Páscoa, a RTP1
passou o filme “Ressurreição”, com realização
de Kevin Reynolds, segundo argumento seu e de Paul Aiello, um filme dramático que
relata a morte e ressurreição de Cristo. O elenco conta, entre outros, com
Joseph Fiennes, Tom Felton, Peter Firth e Cliff Curtis.
Depois do controlo da revolta de zelotes
liderada por Barrabás, que lutava contra o domínio de Roma, Pôncio Pilatos incumbiu
o tribuno Clavius (interpretado
por Joseph Fiennes),
poderoso militar romano, e o seu assistente Lucius (interpretado por Tom Felton) de investigarem o mistério do sucedido com Yeshua (Jesus) nas semanas subsequentes à crucificação, a fim de desmentir
os rumores sobre o ressurgimento do Messias e impedir uma provável rebelião popular
em Jerusalém. Para tanto, teriam de localizar o corpo desaparecido. Ora, após
buscas intensivas em todos os lugares e sepulturas sem conseguir encontrar o
corpo, Clavius procura os seguidores de Jesus, que lhe mostram as razões da sua
crença. Clavius, de natureza cética, tendo visto com os próprios olhos o Ressuscitado,
vê-se numa luta interior ao tentar conciliar o que lhe dizem os sentidos com o
que sempre acreditou ser possível. Pilatos descobre a traição de Clavius e
envia um contingente de tropas romanas para o capturar e matar todos os
discípulos de Cristo.
Aquando da sua estreia no Brasil, alguns
líderes cristãos pronunciaram-se sobre a importância do argumento,
considerando-o uma forma de lembrar a importância e significado do sacrifício
de Jesus na Cruz. E destacavam a originalidade de os factos terem sido
abordados sob o olhar do perseguidor romano, o que é inédito em relação a
outras produções que já apresentaram os factos, mas descritos na narrativa
bíblica sobre a crucificação e ressurreição de Cristo pelo olhar dos apóstolos
ou de Jesus.
O pastor Russell Sheed, doutor em
teologia com pós-doutoramento em Novo Testamento, afirmava que a história do filme
deve impactar muitas vidas e discorria:
“É
excelente ter um filme como esse em cartaz. ‘Ressurreição’ conta uma história
verídica ontem e hoje que vai impactar muitas vidas, com certeza!”.
Já o pastor Flávio Valvassoura, da
Igreja do Nazareno de Campinas, São Paulo, enfatizava:
“Esse
filme traz a verdadeira e extraordinária mensagem do evangelho que nos motiva e
baseia a nossa fé na vida de Cristo em nós”.
Para lá dos líderes evangélicos, homens
do catolicismo como Dom Devair Araújo, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São
Paulo, também pronunciaram. E este bispo comentava:
“Ressurreição apresenta os evangelhos de
forma muito bem contada. Além disso, o filme parte da morte de Jesus e de uma
série de factos que levantam um questionamento profundo até nos dias atuais,
falar de Jesus hoje é falar da fé. Então, diante da Ressurreição cada um de nós
[é chamado] a professar a nossa fé.”.
E Dom Tarcisio Marques, Bispo
Auxiliar da Região Episcopal Belém, dizia:
“O
filme conseguiu abordar, de forma muito muito humanizada, um dos temas mais
importantes do Cristianismo, a Ressurreição, com uma história apaixonante. Para
nós que somos católicos é uma verdadeira catequese bíblica que vale a pena ser
seguida.”.
Mickey Liddel, um dos produtores do
filme, assegurando que sempre quis representar a classe cristã no cinema,
observou:
“Sempre
quis contar uma história como essa, que parece um grande filme de Hollywood,
mas quero que os cristãos que irão assistir ao filme se sintam representados de
forma correta”.
Na verdade, a produção tem um visual
espetacular, cenas de ação viscerais e abordagem de mistério de série de
investigação policial, que pretende ressoar entre os espectadores cristãos e
incrédulos de uma forma impactante. Enquanto se mantém fiel aos ensinamentos do
Novo Testamento, Ressurreição conserva um tom atual e, ao mesmo tempo, a
sensibilidade para mostrar os conflitos de um homem incrédulo ao se deparar com
o inexplicável.
