É o que sucedia na Florida
School for Boys, nos EUA,
segundo um artigo de Marta Gonçalves publicado no Expresso on line a 14 de abril.
Chegavam ali os rapazes por terem roubado ou violado ou simplesmente por
terem faltado às aulas ou terem sido apanhados a fumar. Entretanto, em vez de
reformatório, a dita “escola” não passava dum campo de tortura, com vertente
sexual violenta, e de antecâmara da morte.
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A Florida
School for Boys, conhecida como a Escola Dozier Arthur G. for Boys (AGDS), foi uma escola-reformatório criada e dirigida
pelo Estado da Flórida na zona nordeste, na cidade de Marianna desde
1 de janeiro de 1900 até 30 de junho de 2011. Durante algum tempo, foi o
maior reformatório juvenil nos Estados Unidos, tendo sido, em 1955, aberto
um segundo campus na cidade de Okeechobee.
Ao longo dos
seus 111 anos de história, ganhou reputação por abuso, espancamentos, estupros,
tortura e até assassinato de estudantes por funcionários. Apesar das
investigações periódicas, mudanças de liderança e promessas de melhoria, continuaram
as alegações de crueldade e abuso. E, depois que a escola foi apanhada em falso
por uma inspeção do Estado em 2009, o governador ordenou uma investigação completa,
tendo sido muitas das alegações históricas e recentes de abuso e violência
confirmadas por investigações separadas, em 2010, por parte do Departamento de Polícia da Flórida e,
em 2011, por parte da Divisão de Direitos
Civis do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Por isso, as
Autoridades estaduais decidiram o encerramento da escola em junho de 2011,
mercê de pressões várias. Ao tempo do seu encerramento, a escola era um polo
do Departamento de Justiça Juvenil da Flórida.
Mercê do
questionamento sem resposta sobre o número de mortes na escola e da existência
dum alto número de sepulturas sem identificação, o Estado autorizou uma
pesquisa de antropologia forense pela Universidade do Sul da Flórida (USF) em 2012, que identificou 55 enterramentos na área (a maioria
fora do cemitério) e documentou
quase 100 mortes na escola. O Estado aduziu não ter competência para
permitir a exumação de sepulturas, o que levaria à determinação das causas das
mortes e à identificação dos restos mortais. Por outro lado, pretendia
vender terrenos na propriedade. Porém, o familiar dum estudante que morreu na
escola em 1934, querendo reenterrar os seus restos mortais, entrou com uma ação
judicial e obteve uma decisão liminar contra o avanço do Estado com a venda
antes de os restos mortais poderem ser exumados e identificados. O Estado
respondeu à ação judicial e autorizou mais um trabalho duma equipa
multidisciplinar da USF que incluísse exumações. E, em janeiro de 2014, a
equipa da USF divulgou o relatório final, tendo feito sete correspondências de
ADN e 14 identificações presumíveis de restos mortais; e continuou com os
trabalhos de identificação.
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Desde a inauguração
até aos anos 80, o local de era um campus aberto de cerca de 567 ha sem vedação
perimetral. O sítio foi dividido em dois subcampus, South Side, para estudantes brancos, e North Side, para estudantes de cor. As secções
estavam separadas até 1966. Em 1990-91, o campus da North Side foi permanentemente fechado.
No lado
norte, estava o cemitério Boot Hill. Porém, a maioria das sepulturas não
foi marcada e não havia registos de muitos dos 100 estudantes que morreram na
instalação. Um relatório de 2014 de uma extensa investigação forense
realizada pela USF a partir de 2011 refere que foram encontrados os restos
mortais de 55 estudantes, incluindo numerosos restos encontrados fora do
cemitério, em áreas de matas ou arbustos. O Estado tem tentado
identificá-los, alguns pelo ADN, mas muitos não foram identificados até ao
momento em que o relatório foi publicado.
