sábado, 13 de abril de 2019

Salva-nos na fraqueza, mas com dignidade e determinação!


A lógica de Jesus Cristo, que é a lógica de Deus, baralha-nos se nos ativermos aos critérios de salvação ditados e praticados pelo mundo. Com efeito, admiramos, aplaudimos e vitoriamos aqueles e aquelas que rompendo com determinação e força as raias da mediania ou as fronteiras da rotina se distinguem pela heroicidade pomposa. E era isto que os israelitas – e os próprios discípulos de Jesus – esperavam do Messias prometido: destruir pelo fogo os inimigos, abatê-los à espada e constituir uma corte de honrarias em que os apóstolos seriam os príncipes com a nobre missão de bem legislar, exercer o poder executivo com pompa e circunstância e julgar, obviamente para condenar. Mas não é assim a via escolhida por Jesus em obediência ao desígnio e à vontade do Pai. E a liturgia do Domingo de Ramos mostra-no-lo à saciedade. 
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Dois momentos marcam esta dominga: a comemoração da entra triunfal de Jesus na Cidade Santa, com a proclamação duma perícopa lucana (Lc 19,28-40); e a celebração da Missa, com a proclamação de passagens do Profeta Isaías (Is 50,4-7), da Carta de Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11) e da Paixão de Jesus segundo Lucas (Lc 22,14 – 23,56).
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Da entrada solene, diz o Evangelista que Jesus subia para Jerusalém à frente dos discípulos e, junto de Betfagé e de Betânia e perto do Monte das Oliveiras, enviou dois discípulos para que da povoação que estava em frente tomassem um jumentinho preso que ninguém montara ainda porque precisava dele. Levaram-no a Jesus e, lançando as capas sobre o jumentinho, fizeram montar Jesus. Durante a caminhada, o povo estendia as capas na via e toda a multidão começou a louvar alegremente a Deus em alta voz por todos os milagres que viu, clamando: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor. Paz no Céu e glória nas alturas!” (cf Lc 1,68; 2,14). Os fariseus bem protestaram exigindo que Jesus repreendesse os discípulos, ao que Ele retorquiu: “Eu vos digo: se eles se calarem, clamarão as pedras”.
Esta é uma cena verdadeiramente messiânica, pois realiza a profecia de Zacarias (Zc 9,9) – “Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti; Ele é justo e vitorioso; vem, humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta” – e a multidão aclama o Senhor com o Salmo de entronização do Rei-Messias (Sl 118/117,26), um salmo coletivo de ação de graças com um esquema ritual muito claro, começando fora do templo (v 1-18) e, passadas as ‘portas da justiça’ (v 19-20), proclamando a ação de graças (v 21-25) e seguindo com a bênção (v 26-27) e um convite final que renova o chamamento inicial ao louvor, porque Ele vem para salvar e não como poderio político-militar.
O Senhor entra montado sobre um pobre animal, mas determinado, sabendo que tinha direito a ele porque dele precisava. E, em resposta a quem o clamor da multidão incomodava utilizou a fórmula proverbial, clara e enérgica “clamarão as pedras”, bem ao seu jeito do Mestre, a garantir a dignidade messiânica e a realeza que lhe é inerente – realidade tão notória que, se a cegueira humana levar a obnubilá-la, a própria natureza muda a proclamará. Além disso, como Jesus já tinha cumprido a missão profética explícita do anúncio da Boa Nova e havia instruído os Apóstolos, não havia motivo para temer qualquer tumulto popular por se apresentar solenemente como o Messias-Rei. Assim, os “Hossanas” e o clamor de “Paz no Céu e glória nas alturas” têm aqui pleno cabimento.
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Entrando na liturgia da Missa, a fraqueza salvadora do Messias adensa-se.
Isaías (Is 50,4-7) introduz-nos no mistério do Servo de Deus, que sofre por todos nós. Mas foi pelas suas chagas que fomos curados. Desde sempre, a Igreja aplicou este hino profético a Jesus, o servo sofredor, “obediente até à morte e morte de Cruz”, como assume o discurso paulino.