Vi o filme e
chamaram-me a atenção a pesca milagrosa com a aparição de Jesus na margem do
lago de Tiberíades (Jo 21,1-14) e a missão
pastoral de Pedro (Jo 21,15-23).
À ordem de
Jesus que aparecera (mas sem = reconhecerem) e pedira algo de comer, que não tinham, os apóstolos lançaram a rede “e,
devido à grande quantidade de peixes, já não tinham forças para a arrastar”. E
foi na superabundância que o discípulo que Jesus amava O reconheceu e disse a
Pedro: “É o Senhor!”. O Ressuscitado
faz e testemunha o mistério da abundância do Reino, como o fez em Caná quando
Se autorrevelou na transformação da água em vinho bom e muito (vd Jo 2,1-12). Recorde-se que esse episódio do vinho também
aconteceu “ao terceiro dia”. E, ao invés do que sucedeu na pesca milagrosa relatada
por Lucas em que a rede se rompeu (Lc 5,6-7), agora a rede – quando Jesus mandou que levassem os
peixes que apanharam e Pedro subiu à barca e puxou a rede para terra, cheia de
peixes grandes – “apesar de serem tantos, a rede não se rompeu”. Não
esqueçamos o v 13 a referir que “Jesus
aproximou-se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe”. É o gesto
eucarístico essencial ao ser e missão da Igreja, que celebra e festeja o Corpo
do Senhor no mistério do pão e dele faz dádiva!
Assim, além
da abundância, é de concluir pela indefetibilidade do povo pascal. Com efeito,
a pesca milagrosa tem acentuado valor simbólico aludindo à missão da Igreja no
mundo: Jesus na praia e os discípulos (“pescadores de homens”: Mc 1,17; Lc
5,10) no mar, com Pedro à frente. Assim,
com a não rutura da rede, parece aludir-se à unidade da Igreja e à sua
indefetibilidade e a grande quantidade de peixes realçará, além da abundância,
a universalidade. O número de 153 peixes é o número simbólico da totalidade. Por
outro lado, esta gematria evoca a índole da Igreja como comunidade de amor.
Assim, o
amor que o Bispo do Porto realça – e muito bem – em João, agora emerge na
tríplice confissão petrina de amor a Jesus Cristo. E, se em Mateus 16,16-18, a
base de apoio da firmação da Igreja em Pedro é a fé messiânica e em Lucas 22,32
é a oração de Cristo, aqui em João é o amor de Simão Pedro que suporta o
apascentar dos cordeiros e das ovelhas de Cristo. E repare-se que, enquanto
Jesus requer um amor divino, profundo intelectual e fator de comunidade,
perguntando “agapâs me – amas-me?”,
Pedro responde com amor de simples afeição amizade, “Philô se – gosto de ti”. E a tristeza de Pedro por Jesus o questionar
uma terceira vez (e, desta feita, perguntando como Simão Pedro o entendia,
“phileîs me?”) dever-se-á
à conexão que subjetivamente terá feito com a tríplice negação e ao
reconhecimento da imperfeição do seu amor.
***
Em suma, se
a fé é capaz de mover montanhas, o amor total e vivenciado a Cristo e às
pessoas em que se encontra presente Cristo (doentes, pobres, oprimidos, explorados,
descartados…) moverá corações
(o que naturalmente
se torna mais difícil) em prol da
Páscoa da liberdade e da libertação, da abundância e da unidade, da
universalidade e da totalidade, da indefetibilidade e da persistência.
E as portas
do inferno não prevalecerão contra ela (a Igreja), porque Jesus Se mantém na praia. Non praevalebunt contra eam. Kai pýlai hadou ou katiskhýsousin
autês. (Mt 16,18).
Santa
Páscoa!
2019.04.21 –
Louro de Carvalho
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