Em 1929, foi
construído um prédio de 11 celas de blocos de betão,
contendo também duas celas (uma para estudantes brancos e outra para negros) – local não cercado –, para abrigar estudantes
incorrigíveis ou violentos. Os alunos chamavam-lhe “A Casa Branca”. Nos
anos 1950 e 1960, foi o local da maioria dos espancamentos de
estudantes. Após a abolição da punição corporal em 1967, o prédio foi
usado para armazenamento. Em 2008, em resposta a alegações de
espancamentos e torturas extremas que lá ocorreram, funcionários do Estado
selaram o prédio em cerimónia pública, deixando uma placa
comemorativa. Ficou vazio desde então.
Após a
aprovação de resoluções por ambas as casas da legislatura, em 26 de abril de
2017, o Estado organizou uma cerimónia formal para se desculpar pessoalmente
com duas dúzias de sobreviventes da escola e com as famílias de outras vítimas
e levantou ali um memorial. Em 2018, estavam a fazer-se as contas a fim de
propiciar alguma compensação às vítimas e seus descendentes, como, por exemplo,
instituir bolsas de estudo para crianças.
Em 2019,
durante os trabalhos de pesquisa preliminar para uma limpeza de poluição, mais
27 túmulos suspeitos foram identificados por radar de penetração no solo. O
número de vítimas é superior e inclui menores de seis anos.
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A mencionada Marta
Gonçalves refere vários casos, sobressaindo o de um rapaz de 13 anos (em 1967) que se lembrava da primeira vez que uma cinta
de pele lhe acertara nas nádegas sendo que o seu corpo se contorcera de
imediato. Ferrava os dentes “para não gritar por causa da dor”, pois
se gritasse, eles recomeçariam a contagem: “aquilo
nunca mais acabava”; a cinta corta-lhe a pele, de sangrar, e a roupa
interior, colava-se-lhe ao “corpo ensanguentado” e custava-lhe “ir à casa de
banho”. Quando o espancavam, chorava e pensava: ‘Meu Deus, porque deixas que isto me aconteça, odeias-me assim tanto?’.
Era esse um miúdo franzino e um dos mais pequenos. Tinha ali chegado
por se ter metido em problemas: era mal comportado, “ingovernável e
incorrigível”, segundo os registos da época. Os mais velhos implicavam com ele
e, daquela vez, ripostou “e envolveu-se em pancadaria com os colegas”, pelo que
foram castigados. Ele e outro foram levados para “a casa branca” (designação
dada a um dos edifícios da “escola” onde os jovens eram castigados). O castigo era espancamento “com uma cinta de pele até sangrarem”. Um dos funcionários, o Mr.
Tidwell, que só tinha um braço, era um dos piores castigadores: mandava-os
despir, deitarem-se numa velha cama de ferro e agarrarem-se, sem “fazer barulho e olhar em frente, para a
parede”. Alguém ligava um ventilador barulhento como precaução no caso de o
paciente “não aguentar e gritar”.
O relato desse rapaz não é único, mas é um relato “de sobrevivência”, pois muitos
outros que entraram naquele que foi o primeiro reformatório no Estado
norte-americano da Florida nunca de lá saíram: morreram.
“Em 2019, as autoridades estatais concluíram que nos terrenos do
reformatório existiam 31 sepulturas num pequeno cemitério”. Mas “uma equipa de
antropólogos da USF deu conta de mais 24 covas com cadáveres (passaram a
55) e os restos mortais de 51 pessoas,
na maioria pertencentes a jovens que estavam entregues à responsabilidade do
Estado”.
Nos fins de 2018, tendo o furacão Michael atingido a zona, “os seus ventos
revelaram mais uma vala bem no meio da mata de pinheiros a pouco mais de 100
metros do local onde funcionava o centro juvenil”. Segundo o jornal
norte-americano “The Washigton Post”,
foram encontras mais “27 anomalias”, possivelmente mais 27 cadáveres ou restos
mortais. Somam então 82.
