domingo, 7 de abril de 2019

Falamos demasiado do outro e falamos muito pouco com o outro


No V domingo da Quaresma no Ano C, a Liturgia da Palavra apresenta o incontornável episódio da mostra da misericórdia de Jesus face à mulher adúltera, ao invés do que os acusadores supostamente entendiam ao abrigo da Lei de Moisés.
Após uma dura discussão, descrita no final do capítulo 7 do 4.º Evangelho, acerca da pessoa de Jesus e suas revelações (em que havia um grupo encarregado de O manietar, mas não o conseguiu por medo da multidão e pela eloquência do Mestre), todos regressaram a casa. Mas, como Jesus não tinha casa em Jerusalém, quando não ia para Betânia recolher-se em casa de Lázaro e das irmãs, usava o jardim e uma gruta natural no Monte das Oliveiras passando ali a noite, muitas vezes em oração, tal como sucederá antes de O prenderem na véspera da sua paixão e morte.
Antes do nascer do sol, Jesus está de novo no Templo para ensinar ao povo que O procurava. A multidão aproximara-se para O poder escutar. As pessoas sentavam-se em círculo à Sua volta e Ele ensinava (Jesus usualmente não ensinava de pé como os Doutores da Lei, mas sentado ao nível dos demais e falando como Mestre, com autoridade sobre a doutrina). É a partir desta perspetiva de “ensino” que se pode compreender o episódio (Jo 8,1-11), que é, todo ele, um ensinamento.
Esta passagem de sabor lucano não aparece nos manuscritos mais antigos do Evangelho de João, sendo, por isso, uma das passagens deutrocanónicas do Novo Testamento; e alguns manuscritos colocam este relato no final deste Evangelho, ou então em Lc 21, depois do v 38, que seria um dos lugares mais adequados, dado o interesse de Lucas em destacar a misericórdia de Jesus. Trata-se de uma tradição independente (não quadrando muito com o estilo joânico) que, no entanto, foi considerada pela Igreja como inspirada por Deus: não há dúvida de que deve ser vista como “Palavra de Deus”. Seja como for, está fora de dúvida o seu valor canónico.
O cenário de fundo coloca-nos frente a uma mulher apanhada a cometer adultério. De acordo com Lv 20,10 e Dt 22,22-24, a mulher devia ser morta, bem como o homem. A Lei deve ser aplicada? É este problema que é apresentado a Jesus.
Entram em cena os escribas e os fariseus, dois grupos muito zelosos no cumprimento da Lei de Moisés, uns porque a estudavam e ensinavam, os outros porque a cumpriam escrupulosamente, em todas as suas minudências. Trazem uma mulher surpreendida em flagrante adultério. E, sem terem falado com ela, questionando-a, tentando compreender suas circunstâncias e problemas, seguiram a via mais pomposa e instrumental para o julgamento e consequente condenação. E levam-na a Jesus, falam-Lhe dela e invocam a Lei, que distorcem. Com efeito, a Lei prescreve:
Se um homem cometer adultério com a mulher do seu próximo, o homem adúltero e a mulher adúltera serão punidos com a morte” (Lv 20,10). Quando um homem for surpreendido a dormir com uma mulher casada, ambos deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher e também a mulher. Assim extirparás o mal de Israel” (Dt 22,22).
É caso para nos questionarmos onde ficou o homem, pois o adultério pressupõe necessariamente um homem e uma mulher.
Tratam Jesus por Mestre (Didáskale, em grego), denunciando a real intenção em trazer-lhe a mulher. Na verdade, a Lei é clara, mas eles só querem saber a opinião de Jesus: “E tu, que dizes?”. É a pergunta astuta, armadilhada, na linha da pergunta sobre o pagamento ou não do tributo a César (cf Mt 22,15-22; Mc 12,13-17; Lc 20,20-26). Se Jesus optasse pela aplicação da Lei, denegririam a sua misericórdia para com os pobres e pecadores (tantas vezes criticada), dizendo à multidão que Jesus não era tão bom como parecia, pois concordava com a pena de morte, e poderiam acusá-Lo de se sobrepor ao poderio romano, o único que, ao tempo, tinha a competência para decretar a morte de alguém. Mas, se vetasse claramente a morte da mulher, sustentando que se lhe devia perdoar, poderia vir a ser acusado ao Sinédrio como advogado da desobediência à Lei.
Mas, para Jesus, não se trata de optar entre a observância da Lei e a Misericórdia, entre a justiça e a caridade, mas entre a mentira e a verdade, entre a hipocrisia dos acusadores e a sinceridade de quem se reconhece pecador e chora o seu pecado. A Lei não determinava o género de morte, a não ser para a virgem que, depois dos esponsais, aguardava o início da vida conjugal (Dt 22, 23-24). Talvez se tivesse vindo a generalizar a lapidação, ou então tratava-se duma noiva após os esponsais e antes das bodas. E os rabinos do tempo de Cristo, por razão de benignidade, comutaram o apedrejamento pelo estrangulamento, pena menos selvagem.