É pertinente registar que o Messias se apresenta como tendo recebido a graça de falar como um discípulo (fala daquilo que aprendeu) e, nessa condição humilde, sabe dizer “uma palavra de alento aos que andam abatidos” e apresentar-se aos que O insultam e ferem, sabendo e confiando que o Senhor vem em seu auxílio. 
É um trecho do II Isaías e corresponde aos primeiros 4 vv do 3.º poema do Servo de Javé (Is 50,4-9). Embora não seja aqui nomeado, deduz-se do contexto imediato deste canto que é o próprio servo quem está a falar e é a figura profética de Jesus Cristo. O trecho consta de três estrofes iniciadas com a mesma fórmula: ‘O Senhor Deus’; na 1.ª, sublinha-se a docilidade de discípulo; na 2.ª, o sofrimento que esta docilidade acarreta; e, na 3.ª, a fortaleza no meio da dor.
O servo fala como um discípulo, mas não é um discípulo qualquer; é um discípulo do Senhor (cf Is 54,13), instruído pelo próprio Deus. A este respeito, dirá Jesus: “A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou” (Jo 7,16; cf 14,24).
O servo-discípulo confessa que não resistiu nem recuou e não desviou o rosto de quem O insultava e Lhe batia. Com efeito, mesmo os grandes profetas e santos tiveram consciência de opor alguma resistência, embora sem rebeldia, à ação de Deus, como Moisés e Jeremias (cf Ex 3,11; 4,10; Jr 1,6). Ao invés, este servo, como Jesus o fez, identifica-Se plenamente com a vontade do Pai (cf Jo 4,34; Lc 22,42). E os evangelistas deixam ver como o pleno cumprimento deste hino profético se deu no relato da Paixão do Senhor (vd Mt 26,67; 27,26-30; Mc 15,19; Lc 22,63-64; etc.).
Como resposta da assembleia a esta proclamação profética, surgem alguns versículos do Salmo 22 (21) em que se intercala o refrão “Meu Deus, meu Deus, para que (ina ti ou eis ti) me abandonaste?”. É um salmo individual de súplica e exprime de tal modo a experiência do sofrimento, que se tornou modelo de densidade religiosa. Segundo Mateus (27,46), em hebraico, e Marcos (15,34), em aramaico, Jesus utilizou as suas primeiras palavras como oração suplicante e confiante quando se encontrava na cruz; e vários outros versículos são aproveitados na narração da Paixão de Jesus (vd Mt 27,35.43.46). Por isso, o salmo ficou intimamente ligado à Cristologia. Na tradição cristã foi ganhando um timbre messiânico, mercê de alguns versículos missionários e comunitários (vd vv 23.24.26-32), que contraditam a situação anterior de abandono, escárnio e ultraje. Mas a sua ressonância messiânica está ligada à leitura especificamente cristã que dele se fez, pois depende da mais profunda valorização teológica do sofrimento pessoal – um aspeto menos notório no messianismo real. 
Seja como for, o salmo sintetiza a paixão de Jesus: “Trespassaram as minhas mãos e os meus pés. Cercou-me um bando de malfeitores”. O refrão “Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste?” traduz a tristeza e a angústia mortal do nosso Salvador, mas não é interrogação de desespero, mas a oração do Filho, que por nosso amor se oferece ao eterno Pai: “Pai nas vossas mãos entrego o meu espírito”. Segundo os estudiosos, o judeu piedoso, ao enunciar a epígrafe dum salmo ou de um hino, assumia todo o seu conteúdo, que recitaria mentalmente.
