terça-feira, 2 de abril de 2019

Governo não escancara portas a pré-reforma na administração pública


O Decreto Regulamentar n.º 2/2019, de 5, de fevereiro, estabelece as regras para a fixação da prestação a atribuir na situação de pré-reforma que corresponda à suspensão da prestação de trabalho em funções públicas.
Nos termos do art.º 2.º deste diploma, “a situação de pré-reforma constitui-se por acordo entre o empregador público e o trabalhador, do qual constam as indicações previstas na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, na sua redação atual, designadamente no n.º 3 do artigo 284.º, e depende da prévia autorização dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública, a obter através do membro do Governo que exerce o poder de direção, superintendência ou a tutela sobre o empregador público”.
O art.º 3.º estabelece que “o montante inicial da prestação de pré-reforma é fixado por acordo entre empregador público e trabalhador, não podendo ser superior à remuneração base do trabalhador na data do acordo, nem inferior a 25 % da referida remuneração”, sendo a prestação “atualizada anualmente em percentagem igual à do aumento de remuneração de que o trabalhador beneficiaria se estivesse no pleno exercício das suas funções”.
E o artigo 4.º estipula que “o período na situação de pré-reforma releva para a aposentação, mantendo-se, relativamente aos trabalhadores integrados no regime de proteção social convergente, a obrigação de o subscritor e o respetivo empregador pagarem mensalmente as contribuições à Caixa Geral de Aposentações, I. P., calculadas à taxa normal com base no valor atualizado da remuneração relevante para aposentação que serviu de base ao cálculo da prestação de pré-reforma”.
O predito decreto regulamentar não precisa quem é o empregador público, nem os critérios a observar para a determinação da prestação inicial (a margem entre 25% e 100% é ampla) e não oferece um painel de condições que levem a entidade que autoriza deva ter em conta.
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Hoje, dia 2 de abril (dois meses depois da publicação do predito diploma regulamentar) Mário Centeno, em entrevista ao Público, deixou claro que o Governo vai ser muito cauteloso na análise dos pedidos de pré-reforma, pois, como aduziu, “o país não está numa [tal] posição económica, financeira e social que se possa dar ao luxo de ter as pessoas a sair do mercado de trabalho”.
É certo que a entrevista não aborda unicamente a questão da pré-reforma. Mas esta é uma questão que está na ordem do dia face às executivas que gerou.
Questionado sobre o facto de a pré-reforma na função pública estar em vigor desde o início de fevereiro e os trabalhadores se queixarem de que os serviços não estão a dar seguimento aos pedidos, respondeu secamente que não tem “conhecimento de pedidos”.
E, ao tentarem esclarecê-lo de que os pedidos existem, mas os serviços não têm instruções sobre como lhes devem dar seguimento, amenizou o teor da resposta: “Posso não ter conhecimento”.
Entretanto, aproveitou para reagir à provocação de que o Governo  pretendera, com o referido diploma, abrir uma porta e, depois, não deixar que as pessoas a utilizem:
Nós equiparamos os sistemas púbico e privado. Não estamos a abrir a porta às pré-reformas. A avaliação será feita caso a caso. Politicamente, o país não está numa situação económica, social e orçamental em que o sinal que se queira dar é de que as pessoas se podem pré-reformar.”.
E justificou a recente decisão de regulamentar esta modalidade com a necessidade que havia de equiparar o setor público ao privado e permitir do ponto de vista legislativo essa possibilidade.
Porém, quando afirmou que “outra coisa é a condução política”, foi advertido para o caso de o Governo estar a “defraudar as expectativas de trabalhadores”, mas foi perentório a declarar:
Não defrauda expectativas nenhumas. Estou politicamente a dar o sinal do que é a gestão do conjunto da Administração Pública. O país não está numa [tal] posição económica, financeira e social que se possa dar ao luxo de ter as pessoas a sair do mercado de trabalho.”.
E à pergunta se do lado das Finanças haverá pouca disponibilidade para dar luz verde a pré-reformas respondeu que a autorização para a pré-reforma “é casuística” e que “essa decisão tem de ser tomada com uma enormíssima responsabilidade social, obviamente laboral, e é para isso que o mecanismo existe”.
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No dia em que o Ministro das Finanças sublinhou que o país não se pode dar “ao luxo de ter pessoas a sair do mercado de trabalho”, Vieira da Silva, em declarações aos jornalistas na 4.ª Conferência dos Ministros do Emprego e Trabalho da União para o Mediterrâneo, frisou que não é intenção do Executivo que a pré-reforma “seja utilizada de forma generalizada, uma vez que o país precisa das competências desses trabalhadores mais velhos.
O Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social sustentou a necessidade de se “garantir o acesso” ao emprego a todas as gerações, notou que o mercado nacional tem revelado “uma elevada capacidade de integrar pessoas já não tão jovens” e frisou que  têm competências adquiridas durante décadas que “não devem ser menosprezadas de forma simplista”.
