Professor em Cambridge, especialista em Educação, trabalha no Cambridge Assessment, a maior agência de
pesquisa sobre avaliação na Europa, conhece os instrumentos internacionais que
avaliam o desempenho dos alunos como o PISA (Programa
Internacional de Avaliação de Alunos) esteve em Portugal e, em entrevista ao Observador, aponta o modo distorcido com que se encara o sistema
finlandês e faz as suas observações sobre o nosso ensino. O seu conhecimento
das metodologias de ensino e de avaliação vigentes em várias partes do mundo será
uma mais-valia na reflexão sobre o andamento do ensino ditado pelas nossas
opções de política educativa.
O professor britânico que reviu o currículo
nacional do seu país elege como fatores de boa influência no bom desempenho dos
sistemas de ensino o rigor, o foco e a coerência. Assim, as opções educativas
não podem andar a reboque de circunstâncias e estados de alma e, por
conseguinte, as metodologias de ensino-aprendizagem (manuais escolares e outros materiais e recursos pedagógicos), o
currículo e as técnicas utilizadas pelos docentes têm de primar pela
coerência.
Acusa o olhar deslumbrado para a prestação dos
alunos finlandeses em 2000, referindo que essa boa prestação resulta do
trabalho desenvolvido nas décadas de 60 a 90 do século XX,
Reconhece as mais-valias do sistema de ensino finlandês, mas sustenta que
“as suas maiores forças estão na formação dos professores e nos recursos
escolares de alta qualidade”. E diz que o panorama agora é diferente, como
especifica:
“As escolas finlandesas tornaram-se mais
autónomas, embora não tanto quanto as pessoas pensam, até porque continua a
haver muita avaliação interna, e houve algumas mudanças na sociedade. (…) Alguns
dos problemas que aconteceram na Finlândia não foram percebidos por quem estava
a olhar de fora: a partir de 2000, fecharam algumas pequenas escolas rurais e
houve muita competição entre escolas. Isto gerou tensão nas zonas urbanas e uma
grande variação de qualidade entre escolas e dentro delas, o que levou a estes
problemas estruturais. ”.
Por isso,
assegurando não se dever continuar a pensar que
é na Finlândia que se faz o que é mais correto, é perentório em vincar:
“Francamente, eu faria o que eles fizeram no
passado e não o que estão a fazer agora. Sabemos que o que a Finlândia fez no
passado funcionou. E o que fizeram no passado é o que Xangai e Singapura fazem
agora. E esses países continuam a melhorar.”.
***
Paulo Ginote
(como fica
registado no “educare.pt”) diz que, ao analisar
os resultados dum sistema educativo com bom desempenho, é de considerar “um
conjunto de variáveis que, por definição, não são invariáveis para todas as sociedades
e momentos históricos”. E elenca os vários fatores cuja conjugação levou ao
famigerado sucesso de países como a Finlândia, de que se destacam:
“Uma alfabetização quase total da população
desde o início do século XX, o que permite que as famílias funcionem como um
‘ativo’ para os alunos sempre que precisam de acompanhamento para as suas
tarefas e estudo fora da escola; uma grande homogeneidade cultural e étnica da
população, que remete a questão da ‘inclusão’ para nichos específicos de
problemas de aprendizagem e não para a necessidade de incorporar minorias que
têm maior dificuldade em assimilar um modelo curricular pensado para uma
realidade específica”.
E Guinote
prossegue frisando o “baixo nível de
desigualdade socioeconómica que permite que os alunos partam numa situação de
razoável igualdade de oportunidades, sem necessidade de fortes mecanismos
compensatórios nas escolas” (o leque de
‘diferença’ nas escolas finlandesas é muito mais baixo do que nas nossas, assim
como a necessidade de mecanismos ‘inclusivos’); a opção (até mercê de razões
geográfico-demográficas) por escolas de média ou pequena dimensão indutoras duma relação de
proximidade entre as escolas e as comunidades”; e a “forte consciência ética e
de responsabilização pessoal pelo desempenho académico” (ou profissional) que torna redundantes leis impositivas. E vinca a adequação deste modelo
a situações socioeconómicas opostas:
“Este modelo lida muito bem com sociedades
de países desenvolvidos, com baixa diversidade étnica e cultural ou crescentes
bolsas de pobreza, assim como, curiosamente, está pouco preparado para lidar com
uma verdadeira diversidade”.
