A opção
pelo enunciado em epígrafe não tem a ver somente com o segmento imperativo do
relato da Última Ceia “Fazei isto em
memória de Mim” (Lc 22,19; 1Cor 11,23.25), no que se costuma ver – e
porque não (?)
– uma toada da instituição do sacerdócio ministerial.
Pelas
possíveis citações bíblicas, nomeadamente dos Evangelhos, podemos chamar-lhe o
dia da Eucaristia, pois tanto Mateus como Marcos, Lucas ou Paulo referem o
pormenor da instituição da Eucaristia no contexto da Ceia. Podemos com toda a
propriedade chamar a este dia o dia do Amor fraterno, porque hoje fica
estabelecido o mandato novo do amor de uns para com os outros como Cristo
ensinou e fez. Porque se trata de um amor não de palavras, mas de obras, de um
amor afetivo e efetivo, de um amor não possessivo, mas oblativo, não de amor
erótico, mas de filia e ágape, podemos chamar a este dia do dia do amor em Serviço
fraterno.
Porém,
se nos fixarmos bem no objetivo do dia, podemos chamar-lhe o dia da Entrega.
Com efeito, Jesus “pôs-se à mesa e os Apóstolos
com Ele e disse-lhes: ‘Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa convosco, antes
de padecer, pois digo-vos que já não a voltarei a comer até ela ter pleno
cumprimento no Reino de Deus’.” (Lc
22,14-16). Depois, é de considerar que o pão repartido e o cálice de vinho partilhado
pelos discípulos são o Corpo do Senhor entregue por nós e o Sangue do Senhor
derramado por nós. E tudo com referência ao cumprimento desta Ceia no Reino de
Deus ou o Reino do Pai, no que acordam os três sinóticos. E Mateus e Lucas, bem
como João colocam aqui a tónica na missão do serviço ao invés do mando ou do
poderio e das mordomias terrenas, sendo este serviço um estilo de entrega
dedicada sem espera de retribuição. Neste sentido, antes da Sua entrega ao Pai
ou em concomitância com ela, Jesus quis entregar-Se aos homens, que são objeto
de resgate.
Por outro lado, os sinóticos dão muita importância à Oração
de Jesus no Horto das Oliveiras, para cujo cenário convocou os discípulos e,
para mais perto, Pedro Tiago e João, a quem pediu que rezassem com Ele, sem que
estes o conseguissem. Mas Jesus, num intenso diálogo a sós com o Pai, renuncia,
embora com muita dor, à Sua vontade e assume por inteiro o cumprimento da
vontade do Pai (Não se faça a minha
vontade, mas a tua! – Lc 22,42; cf Mt
26,39.42.44; Mc 14,36.39).
Porém,
João no âmbito da revelação de Jesus aos Seus através do grande sinal, refere
que Ele, durante a Ceia, que não descreve como os sinóticos (estava
já consolidada a fé na Eucaristia e a sua prática, mas não as suas
consequências – a batalha de todos os dias),
lavou os pés aos discípulos e enxugou-lhos, explicando-lhes o sentido e as
consequências deste gesto, que eles devem replicar. Com toda a exigência e
realismo entrega-lhes a nova tarefa do amor – ensanduichada pelo anúncio da
traição de Judas e pelo da negação de Pedro – tarefa que será a marca
distintiva dos discípulos de Cristo o longo do tempo. Depois, dá-lhes muitas e
diversas pepitas de ensinamento, revela-Se-lhes como o Caminho, a Verdade e a
Vida, promete-lhes por cinco vezes o envio do Paráclito, deixa-lhes a paz,
acentua a união entre os discípulos e Ele próprio e deles entre si mesmos,
renova o mandamento do amor e alerta-os para o ódio do mundo para com os
discípulos, o que acarretará perseguições, mas anuncia que a tristeza se lhes
converterá em alegria e fala abertamente, não só por comparações, garantindo a
vitória sobre o mundo.
Depois
de feitas todas estas considerações nos capítulos 13 a 16, João transcreve (?)
a Oração Sacerdotal de Jesus
dedicando-lhe todo o capítulo 17.
***
A análise de Bento XVI em 25/01/2012 permite a índole sacerdotal que
adjetiva este dia.
Esta oração é compreensível na sua riqueza extrema, se a inserirmos no
cenário da festa judaica da expiação, o Yom kippur. O Sumo-sacerdote
cumpria a expiação em três etapas – para si mesmo, para a classe sacerdotal e
para todo o povo – a fim de restituir ao povo de Israel, após as transgressões
do ano, a consciência da reconciliação com Deus, a consciência de povo eleito,
‘povo santo’ no meio dos outros povos.
A oração, inscrita no capítulo 17 do 4.º Evangelho, segue a estrutura da
predita festa. Jesus dirige-se ao Pai no momento em que Se oferece a Si mesmo (sacerdote e vítima, altar e cordeiro) ora por Si, pelos apóstolos e por todos
aqueles que acreditam, pela Igreja de todos os tempos.