Por isso, considerou que a utilização de mecanismos como o da pré-reforma merecem uma avaliação caso a caso e declarou que, apesar de essa possibilidade não estar vedada, “não é intenção do Governo que esse instrumento seja utilizado de forma generalizada”, porque Portugal precisa “muito das competências daqueles que as adquiriram ao longo dos anos”.
Vieira da Silva defendeu, assim, a valorização dos trabalhadores mais velhos, no dia em que Mário Centeno enfatizou, em entrevista ao Público, que o novo regime das pré-reformas na Função Pública será acompanhado de avaliações individuais.
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Como foi referido, Centeno reconheceu que era necessário “equiparar” o regime das pré-reformas na Função Pública ao do privado, mas sublinhou que o país não se pode dar “ao luxo de ter pessoas a sair do mercado de trabalho”.
Porém, as dúvidas persistem. Por mais que Centeno diga que não tem conhecimento de pedidos, eles existem e, se mais não há, é porque os serviços alegam não ter instruções sobre os critérios, quer de autorização da pré-reforma, quer da percentagem da prestação em cada caso sobre o vencimento mensal.
É óbvio que não era legítimo esperar que a pré-reforma fosse como que um presente a distribuir em ano eleitoral, pelo que o Ministro das Finanças tem alguma razão em negar a frustração das expectativas dos trabalhadores por parte do Governo em relação ao decreto regulamentar em causa. Todavia, não é legítimo que o Governo, enquanto “órgão superior da administração pública” (vd art.º 182.º da CRP), deixe que os seus trabalhadores fiquem a errar na dúvida.   
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Como ficou dito, Centeno abordou outros temas, sendo o primeiro o atinente à recuperação do tempo de serviço dos militares, forças de segurança e carreiras da justiça, cuja solução a inscrever em diploma que o Governo está a ultimar se inspira na dos professores. Contudo, o Ministro avisou que quem teve valorizações salariais e promoções no passado terá um tratamento diferente e desvalorizou o propalado aumento da conflitualidade, porque entende que se está a discutir “um benefício adicional” para estes trabalhadores. E, em relação ao diploma que recupera o tempo de serviço dos professores e que vai ao Parlamento a 16 de Abril, avisou o PCP e o BE de que novas despesas exigem novas receitas e que os benefícios não se devem concentrar apenas em alguns.
À questão se o Programa de Estabilidade (PE) preverá verba para aumento de salários na função pública em 2020 respondeu:
Temos um conjunto de compromissos com as despesas com pessoal na Administração Pública que vai ser cumprido. Estamos, em três anos apenas, a descongelar nove anos de carreiras e a recuperar o tempo de serviço que não estava no plano inicial e que tem um impacto grande em 2020, porque não se restringe apenas aos professores. Temos outras carreiras na Defesa, no Ministério da Administração Interna e na Justiça em que o tempo de serviço tem de ser considerado e o Governo está a preparar essa legislação.
Depois, esclareceu em que sentido a solução se inspira na encontrada para professores:
Está escrito nos Orçamentos do Estado (OE) entre 2011 e 2017 que nas carreiras onde o tempo é um elemento preponderante na determinação das progressões, o tempo [congelado] não era contado. É isso que estas carreiras têm em comum, a partir daqui são só diferenças e muito significativas. Por exemplo, a carreira dos professores é unicategorial, as outras são pluricategoriais e existe um mecanismo de progressão salarial que é a promoção. Numa carreira em que, mesmo não tendo havido progressões, houve promoções não posso usar exatamente o mesmo conceito que usei nos professores, onde quem não progrediu não teve aumentos salariais.”.
E, rejeitando antecipar informação em concreto, disse que a solução já fora abordada com os sindicatos e associações profissionais e que ainda está a ser ultimada precisamente para garantir um tratamento igual onde ele pode ser igual. E reiterou:
Se não progrediram de todo, são diferentes dos que já tiveram promoções e já tiveram valorizações salariais. É evidente que não estamos a tratar da mesma coisa e, portanto, temos de criar mecanismos de equilíbrio transversal nestas matérias.”.
Não deixou de comentar o facto de o diploma sobre o caso dos professores ter sido chamado ao Parlamento e o de o BE e o PCP gostarem de que fosse adotada a solução encontrada nos Açores e Madeira. E, nesse sentido, discorreu:
O Governo governa com base nas leis que existem no país. Algumas são da responsabilidade do Governo e, em última análise, são passíveis de ser chamadas à Assembleia da República, que tem a última palavra. É preciso entender duas coisas. [Quanto à] primeira, é que estamos a falar de uma competência do executivo e não faremos um bom serviço à democracia portuguesa se sobrepusermos competências de um órgão de soberania perante outro órgão de soberania. [Quanto à] segunda, é importante que, quando se criam novas despesas, se pense em novas receitas.”.
Não receia que o Parlamento altere o decreto-lei e sustentou claramente que “o Parlamento tem legitimidade para o fazer”. Porém, advertiu:
Estamos a tratar uma situação que consubstancia uma revisão da legislação adotada desde 2011 e esse é um ato muito único em todo o processo de recuperação da economia portuguesa, que contou com a solidariedade de todos os portugueses, em particular dos que, durante o período da crise, perderam o emprego. Não é legítimo que os benefícios sejam concentrados nuns profissionais.”.