Por outro lado, na esteira de Oates, Guinote lembra que, aquando do largo
elogio ao modelo finlandês (ou a outros do norte da Europa), se esqueceu “este tipo de realidade
que começou um processo de forte erosão nos últimos 20 anos”, como explica:
“A Suécia, ainda antes da Finlândia,
demonstrou que a chegada de grupos culturais minoritários e algum agravamento
da desigualdade socioeconómica levava a uma pressão sobre o sistema educativo
para o qual ele não estava preparado, começando os resultados a declinar (como
aconteceu com a própria Alemanha)”.
Ademais,
sustenta que, paradoxalmente ao que defendem algumas ideologias, o século XXI
não é “o mais adequado ao modelo finlandês”, por
o seu dinamismo estar limitado pela natureza da sociedade finlandesa
tradicional” e que Portugal nunca reunira as condições que levaram ao
desenvolvimento educacional finlandês durante o século XX. Por isso, alerta:
“Quando se insiste em tentar emular algumas
das suas soluções estamos a fazê-lo no momento errado, nas circunstâncias
erradas. Por falta de conhecimentos de História dos sistemas educativos, os
nossos ‘especialistas’ e diversos governantes têm tomado opções erradas por
isso mesmo.”.
***
Por seu turno, José Eduardo Lemos, presidente do Conselho das Escolas, olha
para a entrevista de Tim Oates como “uma pedrada no charco” relativamente à
situação do nosso sistema educativo ou “um soar de alarmes” para as escolas e os
governantes. E a primeira conclusão que tira é que “a educação melhora quando mantemos a coerência do sistema educativo e
nos limitamos a introduzir-lhe alterações que o tornem mais rigoroso e
escrutinável”. Por outro lado, assenta em que “uma boa educação escolar” não
se compatibiliza “com bruscas alterações curriculares, desalinhadas [d]o
percurso educativo anterior e associadas a discursos políticos incoerentes”. E
dá o exemplo do “combate verbal à ‘obesidade’ curricular”, que induziu
alterações que ampliam o número de disciplinas do currículo e dispersam a ação
dos professores “por um conjunto de
tarefas e objetivos que dificilmente concorrem para o sucesso escolar”.
Depois, citando o professor Santana Castilho, acusa o atual currículo como
“um vazadouro para onde se despejam a ‘autonomia e flexibilidade’, a
‘Cidadania’, as ‘DAC’, a ‘inclusão’, a ‘educação rodoviária’, o
‘empreendedorismo’, a ‘estratégia nacional’ para isto e para aquilo”. E tudo,
em seu entender, distrairá as escolas e os professores, desfocando-os do essencial.
Sobre o atual modelo de avaliação, diz que afasta os professores da boa
avaliação formativa, enaltecida por Oates, pois, em sua opinião, o que promove
a aprendizagem é fazer perguntas aos alunos em aula para verificar o que sabem
e permitir ao professor agir sobre o que ainda não conseguiram aprender e para
que todos aprendam – o que, do meu ponto de vista, é redutor, dado que a
avaliação formativa indutora da aprendizagem não se restringe ao mecanismo pergunta-resposta
– há outras modalidades e instrumentos –, embora esteja de total acordo com que
os papéis e formulários em excesso só estorvam. Com efeito, como indica Eduardo
Lemos, uma boa educação “não casa com modelos de avaliação que não corresponsabilizam
os avaliados (alunos) e, pior, que não os desafiam para melhores desempenhos”. E defende:
“Para uma educação de qualidade, é
absolutamente necessário o escrutínio e a avaliação externa. Só assim
perceberemos (e poderemos agir corrigindo o necessário) se aquilo que seria
suposto ensinar e aprender foi ensinado e apre(e)ndido. Penso que foi um erro
político de monta acabar com as provas e exames nacionais, que pagaremos caro.”.
Está de acordo – e bem – com Tim Oates ao referir que “relaxar o currículo nacional e relaxar a avaliação nunca são boas
ideias”. Porém, não me parece que a perda de provas nacionais seja o axe.
