quarta-feira, 24 de abril de 2019

Tim Oates critica com alguma razão (não toda) o ensino português


Professor em Cambridge, especialista em Educação, trabalha no Cambridge Assessment, a maior agência de pesquisa sobre avaliação na Europa, conhece os instrumentos internacionais que avaliam o desempenho dos alunos como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) esteve em Portugal e, em entrevista ao Observador, aponta o modo distorcido com que se encara o sistema finlandês e faz as suas observações sobre o nosso ensino. O seu conhecimento das metodologias de ensino e de avaliação vigentes em várias partes do mundo será uma mais-valia na reflexão sobre o andamento do ensino ditado pelas nossas opções de política educativa.  
O professor britânico que reviu o currículo nacional do seu país elege como fatores de boa influência no bom desempenho dos sistemas de ensino o rigor, o foco e a coerência. Assim, as opções educativas não podem andar a reboque de circunstâncias e estados de alma e, por conseguinte, as metodologias de ensino-aprendizagem (manuais escolares e outros materiais e recursos pedagógicos), o currículo e as técnicas utilizadas pelos docentes têm de primar pela coerência.   
Acusa o olhar deslumbrado para a prestação dos alunos finlandeses em 2000, referindo que essa boa prestação resulta do trabalho desenvolvido nas décadas de 60 a 90 do século XX,
Reconhece as mais-valias do sistema de ensino finlandês, mas sustenta que “as suas maiores forças estão na formação dos professores e nos recursos escolares de alta qualidade”. E diz que o panorama agora é diferente, como especifica:
As escolas finlandesas tornaram-se mais autónomas, embora não tanto quanto as pessoas pensam, até porque continua a haver muita avaliação interna, e houve algumas mudanças na sociedade. (…) Alguns dos problemas que aconteceram na Finlândia não foram percebidos por quem estava a olhar de fora: a partir de 2000, fecharam algumas pequenas escolas rurais e houve muita competição entre escolas. Isto gerou tensão nas zonas urbanas e uma grande variação de qualidade entre escolas e dentro delas, o que levou a estes problemas estruturais. ”. 
Por isso, assegurando não se dever continuar a pensar que é na Finlândia que se faz o que é mais correto, é perentório em vincar:
Francamente, eu faria o que eles fizeram no passado e não o que estão a fazer agora. Sabemos que o que a Finlândia fez no passado funcionou. E o que fizeram no passado é o que Xangai e Singapura fazem agora. E esses países continuam a melhorar.”.
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Paulo Ginote (como fica registado no “educare.pt) diz que, ao analisar os resultados dum sistema educativo com bom desempenho, é de considerar “um conjunto de variáveis que, por definição, não são invariáveis para todas as sociedades e momentos históricos”. E elenca os vários fatores cuja conjugação levou ao famigerado sucesso de países como a Finlândia, de que se destacam:
Uma alfabetização quase total da população desde o início do século XX, o que permite que as famílias funcionem como um ‘ativo’ para os alunos sempre que precisam de acompanhamento para as suas tarefas e estudo fora da escola; uma grande homogeneidade cultural e étnica da população, que remete a questão da ‘inclusão’ para nichos específicos de problemas de aprendizagem e não para a necessidade de incorporar minorias que têm maior dificuldade em assimilar um modelo curricular pensado para uma realidade específica”. 
E Guinote prossegue frisando o “baixo nível de desigualdade socioeconómica que permite que os alunos partam numa situação de razoável igualdade de oportunidades, sem necessidade de fortes mecanismos compensatórios nas escolas” (o leque de ‘diferença’ nas escolas finlandesas é muito mais baixo do que nas nossas, assim como a necessidade de mecanismos ‘inclusivos’); a opção (até mercê de razões geográfico-demográficas) por escolas de média ou pequena dimensão indutoras duma relação de proximidade entre as escolas e as comunidades”; e a “forte consciência ética e de responsabilização pessoal pelo desempenho académico” (ou profissional) que torna redundantes leis impositivas. E vinca a adequação deste modelo a situações socioeconómicas opostas:  
Este modelo lida muito bem com sociedades de países desenvolvidos, com baixa diversidade étnica e cultural ou crescentes bolsas de pobreza, assim como, curiosamente, está pouco preparado para lidar com uma verdadeira diversidade”.