À insinuação da potencial conflitualidade que possa surgir nas áreas da justiça, dos militares ou das forças de segurança em virtude de não ser recuperado todo o tempo congelado, disse:
Não vejo como isso possa acontecer, porque estamos a discutir um benefício adicional para um conjunto de trabalhadores. Esse benefício adicional vai ao encontro, parcialmente presume-se, da reivindicação que foi feita. Espero que todos entendamos o que significa para um país rever legislação passada.”.
Quanto ao montante necessário para cumprir o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a revisão das pensões da função pública atribuídas desde 1 de Janeiro de 2013, referiu:
Não sabemos neste momento qual é o montante. É mais uma medida temporária que se veio a demonstrar não conforme com a lei e é evidente que essa é uma restrição adicional à gestão das finanças públicas nos próximos anos.”.
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No atinente ao novo modelo de financiamento dos hospitais, desenvolveu:
Esse modelo tem vários pilares. Dois estão implementados, ou seja, os hospitais iniciaram o ano de 2019 com duas pré-condições para uma mais racional utilização dos dinheiros públicos: menos dívida e orçamentos mais próximos do que foi a execução orçamental recente. Falta um último passo, que está praticamente concluído, que são os novos contratos de gestão e a forma como nesses contratos de gestão dão – e vou dizer isto muito depressa porque não há uma sem a outra – autonomia/responsabilidade e responsabilidade/autonomia. Temos que dar mais autonomia, estamos conscientes de que isso é vantajoso. E com essa autonomia virá mais responsabilidade.”.
Anuindo a que a autonomia dos hospitais poderá passar pelos investimentos, assentou em que “os hospitais podem fazer investimentos até 2% do seu capital estatutário”.  E explicou:
Como há muitos anos o problema das dívidas é resolvido através de injeções de capital, há hospitais que têm capitais estatutários gigantescos para a sua dimensão operacional. Isto significa, por exemplo, que o conjunto dos hospitais EPE podem fazer investimentos próximos dos 150 milhões de euros sem pedir autorização. Os únicos investimentos que os hospitais precisam de pedir à tutela são os plurianuais que, normalmente, significam investimentos que afetam a rede hospitalar.”.
E concluiu:
A autonomia que já existe é muito significativa. Depois, há mais noções de autonomia que vão estar consagradas no documento do contrato de gestão e vão numa dimensão mais operacional. Faz todo o sentido que um hospital possa ter mais flexibilidade para contratar ou para substituir pessoas e para fazer face a picos de serviço.”.
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Em relação ao facto de o investimento público ter crescido menos do que previa, o Ministro justificou-se dizendo que, “às vezes, os concursos ficam desertos” e que “o Governo só pode gastar aquilo que o parlamento autoriza”. Mas usou de parolice desnecessária quando disse:
O investimento não é como o ‘Anita vai às compras’, não vamos com o Pantufa, com um cesto, comprar investimento. O investimento tem concursos e, às vezes, os concursos ficam desertos. Tem acontecido durante este ano, porque ninguém faz propostas abaixo do preço que a Administração Pública coloca como valor máximo de licitação.”.
Disse que o facto de a carga fiscal ter ficado em 2018 acima do orçamentado “é um desvio”, não um erro e que, ao fazer-se a conta para a carga fiscal, “falta PIB para esta economia”. E vincou:
O que aconteceu foi que o consumo do território acelerou, a sua composição mudou e os salários cresceram muito mais do que o PIB, o que significa que estes dois impostos [IVA e contribuições sociais], mas também o IRS, cuja incidência caiu através da subida do mínimo de subsistência e da revisão dos escalões, aumentaram mais do que a economia”.
Sobre a justificação de Portugal a propósito dos empregos na Zona Franca da Madeira, Centeno disse que “não foi bem entendida” em Bruxelas. E, reagindo às conclusões preliminares da investigação da Comissão Europeia, o Ministro reconheceu que a informação enviada por Portugal ao longo de três anos “não foi suficiente para [a] convencer de coisa diferente que não seja que havia abuso no auxílio de Estado”.
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A entrevista é bastante explicativa. Porém, surge tardia a explicação dada sobre o sentido e a limitação das pré-reformas, que, em nome da transparência e da equidade, deviam pautar-se por condições e critérios objetivos, que não os há, embora a aplicar caso a caso. E essa de que o Governo só pode gastar o que o Parlamento autoriza não pega, pois o Orçamento do Estado resulta de proposta do Governo.
Quanto ao mais, salva-se o Ministro e o Governo, a não ser quanto ao princípio da integral recuperação do tempo de serviço congelado e ao uso desnecessário de parolices discursivas.
Enfim, são os técnico-políticos que temos e a quem o eleitorado deu o voto proporcional!
2019.04.02 – Louro de Carvalho   

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