Ao invés, um currículo coerente e diversificado deveria ter como acompanhante e
como corolário uma boa avaliação diagnóstica, formativa e sumativa em regime
interno ou a nível de escolas de contextos similares – no que deveria ser
secundada por avaliação aferida em regime de amostragem para induzir alterações
sistémicas. Ainda assim, realça mais dados da entrevista de Oates. Um deles é
“o papel central dos professores na qualidade da educação” e a aposta “ao nível
da sua formação”. Neste sentido, contraria a ideia do “matetocentrismo” tão
acentuada na década de 80 e cujas consequências estão num exacerbado patamar de
conceção e atuação. Por outro lado, ignora qualquer “política de reforço da
qualidade da formação dos professores portugueses”, no que me parece injusto.
Contudo, tem razão ao verberar as recentes políticas dos diversos governos, que
“afugentaram os professores do sistema e provocaram desinteresse dos jovens
pela profissão”. E, assim, como opina, corremos “o risco de entrar num círculo vicioso: a falta de ‘clientes’ leva as
universidades a desinvestir na formação de jovens candidatos à profissão e
estes a disporem de oferta muito reduzida, logo pouco eficaz”.
Quanto aos resultados escolares na Finlândia, anota (com quem inventa a pólvora) que se verificaram em tempos de currículo nacional e de pouca autonomia
curricular das escolas. Por isso, discorre:
“Esta ideia contraria o atual discurso
político, assente na tese de que mais autonomia e flexibilidade curricular
promoverão maior sucesso escolar. Veremos se resultados [os] escolares
confirmarão ou infirmarão esta tese. Tendo mais para a segunda hipótese.”.
E, para
sustentar o seu pensamento pessimista em coerência com o que disse – e mal –,
em tempos, sobre rankings e a sua
escola, verifica:
“No atual sistema educativo, excessivamente centralizado no que concerne
aos recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas nunca se interessaram
por ter mais autonomia curricular. E isto comparava-se facilmente, bastando
observar o que aconteceu no tempo do anterior Governo, em que as escolas com
contrato de autonomia tiveram possibilidade de gerir 25% do currículo e, se não
todas, a esmagadora maioria, nunca utilizaram essa faculdade. Daí que a atual
solução preveja, melhor, ‘ofereça à força’ às escolas uma ‘autonomia e flexibilidade’
de zero a 25%. (…) A verdade é que o que as escolas sempre quiseram – e nunca
lhes foi concedido – foi alguma autonomia administrativa, financeira e de
gestão dos recursos humanos e materiais.”.
***
Também Santana Castilho comentou a entrevista de Oates, de que realça a
importância de se estruturarem as tarefas, como no modelo asiático, focando-as
no sentido de se usarem os livros de fichas para motivar aprendizagens fora da
sala de aula. E as questões a formular devem espicaçar o conhecimento, instar a
vontade de aprender e estimular o raciocínio. E Oates vinca:
“Nós também queremos que elas [as crianças] memorizem
e que se lembrem das coisas. Na Estónia, onde se diz que existe um currículo
baseado em competências, é esperado que as crianças memorizem as tabelas da
multiplicação, tal como em Xangai, e elas memorizam-nas antes ainda de as
entenderem. Porque é necessário tê-las memorizadas para fazer trabalho que ajuda
a perceber a multiplicação.”.
E, sobre a avaliação, o professor
britânico propõe muito mais avaliação no dia a dia,
“não para dar notas”, mas para perceber se os alunos perceberam as ideias e dominaram
o conhecimento”, pois, “sempre que se resume o conhecimento de uma criança numa
nota, (…) estamos a perder informação”. Concorda com projetos que visem
eliminar a retenção, mas com uma ressalva:
“Tem de se ter certeza de que estamos a
falar de alta conquista e alta equidade na educação e conhecimento, e não um a
sacrificar-se em prol do outro”.
Quanto ao
elevado nível de retenções, Oates propõe a leitura das estatísticas da retenção
e suas causas para definir estratégias e intervenções para travar o insucesso
escolar.
Em sua
opinião, o país deu passos positivos na qualidade dos professores, dos manuais
e dos materiais. Porém, a sobrecarga do currículo continua e deve ser aliviada.
E aponta:
“Nos primeiros anos, é essencial saber ler e
escrever, porque não é uma coisa natural. É importante ter discussões ricas em
todas as matérias para desenvolver a oralidade e a habilidade para trabalhar
com outras crianças. É essencial saber conceitos científicos fundamentais, que
são importantes para perceber outros conceitos de história ou de geografia, por
exemplo. Literacia, matemática, ciência e, claro, cultura. Literatura, história
e geografia, educação física.”.