Por outro lado, na esteira de Oates, Guinote lembra que, aquando do largo elogio ao modelo finlandês (ou a outros do norte da Europa), se esqueceu “este tipo de realidade que começou um processo de forte erosão nos últimos 20 anos”, como explica:
A Suécia, ainda antes da Finlândia, demonstrou que a chegada de grupos culturais minoritários e algum agravamento da desigualdade socioeconómica levava a uma pressão sobre o sistema educativo para o qual ele não estava preparado, começando os resultados a declinar (como aconteceu com a própria Alemanha)”.
Ademais, sustenta que, paradoxalmente ao que defendem algumas ideologias, o século XXI não é “o mais adequado ao modelo finlandês”, por o seu dinamismo estar limitado pela natureza da sociedade finlandesa tradicional” e que Portugal nunca reunira as condições que levaram ao desenvolvimento educacional finlandês durante o século XX. Por isso, alerta:
Quando se insiste em tentar emular algumas das suas soluções estamos a fazê-lo no momento errado, nas circunstâncias erradas. Por falta de conhecimentos de História dos sistemas educativos, os nossos ‘especialistas’ e diversos governantes têm tomado opções erradas por isso mesmo.”.
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Por seu turno, José Eduardo Lemos, presidente do Conselho das Escolas, olha para a entrevista de Tim Oates como “uma pedrada no charco” relativamente à situação do nosso sistema educativo ou “um soar de alarmes” para as escolas e os governantes. E a primeira conclusão que tira é que “a educação melhora quando mantemos a coerência do sistema educativo e nos limitamos a introduzir-lhe alterações que o tornem mais rigoroso e escrutinável”. Por outro lado, assenta em que “uma boa educação escolar” não se compatibiliza “com bruscas alterações curriculares, desalinhadas [d]o percurso educativo anterior e associadas a discursos políticos incoerentes”. E dá o exemplo do “combate verbal à ‘obesidade’ curricular”, que induziu alterações que ampliam o número de disciplinas do currículo e dispersam a ação dos professores “por um conjunto de tarefas e objetivos que dificilmente concorrem para o sucesso escolar”.
Depois, citando o professor Santana Castilho, acusa o atual currículo como “um vazadouro para onde se despejam a ‘autonomia e flexibilidade’, a ‘Cidadania’, as ‘DAC’, a ‘inclusão’, a ‘educação rodoviária’, o ‘empreendedorismo’, a ‘estratégia nacional’ para isto e para aquilo”. E tudo, em seu entender, distrairá as escolas e os professores, desfocando-os do essencial.
Sobre o atual modelo de avaliação, diz que afasta os professores da boa avaliação formativa, enaltecida por Oates, pois, em sua opinião, o que promove a aprendizagem é fazer perguntas aos alunos em aula para verificar o que sabem e permitir ao professor agir sobre o que ainda não conseguiram aprender e para que todos aprendam – o que, do meu ponto de vista, é redutor, dado que a avaliação formativa indutora da aprendizagem não se restringe ao mecanismo pergunta-resposta – há outras modalidades e instrumentos –, embora esteja de total acordo com que os papéis e formulários em excesso só estorvam. Com efeito, como indica Eduardo Lemos, uma boa educação “não casa com modelos de avaliação que não corresponsabilizam os avaliados (alunos) e, pior, que não os desafiam para melhores desempenhos”. E defende:
Para uma educação de qualidade, é absolutamente necessário o escrutínio e a avaliação externa. Só assim perceberemos (e poderemos agir corrigindo o necessário) se aquilo que seria suposto ensinar e aprender foi ensinado e apre(e)ndido. Penso que foi um erro político de monta acabar com as provas e exames nacionais, que pagaremos caro.”. 
