quinta-feira, 18 de abril de 2019

Quinta-feira Santa, dia sacerdotal


A opção pelo enunciado em epígrafe não tem a ver somente com o segmento imperativo do relato da Última Ceia “Fazei isto em memória de Mim” (Lc 22,19; 1Cor 11,23.25), no que se costuma ver – e porque não (?) – uma toada da instituição do sacerdócio ministerial.
Pelas possíveis citações bíblicas, nomeadamente dos Evangelhos, podemos chamar-lhe o dia da Eucaristia, pois tanto Mateus como Marcos, Lucas ou Paulo referem o pormenor da instituição da Eucaristia no contexto da Ceia. Podemos com toda a propriedade chamar a este dia o dia do Amor fraterno, porque hoje fica estabelecido o mandato novo do amor de uns para com os outros como Cristo ensinou e fez. Porque se trata de um amor não de palavras, mas de obras, de um amor afetivo e efetivo, de um amor não possessivo, mas oblativo, não de amor erótico, mas de filia e ágape, podemos chamar a este dia do dia do amor em Serviço fraterno.
Porém, se nos fixarmos bem no objetivo do dia, podemos chamar-lhe o dia da Entrega. Com efeito, Jesus “pôs-se à mesa e os Apóstolos com Ele e disse-lhes: ‘Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que já não a voltarei a comer até ela ter pleno cumprimento no Reino de Deus’.” (Lc 22,14-16). Depois, é de considerar que o pão repartido e o cálice de vinho partilhado pelos discípulos são o Corpo do Senhor entregue por nós e o Sangue do Senhor derramado por nós. E tudo com referência ao cumprimento desta Ceia no Reino de Deus ou o Reino do Pai, no que acordam os três sinóticos. E Mateus e Lucas, bem como João colocam aqui a tónica na missão do serviço ao invés do mando ou do poderio e das mordomias terrenas, sendo este serviço um estilo de entrega dedicada sem espera de retribuição. Neste sentido, antes da Sua entrega ao Pai ou em concomitância com ela, Jesus quis entregar-Se aos homens, que são objeto de resgate.
Por outro lado, os sinóticos dão muita importância à Oração de Jesus no Horto das Oliveiras, para cujo cenário convocou os discípulos e, para mais perto, Pedro Tiago e João, a quem pediu que rezassem com Ele, sem que estes o conseguissem. Mas Jesus, num intenso diálogo a sós com o Pai, renuncia, embora com muita dor, à Sua vontade e assume por inteiro o cumprimento da vontade do Pai (Não se faça a minha vontade, mas a tua! – Lc 22,42; cf Mt 26,39.42.44; Mc 14,36.39).
Porém, João no âmbito da revelação de Jesus aos Seus através do grande sinal, refere que Ele, durante a Ceia, que não descreve como os sinóticos (estava já consolidada a fé na Eucaristia e a sua prática, mas não as suas consequências – a batalha de todos os dias), lavou os pés aos discípulos e enxugou-lhos, explicando-lhes o sentido e as consequências deste gesto, que eles devem replicar. Com toda a exigência e realismo entrega-lhes a nova tarefa do amor – ensanduichada pelo anúncio da traição de Judas e pelo da negação de Pedro – tarefa que será a marca distintiva dos discípulos de Cristo o longo do tempo. Depois, dá-lhes muitas e diversas pepitas de ensinamento, revela-Se-lhes como o Caminho, a Verdade e a Vida, promete-lhes por cinco vezes o envio do Paráclito, deixa-lhes a paz, acentua a união entre os discípulos e Ele próprio e deles entre si mesmos, renova o mandamento do amor e alerta-os para o ódio do mundo para com os discípulos, o que acarretará perseguições, mas anuncia que a tristeza se lhes converterá em alegria e fala abertamente, não só por comparações, garantindo a vitória sobre o mundo.   
Depois de feitas todas estas considerações nos capítulos 13 a 16, João transcreve (?) a Oração Sacerdotal de Jesus dedicando-lhe todo o capítulo 17.
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A análise de Bento XVI em 25/01/2012 permite a índole sacerdotal que adjetiva este dia.
Esta oração é compreensível na sua riqueza extrema, se a inserirmos no cenário da festa judaica da expiação, o Yom kippur. O Sumo-sacerdote cumpria a expiação em três etapas – para si mesmo, para a classe sacerdotal e para todo o povo – a fim de restituir ao povo de Israel, após as transgressões do ano, a consciência da reconciliação com Deus, a consciência de povo eleito, ‘povo santo’ no meio dos outros povos.
A oração, inscrita no capítulo 17 do 4.º Evangelho, segue a estrutura da predita festa. Jesus dirige-se ao Pai no momento em que Se oferece a Si mesmo (sacerdote e vítima, altar e cordeiro) ora por Si, pelos apóstolos e por todos aqueles que acreditam, pela Igreja de todos os tempos.