Pensa que a distinção entre conhecimento e competências
é uma “falsa distinção”, pois nós somos o que nós sabemos e “o conhecimento é
fundamental para o desempenho”.
Concedendo que o desempenho em provas internacionais tem melhorado,
observou:
“Acho que a introdução das provas nacionais
levantou as expectativas dos professores e esses testes mais formais permitiram
aos professores saber que crianças percebiam e não percebiam a matéria. Isso
foi importante. A introdução de bons manuais escolares também foi importante e
sei que foi dada alguma atenção à qualidade do material pelo anterior governo.
Há evidências internacionais que mostram que isso foi muito importante.”.
Vê alguns riscos na liberdade das escolas em gerirem 25% do seu tempo e
currículo, bem como na flexibilidade curricular, um dos quais reside na interpretação
da flexibilidade, pois, como disse, “se introduzirmos alguma liberdade nas
escolas, temos de garantir que essa quota do conhecimento principal não se
perde, já que todas as crianças devem ter acesso a ela”.
O professor Castilho não ficou surpreendido com a entrevista e resume o que
leu numa frase: “Toda a entrevista é uma
diplomática reprovação das políticas educativas portuguesas do momento”. Enfatizou
duas ideias: a defesa da necessidade de não menorizar a memorização ao serviço
da aprendizagem; e a lapidar resposta à questão sobre o que se faz em Portugal,
“relaxar o currículo nacional e relaxar a
avaliação nunca são boas ideias”.
Refere que a memorização é mais uma posição proscrita pelo politicamente correto
da onda da ‘flexibilidade’ dominante. E sustenta que “as palermices
pedagógicas” criadas em Portugal têm semelhanças com algumas políticas que
começaram a produzir o declínio do sistema finlandês. Exemplifica-o com o facto
de, ao invés da coerência curricular preconizada por Tim Oates, o Secretário de
Estado João Costa ter afirmado publicamente, ainda há dias, querer
‘indisciplinar’ o currículo. E explica ao “educare.pt”:
“As políticas educativas finlandesas de 2000
não são, de facto, responsáveis pelos êxitos conhecidos e celebrados em 2000.
Lá (como cá) uns fazem o trabalho e outros colhem os louros. Em Educação, os
resultados do que se faz hoje tornam-se evidentes 10/15 anos depois. Mas são
reclamados por quem está no palco na altura.”.
E lembra que Nuno Crato reivindicou os louros obtidos em sede de PISA,
insinuando que, no futuro, “quando as barbaridades que agora estão a ser feitas
produzirem maus resultados”, a maioria se terá esquecido dos nomes dos responsáveis.
E o “educare.pt” nomeia António
Costa, João Costa, Alexandra Leitão e Tiago Brandão Rodrigues. Esquece Passos e
Crato, porquê?
Castilho, destacando algumas passagens da entrevista de Oates, cruza-as com
a nossa realidade, discorrendo contra o Secretário de Estado e contra a
municipalização no setor:
“A ‘liberalidade’ para as escolas decidirem
sobre 25% do currículo (ou total, desde que alinhem na fraude de garantir a
anulação dos chumbos) é um crime pedagógico, que nada tem que ver com
autonomia. Mas não é só a irresponsabilidade do Secretário de Estado que é
criticável. É a orientação para a chamada ‘municipalização’ que, em limite,
pode introduzir diferenças abissais (e inconstitucionais) em sede de qualidade
do sistema de ensino.”.
Ora, se
Oates critica as orientações voláteis, mas salienta os avanços na qualidade do
ensino obtida em Portugal, Castilho diz que tudo isto (rigor,
qualidade dos manuais e coerência dos curricula como vetores determinantes da
qualidade) está, entre nós, em perda no
momento atual:
“Baixou a exigência de rigor e temos elevadas a iniciativas de alto
mérito inovador, várias experiências pedagógicas com base na abolição do uso
dos tradicionais manuais”.
E alerta
para o que Oates denuncia de consequências do acento na classificação e rankings:
“Do mesmo passo, alude subtilmente à confusão entre o conceito de
avaliação educacional (que falha rotundamente entre nós) com o conceito de
classificação que, extremado, leva à competição malsã entre as escolas”.
***
Mas a
hiperfilia dos exames induz o desdém por vertentes basilares da aprendizagem; e
o ensino baseado em projetos casa o currículo nacional (não
objeto de corte) a reformular
quando necessário.
2019.04.23 –
Louro de Carvalho
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