Enfim, sob a aparência de fidelidade a Deus, manipulam a Lei – que nestes casos não determina em concreto o apedrejamento, mas a morte de homem de mulher – e servem-se duma mulher alegada e seletivamente (o homem pôde escapar) apanhada em flagrante para poderem acusar Jesus.
É de registar que Jesus permanece sentado, enquanto a mulher está de pé. Face à provocação, o Mestre não se intimida, nem se enerva. Ao invés, com calma e como senhor da situação, começa a escrever no chão com o dedo. É a primeira notícia de Jesus a escrever!
Não sabemos o que escreve ou se escreve alguma coisa em concreto. Como diz o Profeta, o Senhor escreveu na pedra a Lei e no chão as nossas iniquidades, é possível que escrevesse os pecados dos acusadores (como diz São Jerónimo baseado em Jr 17,13). Mas também, como toda a Lei com sentido de vida genuína vem de Deus e não do homem, é possível que escrevesse algo de nova lei a exemplo das bem-aventuranças e indicações subsequentes e o escrevesse no chão, o espaço comum a todos. E é ainda possível que o gesto de escrever no chão fosse apenas uma atitude de não querer fazer caso das acusações feitas. É, no entanto, natural que esta atitude de Jesus seja um ato simbólico, uma alusão a algo comum e entendido pelos circunstantes, pois o que se escreve no chão facilmente desaparece. Talvez Jesus queira mesmo dizer que o pecado de que era acusada a mulher foi escrito no chão, ou seja, já foi perdoado por Deus.
Todavia, os fariseus e escribas insistem numa resposta concreta. E Jesus ergueu a cabeça para declarar: “Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!”. É um apelo à Lei (Dt 13,10; 17,7) que, aplicada ao pecado de idolatria, ordena que as testemunhas iniciem a execução da condenação ao apedrejamento, isto é, que atirem a primeira pedra. É uma resposta tão inesperada como sábia, simples e profunda, tirando aos escribas e aos fariseus qualquer arma para condenar, quer a adúltera, quer Jesus.
Jesus muda o centro do debate. Em vez de admitir que se coloque a luz da lei acima da mulher para a poder condenar, pede aos adversários se examinem à luz do que a lei exige deles. Não discute a letra da Lei; discute e censura a atitude malédica e maléfica de quem manipula as pessoas e a Lei para defender os interesses contrários a Deus, autor da Lei.
Os adversários ficam desconcertados, pois esperavam de Jesus uma posição sobre uma questão legal, mas Ele recorda àqueles pretensos ‘juízes’ que são pecadores e, como tal, não podem condenar. Assim, com esta sentença, Jesus pretende confundir a malícia de falso zelo pela Lei, da parte dos seus inimigos, hipocritamente arvorados em defensores duma Lei que não observavam. Assim, Jesus transforma os acusadores em acusados. E o receio de virem a ser desmascarados por Cristo fá-los debandar, a começar pelos mais velhos. Por outro lado, o facto de Jesus baixar a cabeça deixa espaço à liberdade e à responsabilidade. Por isso, alguns ter-se-ão reconhecido pecadores, pelo que preferiram afastar-se. Na verdade, Santo Agostinho, ao comentar o Evangelho de João, observa que, “respondendo, o Senhor respeita a lei e não abandona a sua mansidão”. Depois, acrescenta que obriga, com estas suas palavras, os acusadores a entrarem em si mesmos e, refletindo sobre si próprios, a descobrirem-se também eles pecadores. Por isso, “atingidos por estas palavras como por uma flecha tão grande como uma trave, um por um foram-se embora” (In Io. Ev. tract. 33, 5).
Sem testemunhas acusatórias não pode haver condenação. Ninguém condenou a mulher. Em cena fica apenas Jesus e a mulher, no meio, onde foi colocada em exposição para ser julgada por Jesus. Mas ele não veio ao mundo para condenar, mas para salvar. A atitude final de Jesus expressa nas palavras “Nem eu te condeno” não é um atestado de bondade para a ação em referência. Jesus odeia o pecado porque é um mal em si mesmo, mas ama ainda mais a humanidade, convidando-a à libertação de tudo o que a impede de viver. Não se põe de pé, mas ergue simplesmente a cabeça, como fez com os outros, para lançar o desafio: “Vai e doravante não tornes a pecar”. É uma atitude de tolerância e de compaixão para com a pessoa que peca e, ao mesmo tempo, de intransigência para com o pecado, ofensa a Deus, e, neste caso, um absoluto moral, que em nenhuma circunstância se poderia justificar.
***
Ao invés do comum dos mortais, que falam pouco com o outro e muito do outro, Jesus quis falar com os acusadores e quis sobretudo falar com a mulher exposta ao julgamento dele diante de todos os circunstantes. Enquanto eles estavam dispostos a julgar, condenar e possivelmente a executar a sentença condenatória, o Senhor prefere ouvir e interpelar com vista a dar o perdão em nome da misericórdia e aproveitando a fragilidade da interpretação literalista da Lei. 
Temos, portanto, ante Jesus uma mulher que tinha cometido um erro que, segundo a Lei, merecia a pena capital. Para os escribas e fariseus, era uma oportunidade de ouro para testar a ortodoxia de Jesus e a sua fidelidade à Lei; mas, para Jesus, era crucial revelar a atitude de Deus frente ao pecado e ao pecador.