Segundo Marta Gonçalves, os investigadores da USF referem, num artigo
publicado em janeiro de 2016, a existência de documentos históricos que provam
quase 100 mortes na instituição, incluindo jovens entre os 6 e 18 anos e dois
funcionários. E, entre as causas mais frequentes dessas mortes, contam-se as “doenças infeciosas, incêndios, violência
física e afogamento”. Com efeito, nas principais descobertas do “Relatório à investigação às mortes e
sepulturas no antigo Arthur G. Dozier School for Boys, in Marianna, Florida”,
pode ler-se:
“Identificámos também uma grande taxa de
morte entre os rapazes que tentavam escapar, morriam nos três meses após a
tentativa. Cerca de 26% dos jovens fizeram-no pelo menos uma vez.”.
Em 1925, um rapaz de 15 anos morreu, 29 dias depois de ali chegar. Os
antropólogos concluíram que “o que lhe provocou
a morte foi um ferimento na testa e o crânio esmagado por razões desconhecidas”,
castigado por ter tentado fugir. Tal como os iniciais restos mortais de 51
pessoas, os desse rapaz foram enviados à família. E os que não foi possível identificar
foram enterrados num cemitério em Tallahassee.
Um rapaz que chegou ao reformatório em 1958 por ter fugido com a namorada
descreveu:
“As paredes com sangue, o horrível berço
onde me obrigaram a deitar de barriga para baixo. A sujidade, o cheiro da
almofada que mordia para não gritar. Agarrar-me com toda a força possível a uma
barra à espera da primeira pancada. A primeira era sempre a pior. Lembro-me do
movimento brusco e da intensidade da dor a percorrer o meu corpo. O flash que se acendia no meu cérebro é
algo que nunca vou esquecer. As pancadas seguintes já não custavam tanto e a
dor parecia diminuir à medida que cada chicotada me acertava e o corpo ficava
dormente. (…) Rapidamente aprendi a deixar as coisas correrem: quando me preparar
e quando relaxar.”.
Aquele local, uma verdadeira prisão, tinha a designação de “escola” e os jovens
reclusos eram considerados “alunos”, mas o que ali se ensinava era nada:
infligiam-se maus tratos físicos e psicológicos a todos os níveis. Aponta Marta
Gonçalves que “a instituição começou por receber jovens que tivessem cometido crimes,
mas, com o passar do tempo, vieram também aqueles que haviam cometido delitos
menores, malcomportados ou que simplesmente tinham sido abandonados pelas
famílias” com idades entre 5 e 20 anos. E, durante alguns anos, Também “recebeu
também raparigas”. Não havia “regras para os levar até ao edifício de cimento: numas
vezes ia só um rapaz, noutras iam em pares ou trios”. E, noutras vezes, alinhava-se
na entrada uma fila de jovens, “cada um deles à espera de ser espancado”. Eram castigados
sob o eufemismo diabólico “é para teu bem”.
Em 1956, a Florida School for Boys
tinha 698 jovens a seu cuidado e empregava 128 funcionários. Era a maior escola
dos EUA só para rapazes.
Um dos grandes óbices ao sucesso da investigação “foi a falta de registos
guardados pela instituição, que nem marcava os locais onde enterrava os corpos”.
Dizem os antropólogos:
“Esta falta de registos e a não
identificação das sepulturas sugere a intenção de ofuscar os verdadeiros
números de sepulturas localizadas na instituição e prejudicar potenciais
futuras investigações em casos de morte de pessoas específicas”.
Numa reportagem do jornal “St.