A oração de Jesus por Si mesmo é o pedido da sua glorificação na sua
“hora” e “a declaração de plena disponibilidade a entrar, livre e
generosamente, no desígnio de Deus Pai que se cumpre no ser entregue e na morte
e ressurreição”. A “hora” começou com a traição de Judas e culmina com a
elevação de Jesus ressuscitado para o Pai. Jesus comenta a saída de Judas com
as seguintes palavras: “Agora o Filho do
homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele” (Jo 13,31). Assim, começa a prece sacerdotal, dizendo:
“Pai, chegou a hora: glorifica o teu
Filho, para que o Filho te glorifique” (Jo 17,1). A glorificação que Jesus pede é o ingresso na obediência
plena ao Pai, que O leva à sua condição filial mais completa: “E agora, Pai, glorifica-me diante de ti com
aquela glória que Eu tinha em Ti antes da criação do mundo” (Jo 17,5). Este (pedido e disponibilidade) – dizia o Papa Ratzinger – é o
primeiro ato do novo sacerdócio de Jesus, que é um doar-se totalmente na cruz,
e precisamente na cruz, o supremo gesto de amor, ficando a cruz como sinal de
glorificação e de amor.
Depois, temos a prece de intercessão e expiação de Jesus pelos
discípulos, que permanecem com Ele. É sobre eles que Jesus diz ao Pai: “Manifestei o teu nome aos homens que me
deste do mundo. Eram teus e Tu deste-mos, e eles observaram a tua palavra”
(Jo 17,6). Ora, como ensinava Bento XVI, “manifestar
o nome de Deus aos homens” é a realização duma nova presença do Pai no meio da
humanidade: encarnando, Deus “visitou e
redimiu seu povo” (Lc
1,68). Esta manifestação
não é só uma palavra, mas é realidade em Jesus. Porque
Deus está connosco, realizou-se a sua presença connosco, o ser um de nós.
Portanto, esta manifestação realiza-se na encarnação e tem o ápice no
sacrifício que Jesus realiza na Páscoa de entrega, morte e ressurreição. Em
Jesus, Deus entra na carne humana, faz-se próximo de modo novo e único. No
cerne desta prece de intercessão e de expiação em prol dos discípulos
encontra-se o pedido de consagração. Com efeito, Jesus diz ao Pai:
“Eles não são do mundo, como Eu não sou do
mundo. Consagra-os na verdade. A tua palavra é verdade. Como Tu me mandaste
para o mundo, também Eu os enviei para o mundo; por eles consagro-Me a mim
mesmo, a fim de que também eles sejam consagrados na verdade.” (Jo 17,16-19).
Uma vez que só Deus é propriamente “consagrado” ou “Santo”, consagrar
quer dizer “transferir uma realidade, uma
pessoa ou coisa, para a propriedade de Deus”. Neste sentido, como ensinava
o Papa alemão, “consagrar” envolve dois aspetos complementares: separar das coisas comuns, retirar da
ambiência da vida pessoal do homem para ser doado totalmente a Deus; e, ficando
na posse de Deus, “consagrar” é tornar
disponível para o envio, para a missão. Assim, a pessoa consagrada existe
para os outros, é doada ao próximo. Doar-se a Deus quer dizer não existir mais
para si mesmo, mas para todos. É consagrado/a aquele ou aquela que, como Jesus,
se segrega do mundo e se põe à parte para Deus com vista à tarefa que Ele lhe
destinar, pelo que está plenamente à disposição de todos. Para os discípulos,
consistirá em continuarem a missão de Jesus, serem doados a Deus para estarem
assim em missão para todos. Tanto assim é que na tarde da Páscoa, o
Ressuscitado, aparecendo aos seus discípulos, dir-lhes-á: “A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio”
(Jo 20,21). E o envio postula o revestimento da força do Alto (Lc 24,49) ou seja, receber o sopro do Espírito Santo, para distribuírem
o perdão (cf Jo 19,22); a presença de Jesus com os
enviados na missão (Mt
28,20); e a confirmação
divina das palavras dos enviados (Mc 16,20).
Em terceiro lugar, a oração sacerdotal amplia o olhar até ao fim dos
tempos. Jesus dirige-se ao Pai para interceder a favor de todos aqueles que
forem levados à fé mediante a missão inaugurada pelos apóstolos e continuada na
história: “Não oro só por estes, mas
também por aqueles que acreditarem em mim mediante a sua palavra”. Jesus
reza pela Igreja de todos os tempos, ora também por nós (cf Jo 17,20). A este respeito, ensina o Catecismo da Igreja Católica:
“Jesus cumpriu perfeitamente a obra do Pai e
a sua oração, assim como o seu sacrifício se estende até à consumação dos
tempos. A oração da ‘Hora’ preenche os últimos tempos e leva-os à sua
consumação.” (n. 2.749).
O item central da oração sacerdotal de Jesus, dedicada aos discípulos de
todos os tempos, é a unidade futura de
quantos acreditarem – unidade que não é produto mundano, mas que provém
somente da unidade divina e nos chega do Pai, pelo Filho e no Espírito Santo.