Está de acordo – e bem – com Tim Oates ao referir que “relaxar o currículo nacional e relaxar a avaliação nunca são boas ideias”. Porém, não me parece que a perda de provas nacionais seja o axe. Ao invés, um currículo coerente e diversificado deveria ter como acompanhante e como corolário uma boa avaliação diagnóstica, formativa e sumativa em regime interno ou a nível de escolas de contextos similares – no que deveria ser secundada por avaliação aferida em regime de amostragem para induzir alterações sistémicas. Ainda assim, realça mais dados da entrevista de Oates. Um deles é “o papel central dos professores na qualidade da educação” e a aposta “ao nível da sua formação”. Neste sentido, contraria a ideia do “matetocentrismo” tão acentuada na década de 80 e cujas consequências estão num exacerbado patamar de conceção e atuação. Por outro lado, ignora qualquer “política de reforço da qualidade da formação dos professores portugueses”, no que me parece injusto. Contudo, tem razão ao verberar as recentes políticas dos diversos governos, que “afugentaram os professores do sistema e provocaram desinteresse dos jovens pela profissão”. E, assim, como opina, corremos “o risco de entrar num círculo vicioso: a falta de ‘clientes’ leva as universidades a desinvestir na formação de jovens candidatos à profissão e estes a disporem de oferta muito reduzida, logo pouco eficaz”. 
Quanto aos resultados escolares na Finlândia, anota (com quem inventa a pólvora) que se verificaram em tempos de currículo nacional e de pouca autonomia curricular das escolas. Por isso, discorre:
Esta ideia contraria o atual discurso político, assente na tese de que mais autonomia e flexibilidade curricular promoverão maior sucesso escolar. Veremos se resultados [os] escolares confirmarão ou infirmarão esta tese. Tendo mais para a segunda hipótese.”. 
E, para sustentar o seu pensamento pessimista em coerência com o que disse – e mal –, em tempos, sobre rankings e a sua escola, verifica:
No atual sistema educativo, excessivamente centralizado no que concerne aos recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas nunca se interessaram por ter mais autonomia curricular. E isto comparava-se facilmente, bastando observar o que aconteceu no tempo do anterior Governo, em que as escolas com contrato de autonomia tiveram possibilidade de gerir 25% do currículo e, se não todas, a esmagadora maioria, nunca utilizaram essa faculdade. Daí que a atual solução preveja, melhor, ‘ofereça à força’ às escolas uma ‘autonomia e flexibilidade’ de zero a 25%. (…) A verdade é que o que as escolas sempre quiseram – e nunca lhes foi concedido – foi alguma autonomia administrativa, financeira e de gestão dos recursos humanos e materiais.”. 
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Também Santana Castilho comentou a entrevista de Oates, de que realça a importância de se estruturarem as tarefas, como no modelo asiático, focando-as no sentido de se usarem os livros de fichas para motivar aprendizagens fora da sala de aula. E as questões a formular devem espicaçar o conhecimento, instar a vontade de aprender e estimular o raciocínio. E Oates vinca:
Nós também queremos que elas [as crianças] memorizem e que se lembrem das coisas. Na Estónia, onde se diz que existe um currículo baseado em competências, é esperado que as crianças memorizem as tabelas da multiplicação, tal como em Xangai, e elas memorizam-nas antes ainda de as entenderem. Porque é necessário tê-las memorizadas para fazer trabalho que ajuda a perceber a multiplicação.”. 
E, sobre a avaliação, o professor britânico propõe muito mais avaliação no dia a dia, “não para dar notas”, mas para perceber se os alunos perceberam as ideias e dominaram o conhecimento”, pois, “sempre que se resume o conhecimento de uma criança numa nota, (…) estamos a perder informação”. Concorda com projetos que visem eliminar a retenção, mas com uma ressalva:
Tem de se ter certeza de que estamos a falar de alta conquista e alta equidade na educação e conhecimento, e não um a sacrificar-se em prol do outro”.
Quanto ao elevado nível de retenções, Oates propõe a leitura das estatísticas da retenção e suas causas para definir estratégias e intervenções para travar o insucesso escolar.
Em sua opinião, o país deu passos positivos na qualidade dos professores, dos manuais e dos materiais. Porém, a sobrecarga do currículo continua e deve ser aliviada. E aponta:
Nos primeiros anos, é essencial saber ler e escrever, porque não é uma coisa natural. É importante ter discussões ricas em todas as matérias para desenvolver a oralidade e a habilidade para trabalhar com outras crianças. É essencial saber conceitos científicos fundamentais, que são importantes para perceber outros conceitos de história ou de geografia, por exemplo. Literacia, matemática, ciência e, claro, cultura. Literatura, história e geografia, educação física.”.