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Paulo (Fl 2,6-11) apresenta um dos hinos cristológicos mais antigos. Os primeiros cristãos, contemplando o amor infinito de Jesus, podiam cantar o esvaziamento ou a humilhação divina (Kénosis): “Cristo Jesus, que era de condição divina, assumiu a condição de servo e aniquilou-se até à morte e morte de Cruz! Por isso Deus O exaltou!”. Porém, este aniquilamento não foi uma derrota humilhante, mas um ato inteiramente voluntário, pois, mais que apresentar-Se como Deus, quis fazer-Se homem, até nas condições mais humilhantes, mas sem perder a dignidade, o que mostra de muitos modos, para que nós possamos ter o à vontade de aceder ao mistério de Deus. Por isso, Deus Exaltou-O com a gloriosa Ressurreição. E a esta exaltação sublime corresponde a glória do seu nome: Jesus é o Senhor e toda a língua proclama a sua divindade, humanidade e senhorio.
Como se deixou entrever, o trecho paulino constitui um admirável hino à humilhação e exaltação de Cristo, que muitos pensam ser anterior à Carta aos Filipenses e a mais antiga confissão de fé explícita na divindade de Cristo que consta dos escritos do Novo Testamento.
Existindo em forma (morfê) de Deus, Jesus possuía a glória e a majestade, atributos divinos na linguagem bíblica. E, como observa Heinrich Schlier, a expressão em forma de Deus não quer dizer que Deus tenha uma forma como a têm os homens, mas que Jesus “tinha um ser como Deus, era um ser divino”. A frase “Não considerou usurpação ser igual a Deus” tem dois sentidos: um sentido positivo, pois o termo grego harpagmós pode ser considerado como roubo ou usurpação que se faz de algo (aqui, a condição divina), ou um sentido passivo, sendo harpagmós algo a roubar algo, algo que é cobiçado. A Vulgata e a Nova Vulgata traduzem: “não considerou uma usurpação (rapina) o ser igual a Deus” (sentido ativo). Todavia, os Padres Gregos consideram o termo grego com sentido passivo e teríamos: “não considerou como algo cobiçado (harpagmón). Pensam alguns que Paulo quer realçar o contraste entre a atitude soberba dos primeiros pais que, sendo homens, quiseram ser iguais a Deus (cf Gn 3,5.22) e a de Jesus que, sendo Deus, Se quis fazer “semelhante aos homens” (v 7).
Assim, vem o aniquilamento ou esvaziamento de a si próprio. Na verdade, Jesus, ao fazer-Se homem, não Se despojou da natureza divina, mas da glória ou manifestação da majestade que Lhe competia mercê da união hipostática (na pessoa do eterno Filho de Deus, a natureza humana e a divina estão misteriosamente unidas). Por isso, a condição de servo que assumiu não é a condição social de escravo, mas a forma (morfê) de se conduzir, própria do pobre e dependente, cumprindo a figura do “Servo de Javé”, de que fala Isaías. Também Se tornou semelhante aos homens, aparecendo como homem, não só, como queriam os docetas, na aparência (skhêmati), mas no sentido da semelhança (en homoiômati) com os outros homens, em tudo igual exceto no pecado (cf Heb 4,15). E “humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz”. É o máximo da kénosis, num crescendo de humilhação em humilhação: feito homem, assume a condição de servo, obedece com a obediência que vai até à morte, e não uma morte qualquer, mas a dum malfeitor, a morte de cruz. Mas este aniquilamento – escândalo da Cruz – não é uma derrota, o desfecho duma história trágica. É, antes, o sublime paradoxo da sua exaltação: foi por isso que Deus (o Pai, ho Theós) O exaltou acima de tudo o que existe, o que redundou na glorificação da humanidade de Jesus com a sua Ressurreição e Ascensão. A esta exaltação corresponde o nome que Lhe é dado por Deus, o nome com que passa a ser invocado pelos crentes de todos os tempos, nome não só usado na sua vida terrena e que consta da sentença de condenação à morte de cruz, mas nome com que o próprio Deus é designado nos LXX, “o Senhor”. Por tudo isto,  todos devem reconhecer e proclamar e a divindade de Jesus (toda a língua proclame que Jesus Cristo é Senhor – sem artigo, no grego) e o seu domínio sobre toda a criação (“no céu, na terra e nos abismos, para glória de Deus Pai”). E, com este esvaziamento divino, que vai da Incarnação à Redenção, fica patente que Jesus não é o simples servo do Senhor que vem a ser exaltado por Deus, mas Ele é Deus que Se abaixa e, depois, vem a ser exaltado; e fica patente que a fé na divindade de Jesus não é fruto de tardia elaboração teológica, pois a epístola é, quando muito, do ano 62 (se não é mesmo de cerca de 56, como quer a generalidade dos estudiosos), estes versículos fariam parte dum anterior hino litúrgico a Cristo.