Jesus não branqueia o pecado nem desculpabiliza o comportamento da mulher. Sabe que o pecado não é um caminho aceitável, pois gera infelicidade e rouba a paz. Não obstante, não pactua com uma Lei que, em nome de Deus e de morais de validade duvidosa, gera morte. E, porque os mecanismos de Deus diferem dos da Lei, Jesus fica em silêncio por momentos e escreve no chão, como se pretendesse dar tempo aos participantes da cena para perceberem o que estava em causa. Convida os acusadores a tomarem consciência de que o pecado é consequência dos limites e fragilidades do homem, o que Deus bem entende. Por isso, desafia: “Quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”. E continua a escrever no chão, a ver se os acusadores interiorizam a lógica de Deus (da tolerância e da compreensão). Quando eles se retiram, Jesus nem pergunta à mulher se está ou não arrependida: convida-a, apenas, a seguir um caminho novo, de liberdade e de paz. E, depois que todos se foram embora, o Mestre divino permanece a sós com a mulher – dizia Bento XVI (Paróquia de Sta. Felicidade e Filhos Mártires, Domingo, 25 de Março de 2007), que refere que o comentário de Santo Agostinho é conciso e eficaz:
Relicti sunt duo: misera et misericordia, só permanecem as duas: a miserável e a misericórdia”.
E continua o Papa Bento XVI:
Detenhamo-nos a contemplar esta cena, em que se encontram confrontadas a miséria do homem e a misericórdia divina, uma mulher acusada de um grande pecado e Aquele que, embora fosse sem pecado, assumiu os nossos pecados, os pecados do mundo inteiro. Ele, que permaneceu inclinado a escrever no pó, agora eleva o seu olhar e encontra o da mulher. E não é irónico, quando lhe pergunta: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ (Jo 8,10). E responde-lhe de modo surpreendente: ‘Nem Eu te condeno. Vai, e doravante não tornes a pecar’ (8,11). No seu comentário, Santo Agostinho comenta ainda: ‘O Senhor condena o pecado, não o pecador. Com efeito, se tivesse tolerado o pecado, teria dito: Nem Eu te condeno. Vai, e vive como quiseres… por maiores que sejam os teus pecados, Eu libertar-te-ei de toda a pena e de todo o sofrimento’. Todavia, Ele não disse isto (In Io. Ev. tract. 33, 6). Mas disse: ‘Vai, e doravante não tornes a pecar’.”.
É que a lógica de Deus é uma lógica de vida, pelo que não passa pela eliminação dos que erram, mas pelo convite à vida nova, à conversão, à libertação de tudo o que oprime e escraviza. E matar em nome de Deus ou em nome de qualquer moral é ofensa inqualificável ao Deus da vida e do amor, que apenas quer a realização plena do homem.
Contra a nossa autossuficiência e tendência para julgar e condenar, devemos reconhecer que necessitamos da ajuda do amor e da misericórdia de Deus para chegarmos à vida plena do Homem Novo e devemos usar da tolerância e a misericórdia que Deus tem para com os homens, que são todos irmãos.
Na postura de Jesus, torna-se clarividente a misericórdia divina, que tem de contagiar a humanidade, para com todos aqueles que a teologia oficial considerava e considera marginais. Os notórios transgressores da Lei e da moral, os proscritos, os pecadores públicos, as meretrizes encontram em Jesus o sinal eloquente do Deus que ama e que diz: “Eu não te condeno”. Sem excluir ninguém, Jesus promove os desclassificados, dá-lhes e reconhece-lhes dignidade humana, autonomia, consciência e responsabilidade, torna-os pessoas, liberta-os, disponibiliza-lhes e aponta-lhes o caminho. A dinâmica de Deus é uma dinâmica de misericórdia e de amor. A misericórdia recompõe, restabelece e o amor transforma a realidade humana – mentalidades, coração, atitudes e comportamentos – e permite a superação dos limites humanos. É essa a realidade do Reino de Deus.
Enfim, falando menos dos outros e falando mais com eles e com Deus, passaremos de acusadores, juízes e condenadores a companheiros, amigos e irmãos. E, mais do que delatores, seremos a mão amiga o ombro de apoio, sabendo que, sempre que necessitarmos, também disporemos da oportuna mão amiga e ombro de apoio esperando apenas o juízo de Deus, menos justiçoso e mais misericordiante.
É ainda de recordar que foi inspirado na cena em que estiveram frente a frente Jesus e a mulher – Misericordia et misera, respetivamente, segundo Santo Agostinho –, que o Papa Francisco escreveu a memorável Carta Apostólica “Misericordia et misera” no encerramento do Jubileu Extraordinário da Misericórdia para indicar “o caminho que somos chamados a percorrer no futuro”, pois “a misericórdia não se pode reduzir a um parêntesis na vida da Igreja, mas constitui a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho. Tudo se revela na misericórdia; tudo se compendia no amor misericordioso do Pai” (vd M et m n.º 1).
Seja!
2019.04.07 – Louro de Carvalho

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