Petersburg Times”, em 2009 intitulada “Para
o teu próprio bem”, regista-se “o que aconteceu logo nos anos iniciais de
funcionamento”: as crianças eram “algemadas como um qualquer criminoso”; não se
tratava de uma escola, mas de uma prisão; o objetivo não era de recuperar e
reintegrar os jovens, mas castigá-los. E, no decurso dos anos, iam sendo revelados
mais episódios reiterados: os administradores contratavam rapazes para trabalhar
com criminosos condenados; um grupo de 6 “alunos” e dois funcionários morreram
encurralados num dormitório em chamas; ministrava-se tratamento médico
inadequado; e havia até homicídios entre os jovens. Todavia, só quem estava lá
dentro sabia o que acontecia, o resto era disfarce a ponto de centenas de
famílias se deslocarem todos os anos ao reformatório pelo Natal “para ver as
aclamadas decorações construídas pelos rapazes institucionalizados”.
O cenários de vida ali eram bem diferentes. Aquilo não era viver.
Michael O'McCarthy, de 65 anos, recordou que “o sangue salpicava todas as paredes”; Roger
Kiser, de 62 anos, contou que, “quando
saía deste edifício, quando me olhava ao espelho, nem sabia quem era por ter
tanto sangue”; e Robert Straley, também com 62 anos, disse que “eram monstros, oh, meu Deus, as coisas que
eles fizeram”.
Estes três homens integraram um grupo de 5 que foram, numa
terça-feira, com uma série de jornalistas até ao que restava da instituição e apontaram
para um sítio em frente da casa branca – um lugar que os jovens de então referiam
como “sala da violação”. Robert Straley tinha 13 anos quando o mandaram para
lá, acusado de estar a fumar. É claro que “não estava, mas se negasse seria
pior”. E confessou:
“Eu estava na lista para o entretenimento
daquela noite. Era só isso. (…) Quando aqueles homens nos tinham nas mãos, não
nos íamos armar em Bruce Lee, só havia uma opção e nem podíamos gritar o que
nos apetecia.”.
Entre 2004 e 2009, foram investigadas 316 queixas de abusos, referem
documentos policiais consultados pelo “St.
Petersburg Times”: 17 confirmaram-se, 33 tinham um “indicador de
legitimidade”.
A associação de sobreviventes, os “White House Boys”, contratou um advogado
e processaram várias organizações do Estado. Mais de 200 homens apontaram
nomes, incluindo o de Troy Tidwell, o tipo de um só braço, acima referido. Em
2009, quando o “St. Petersburg Times”
publicou uma grande reportagem sobre o caso, Tidwell ainda estava vivo e o seu
nome estava no processo. Mas, só em 2011, sob crescente pressão pública,
fecharam a instituição onde “os rapazes entravam problemáticos e saíam
destruídos”, se é que saíam.
***
Na época da
investigação do Departamento de Justiça dos Estados Unidos em 2010-11, pouco
antes de a instalação ser fechada, Dozier era uma instalação residencial de
alto risco, restrita a 64 hectares, para 104 meninos de 13 a 21 anos. Viviam em
várias casas, tendo cada garoto uma sala destrancada A sua média de permanência
em Dozier foi de 9 a 12 meses.
Em local
adjacente estava o Jackson Juvenile Offender Center, instalação de “risco
máximo” para infratores crentes culpados de crimes ou crimes violentos. Os
reclusos permaneciam em celas únicas e trancadas como uma prisão.
Já em 1903,
uma inspeção informou que as crianças eram comummente mantidas em ferros
de perna. E, de acordo com o relatório intercalar de 2012 da USF,
encomendado para investigar o cemitério e os enterros, a escola foi investigada
pelo Estado seis vezes durante os primeiros 13 anos de operação. Um
incêndio num dormitório na escola em 1914 matou seis presos e dois
funcionários. Onze estudantes, cujos nomes não são conhecidos, foram registados
como tendo morrido na epidemia de gripe espanhola 1918.
***
Enfim, um mui
prolongado cenário de horrores num país que pretende ser o polícia do mundo! Tivemos
entre nós também cenas horrorosas, mas nada do que se passou em Portugal nos
dois últimos 200 anos se lhe pode comparar.
2019.04.15 –
Louro de Carvalho
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