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A parte da vida de Jesus relatada mais pormenorizadamente e com grande intensidade dramática pelos quatro Evangelistas é a sua Paixão. Nela culmina toda a vida e obra redentora de Cristo. Os padecimentos que o Senhor abraçou voluntariamente evidenciam, de modo significativo, o seu amor infinito por todos e cada um de nós (cf Gl 2,20) e enorme gravidade dos nossos pecados (cf Gl 1,4). Do longo relato lucano da Paixão (Lc 22,14 – 23,56), é referir, antes de mais, que o autor do 3.º Evangelho é o único a mencionar o suor de sangue na agonia de Jesus e a presença do anjo a confortá-Lo, bem como o pedido ao Pai para que perdoe àqueles homens porque não sabem o que fazem e a oração do bom ladrão, a quem o Senhor perdoa e oferece o paraíso.
Os pormenores do relato de Lucas põem em evidência a misericórdia e a preocupação de Jesus pelos outros, quando era Ele quem devia merecer toda a atenção em horas tão aflitivas. Assim, no relato da Ceia, temos: a manifestação do desejo ardente de Jesus em celebrar esta Páscoa e a remissão para o Reino de Deus (22,15-16); a conservação do item do ritual judaico da bênção e entrega do 1.º cálice (22,17); a oração especial para que a fé de Pedro não desfaleça, com o encargo pastoral de confirmar na fé os seus irmãos (22,31-32); o episódio das duas espadas (Lc 22,35-38); a cura do criado ferido pela espada de Pedro (22,51); a comparência de Jesus perante Herodes (23,6-12), que O tratou com desprezo; a declaração da inocência de Jesus por Pilatos (23,13-16); o conforto de Jesus às mulheres a caminho do Calvário (23,27-31); o pedido de perdão ao Pai para os que O crucificam (23,34); o diálogo com o ladrão arrependido, com a promessa de entrada imediata no Paraíso (23,40-43); a cisão, ao meio, do véu do santuário (23,45); as palavras de Jesus ao expirar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (23,46); o regresso do Calvário por parte da multidão contrita a bater no peito (23,48); o regresso das mulheres do túmulo, que preparam perfumes e essências, mas observando o repouso sabático (23,56).
Lucas narra que a multidão dos discípulos aclamava alegremente Jesus em razão de “todos os milagres que tinham visto”. Em contrapartida, os fariseus pedem ao Mestre que repreenda os discípulos, ao que Jesus replica: “Se eles se calarem, clamarão as pedras!”. De facto, com os discípulos, ou sem eles (que O abandonaram) a criação dará o seu testemunho: a terra estremecerá, o sol perderá a sua luz e o dia transformar-se-á em noite. É que Jesus é Senhor de todo o universo e a sua Redenção beneficiará todas as criaturas: “Ao nome de Jesus todos se ajoelhem no Céu, na terra e nos abismos”.
Jesus Cristo é o Senhor! E, porque é de condição divina e ama até ao fim, tem pleno conhecimento da sua missão. Pré-anunciara a sua morte em Jerusalém: “Devo seguir o meu caminho, porque não se admite que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc 13,33). E agora oferece àqueles e àquelas que ama o alimento do seu Corpo, que vai ser entregue e do seu Sangue que vai ser derramado. Ofereceu a sua vida pelos homens: “amou-nos até ao fim”.
Como Lhe corresponder na nossa vida? Que devemos fazer pelos outros para sermos com Ele?
 2019.04.13 – Louro de Carvalho

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