Jesus invoca, assim, um dom que provém do Céu, mas que tem necessariamente
efeito real e percetível na terra. Reza para que todos sejam um só: assim como
Pai está nele e Ele está no Pai que também todos eles estejam em Jesus e no
Pai, para que o mundo creia que o Pai O enviou (cf Jo 17,21). A unidade dos cristãos, por um
lado, é realidade secreta presente no coração dos crentes; e, ao mesmo tempo,
deve aparecer com toda a clareza na história para que o mundo creia. Tem, por
isso, uma finalidade prática e concreta, devendo acontecer para que todos sejam
realmente um só. A unidade dos discípulos futuros, sendo unidade com Jesus,
enviado ao mundo pelo Pai, é a fonte originária da eficácia da missão cristã no
mundo.
Citando o seu livro Jesus de Nazaré, II, 117s, o Papa Ratzinger
discorria:
“Podemos dizer que na oração sacerdotal de Jesus
se cumpre a instituição da Igreja... Precisamente aqui, no ato da última Ceia,
Jesus cria a Igreja. Porque, o que é a Igreja, a não ser a comunidade dos
discípulos que, mediante a fé em Jesus Cristo como enviado do Pai, recebe a sua
unidade e é envolvida na missão de Jesus de salvar o mundo, conduzindo-o ao
conhecimento de Deus? Aqui encontramos realmente uma verdadeira definição da
Igreja. A Igreja nasce da oração de Jesus. E esta prece não é apenas palavra: é
o gesto em que Ele se ‘consagra’ a Si mesmo, ou seja, se ‘sacrifica’ pela vida
do mundo.”.
Por esta unidade rezada por Jesus e recebida e conservada pela Igreja,
esta “pode caminhar ‘no mundo’ sem ser ‘do mundo’ (cf Jo 17,16) e viver e agir na missão que lhe foi confiada para que o mundo creia no
Filho e no Pai que O enviou”. A Igreja torna-se, pois, o lugar e o instrumento
da continuidade da missão de Cristo: conduzir o mundo para fora da alienação do
homem em relação a si e a Deus, para fora do pecado, para o mundo voltar a ser
o mundo de Deus.
***
O discurso de Bento XVI tem respaldo na Carta aos Hebreus. Jesus, o
perfeito sacerdote penetrou os céus, pois não precisou de oferecer o sacrifício
por Si (só requer a
glorificação Sua e a do Pai), pois não conheceu o pecado, mas apenas pelos outros (o seu sacrifício foi totalmente
vicário, ou seja, só pelos outros), pois assumiu o nosso pecado para que sejamos salvos; não é
um sacrifício reiterado todos os anos, mas feito de uma só vez; não tem um
horizonte limitado, mas goza da intimidade ‘cenal’ (de ceia ou banquete) e comunitária de quinta-feira e do
drama espetacular de sexta, constituindo o mesmo ato de entrega; não é o
sacrifício do cordeiro (ou
do novilho) contraposto
ao do pão e do vinho de Melquisedeque, mas junta as duas vertentes – corpo e
sangue de Jesus (não de
animais) feitos, nas
espécies de pão e de vinho, excelente alimento e saciedade de todos e cada um
dos discípulos e cimentação da comunidade, antecipando a chegada definitiva do
Reino e constituindo a forma de reiteração diária do mesmo sacrifício e
banquete em todos os tempos e lugares, em benefício dos fracos, doentes e pobres,
que se alimentarão e alegrão – estimulando e confirmando a profundidade, o
estilo e a prática do amor.
Ora, para tornar possível o usufruto deste dom amorável e sacrificial da
Eucaristia realmente instituída, temos a participação dos ministros no
sacerdócio de Jesus, Sumo, Eterno e verdadeiramente Único Sacerdote que,
instruindo-se a si mesmos e aos outros no ensino dos apóstolos, repetem as
palavras e os gestos de Jesus sobre o pão e o vinho, que oferecem em sacrifício
ao Pai e dão em comunhão – tudo em memória de Jesus e sua pura e santa oblação.
Por consequência necessária, promovem e orientam, como verdadeiros líderes o
serviço às consciências e às mesas e a colmatação das necessidades de todos e
de cada um, levando o facho da palavra, da santidade e da justiça na caridade
às mais longínquas periferias existenciais. No entanto, será paupérrima a ação
dos ministros sagrados se não conseguem congregar toda a plêiade de crentes
que, incorporados em Cristo e na sua Igreja pelo Batismo e confirmados pelo
Crisma da Salvação, são ungidos no Espírito Santo para a consagração de entrega
oblativa e missão sustentada exercendo sacerdotalmente em união com os
ministros o múnus sacerdotal – deste sacerdócio comum que nos capacita e insta
a oferecermos Cristo ao Pai oferendo-nos com Cristo em reparação de nossos
erros e dos erros dos outros. Também todos somos sacerdotes intercessores pelos
outros junto do Pai e missionários junto dos outros.
Quinta-feira Santa não é o único dia sacerdotal: é, antes, o primeiro do
tríduo pascal – um verdadeiro dia da Igreja – e o primeiro de muitíssimos dias
sacerdotais. Basta que haja ensino de Evangelho, Eucaristia, com perdão das
ofensas, amor e serviço, intercessão e missão!
2019.04.18 – Louro de
Carvalho
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