A oração de Jesus por Si mesmo é o pedido da sua glorificação na sua “hora” e “a declaração de plena disponibilidade a entrar, livre e generosamente, no desígnio de Deus Pai que se cumpre no ser entregue e na morte e ressurreição”. A “hora” começou com a traição de Judas e culmina com a elevação de Jesus ressuscitado para o Pai. Jesus comenta a saída de Judas com as seguintes palavras: “Agora o Filho do homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele” (Jo 13,31). Assim, começa a prece sacerdotal, dizendo: “Pai, chegou a hora: glorifica o teu Filho, para que o Filho te glorifique” (Jo 17,1). A glorificação que Jesus pede é o ingresso na obediência plena ao Pai, que O leva à sua condição filial mais completa: “E agora, Pai, glorifica-me diante de ti com aquela glória que Eu tinha em Ti antes da criação do mundo” (Jo 17,5). Este (pedido e disponibilidade) – dizia o Papa Ratzinger – é o primeiro ato do novo sacerdócio de Jesus, que é um doar-se totalmente na cruz, e precisamente na cruz, o supremo gesto de amor, ficando a cruz como sinal de glorificação e de amor.
Depois, temos a prece de intercessão e expiação de Jesus pelos discípulos, que permanecem com Ele. É sobre eles que Jesus diz ao Pai: “Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus e Tu deste-mos, e eles observaram a tua palavra” (Jo 17,6). Ora, como ensinava Bento XVI, “manifestar o nome de Deus aos homens” é a realização duma nova presença do Pai no meio da humanidade: encarnando, Deus “visitou e redimiu seu povo” (Lc 1,68). Esta manifestação não é só uma palavra, mas é realidade em Jesus. Porque Deus está connosco, realizou-se a sua presença connosco, o ser um de nós. Portanto, esta manifestação realiza-se na encarnação e tem o ápice no sacrifício que Jesus realiza na Páscoa de entrega, morte e ressurreição. Em Jesus, Deus entra na carne humana, faz-se próximo de modo novo e único. No cerne desta prece de intercessão e de expiação em prol dos discípulos encontra-se o pedido de consagração. Com efeito, Jesus diz ao Pai:
Eles não são do mundo, como Eu não sou do mundo. Consagra-os na verdade. A tua palavra é verdade. Como Tu me mandaste para o mundo, também Eu os enviei para o mundo; por eles consagro-Me a mim mesmo, a fim de que também eles sejam consagrados na verdade.” (Jo 17,16-19).
Uma vez que só Deus é propriamente “consagrado” ou “Santo”, consagrar quer dizer “transferir uma realidade, uma pessoa ou coisa, para a propriedade de Deus”. Neste sentido, como ensinava o Papa alemão, “consagrar” envolve dois aspetos complementares: separar das coisas comuns, retirar da ambiência da vida pessoal do homem para ser doado totalmente a Deus; e, ficando na posse de Deus, “consagrar” é tornar disponível para o envio, para a missão. Assim, a pessoa consagrada existe para os outros, é doada ao próximo. Doar-se a Deus quer dizer não existir mais para si mesmo, mas para todos. É consagrado/a aquele ou aquela que, como Jesus, se segrega do mundo e se põe à parte para Deus com vista à tarefa que Ele lhe destinar, pelo que está plenamente à disposição de todos. Para os discípulos, consistirá em continuarem a missão de Jesus, serem doados a Deus para estarem assim em missão para todos. Tanto assim é que na tarde da Páscoa, o Ressuscitado, aparecendo aos seus discípulos, dir-lhes-á: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio” (Jo 20,21). E o envio postula o revestimento da força do Alto (Lc 24,49) ou seja, receber o sopro do Espírito Santo, para distribuírem o perdão (cf Jo 19,22); a presença de Jesus com os enviados na missão (Mt 28,20); e a confirmação divina das palavras dos enviados (Mc 16,20).  
Em terceiro lugar, a oração sacerdotal amplia o olhar até ao fim dos tempos. Jesus dirige-se ao Pai para interceder a favor de todos aqueles que forem levados à fé mediante a missão inaugurada pelos apóstolos e continuada na história: “Não oro só por estes, mas também por aqueles que acreditarem em mim mediante a sua palavra”. Jesus reza pela Igreja de todos os tempos, ora também por nós (cf Jo 17,20). A este respeito, ensina o Catecismo da Igreja Católica:
Jesus cumpriu perfeitamente a obra do Pai e a sua oração, assim como o seu sacrifício se estende até à consumação dos tempos. A oração da ‘Hora’ preenche os últimos tempos e leva-os à sua consumação.” (n. 2.749).