Pensa que a distinção entre conhecimento e competências é uma “falsa distinção”, pois nós somos o que nós sabemos e “o conhecimento é fundamental para o desempenho”.
Concedendo que o desempenho em provas internacionais tem melhorado, observou:
Acho que a introdução das provas nacionais levantou as expectativas dos professores e esses testes mais formais permitiram aos professores saber que crianças percebiam e não percebiam a matéria. Isso foi importante. A introdução de bons manuais escolares também foi importante e sei que foi dada alguma atenção à qualidade do material pelo anterior governo. Há evidências internacionais que mostram que isso foi muito importante.”.
Vê alguns riscos na liberdade das escolas em gerirem 25% do seu tempo e currículo, bem como na flexibilidade curricular, um dos quais reside na interpretação da flexibilidade, pois, como disse, “se introduzirmos alguma liberdade nas escolas, temos de garantir que essa quota do conhecimento principal não se perde, já que todas as crianças devem ter acesso a ela”. 
O professor Castilho não ficou surpreendido com a entrevista e resume o que leu numa frase: “Toda a entrevista é uma diplomática reprovação das políticas educativas portuguesas do momento”. Enfatizou duas ideias: a defesa da necessidade de não menorizar a memorização ao serviço da aprendizagem; e a lapidar resposta à questão sobre o que se faz em Portugal, “relaxar o currículo nacional e relaxar a avaliação nunca são boas ideias”.
Refere que a memorização é mais uma posição proscrita pelo politicamente correto da onda da ‘flexibilidade’ dominante. E sustenta que “as palermices pedagógicas” criadas em Portugal têm semelhanças com algumas políticas que começaram a produzir o declínio do sistema finlandês. Exemplifica-o com o facto de, ao invés da coerência curricular preconizada por Tim Oates, o Secretário de Estado João Costa ter afirmado publicamente, ainda há dias, querer ‘indisciplinar’ o currículo. E explica ao “educare.pt”:
As políticas educativas finlandesas de 2000 não são, de facto, responsáveis pelos êxitos conhecidos e celebrados em 2000. Lá (como cá) uns fazem o trabalho e outros colhem os louros. Em Educação, os resultados do que se faz hoje tornam-se evidentes 10/15 anos depois. Mas são reclamados por quem está no palco na altura.”.
E lembra que Nuno Crato reivindicou os louros obtidos em sede de PISA, insinuando que, no futuro, “quando as barbaridades que agora estão a ser feitas produzirem maus resultados”, a maioria se terá esquecido dos nomes dos responsáveis. E o “educare.pt” nomeia António Costa, João Costa, Alexandra Leitão e Tiago Brandão Rodrigues. Esquece Passos e Crato, porquê?
Castilho, destacando algumas passagens da entrevista de Oates, cruza-as com a nossa realidade, discorrendo contra o Secretário de Estado e contra a municipalização no setor:
A ‘liberalidade’ para as escolas decidirem sobre 25% do currículo (ou total, desde que alinhem na fraude de garantir a anulação dos chumbos) é um crime pedagógico, que nada tem que ver com autonomia. Mas não é só a irresponsabilidade do Secretário de Estado que é criticável. É a orientação para a chamada ‘municipalização’ que, em limite, pode introduzir diferenças abissais (e inconstitucionais) em sede de qualidade do sistema de ensino.”. 
Ora, se Oates critica as orientações voláteis, mas salienta os avanços na qualidade do ensino obtida em Portugal, Castilho diz que tudo isto (rigor, qualidade dos manuais e coerência dos curricula como vetores determinantes da qualidade) está, entre nós, em perda no momento atual:
Baixou a exigência de rigor e temos elevadas a iniciativas de alto mérito inovador, várias experiências pedagógicas com base na abolição do uso dos tradicionais manuais”.
E alerta para o que Oates denuncia de consequências do acento na classificação e rankings:
Do mesmo passo, alude subtilmente à confusão entre o conceito de avaliação educacional (que falha rotundamente entre nós) com o conceito de classificação que, extremado, leva à competição malsã entre as escolas”.
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Mas a hiperfilia dos exames induz o desdém por vertentes basilares da aprendizagem; e o ensino baseado em projetos casa o currículo nacional (não objeto de corte) a reformular quando necessário.
2019.04.23 – Louro de Carvalho

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