O item central da oração sacerdotal de Jesus, dedicada aos discípulos de todos os tempos, é a unidade futura de quantos acreditarem – unidade que não é produto mundano, mas que provém somente da unidade divina e nos chega do Pai, pelo Filho e no Espírito Santo. Jesus invoca, assim, um dom que provém do Céu, mas que tem necessariamente efeito real e percetível na terra. Reza para que todos sejam um só: assim como Pai está nele e Ele está no Pai que também todos eles estejam em Jesus e no Pai, para que o mundo creia que o Pai O enviou (cf Jo 17,21). A unidade dos cristãos, por um lado, é realidade secreta presente no coração dos crentes; e, ao mesmo tempo, deve aparecer com toda a clareza na história para que o mundo creia. Tem, por isso, uma finalidade prática e concreta, devendo acontecer para que todos sejam realmente um só. A unidade dos discípulos futuros, sendo unidade com Jesus, enviado ao mundo pelo Pai, é a fonte originária da eficácia da missão cristã no mundo.
Citando o seu livro Jesus de Nazaré, II, 117s, o Papa Ratzinger discorria:
Podemos dizer que na oração sacerdotal de Jesus se cumpre a instituição da Igreja... Precisamente aqui, no ato da última Ceia, Jesus cria a Igreja. Porque, o que é a Igreja, a não ser a comunidade dos discípulos que, mediante a fé em Jesus Cristo como enviado do Pai, recebe a sua unidade e é envolvida na missão de Jesus de salvar o mundo, conduzindo-o ao conhecimento de Deus? Aqui encontramos realmente uma verdadeira definição da Igreja. A Igreja nasce da oração de Jesus. E esta prece não é apenas palavra: é o gesto em que Ele se ‘consagra’ a Si mesmo, ou seja, se ‘sacrifica’ pela vida do mundo.”.
Por esta unidade rezada por Jesus e recebida e conservada pela Igreja, esta “pode caminhar ‘no mundo’ sem ser ‘do mundo’ (cf Jo 17,16) e viver e agir na missão que lhe foi confiada para que o mundo creia no Filho e no Pai que O enviou”. A Igreja torna-se, pois, o lugar e o instrumento da continuidade da missão de Cristo: conduzir o mundo para fora da alienação do homem em relação a si e a Deus, para fora do pecado, para o mundo voltar a ser o mundo de Deus.
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O discurso de Bento XVI tem respaldo na Carta aos Hebreus. Jesus, o perfeito sacerdote penetrou os céus, pois não precisou de oferecer o sacrifício por Si (só requer a glorificação Sua e a do Pai), pois não conheceu o pecado, mas apenas pelos outros (o seu sacrifício foi totalmente vicário, ou seja, só pelos outros), pois assumiu o nosso pecado para que sejamos salvos; não é um sacrifício reiterado todos os anos, mas feito de uma só vez; não tem um horizonte limitado, mas goza da intimidade ‘cenal’ (de ceia ou banquete) e comunitária de quinta-feira e do drama espetacular de sexta, constituindo o mesmo ato de entrega; não é o sacrifício do cordeiro (ou do novilho) contraposto ao do pão e do vinho de Melquisedeque, mas junta as duas vertentes – corpo e sangue de Jesus (não de animais) feitos, nas espécies de pão e de vinho, excelente alimento e saciedade de todos e cada um dos discípulos e cimentação da comunidade, antecipando a chegada definitiva do Reino e constituindo a forma de reiteração diária do mesmo sacrifício e banquete em todos os tempos e lugares, em benefício dos fracos, doentes e pobres, que se alimentarão e alegrão – estimulando e confirmando a profundidade, o estilo e a prática do amor.
Ora, para tornar possível o usufruto deste dom amorável e sacrificial da Eucaristia realmente instituída, temos a participação dos ministros no sacerdócio de Jesus, Sumo, Eterno e verdadeiramente Único Sacerdote que, instruindo-se a si mesmos e aos outros no ensino dos apóstolos, repetem as palavras e os gestos de Jesus sobre o pão e o vinho, que oferecem em sacrifício ao Pai e dão em comunhão – tudo em memória de Jesus e sua pura e santa oblação. Por consequência necessária, promovem e orientam, como verdadeiros líderes o serviço às consciências e às mesas e a colmatação das necessidades de todos e de cada um, levando o facho da palavra, da santidade e da justiça na caridade às mais longínquas periferias existenciais. No entanto, será paupérrima a ação dos ministros sagrados se não conseguem congregar toda a plêiade de crentes que, incorporados em Cristo e na sua Igreja pelo Batismo e confirmados pelo Crisma da Salvação, são ungidos no Espírito Santo para a consagração de entrega oblativa e missão sustentada exercendo sacerdotalmente em união com os ministros o múnus sacerdotal – deste sacerdócio comum que nos capacita e insta a oferecermos Cristo ao Pai oferendo-nos com Cristo em reparação de nossos erros e dos erros dos outros. Também todos somos sacerdotes intercessores pelos outros junto do Pai e missionários junto dos outros.
Quinta-feira Santa não é o único dia sacerdotal: é, antes, o primeiro do tríduo pascal – um verdadeiro dia da Igreja – e o primeiro de muitíssimos dias sacerdotais. Basta que haja ensino de Evangelho, Eucaristia, com perdão das ofensas, amor e serviço, intercessão e missão!
2019.04.18 – Louro de Carvalho

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