No
passado dia 7 de abril, 4.º domingo da Quaresma, o Cardeal Patriarca de Lisboa
presidiu, na igreja da Trindade, no Porto, à celebração eucarística da
ordenação episcopal de Dom Américo Aguiar, que o Papa Francisco, no passado dia
1 de março, nomeara Bispo Titular de Dagno e Auxiliar do Patriarcado de Lisboa.
A
homilia de Dom Manuel Clemente, apesar de marcada pela simplicidade discursiva,
constitui uma verdadeira pérola de espiritualidade e uma bela diretiva de ação
pastoral, inspirada na frase a completar “Porque
o Pai nos espera e a festa é possível…”, que serviu de mote.
Começou
pela parábola do Pai misericordioso e dos dois filhos vincando a necessidade de
nos fixarmos um pouco no filho mais novo, dada a naturalidade com que nos
identificamos tantas vezes no repetido afastamento da casa paterna, ou seja, de
Deus e da verdadeira comunhão com Ele – que consiste em “dar-Lhe graças e nunca
desperdiçar os seus dons” – persistindo na nossa orgulhosa autossuficiência e
fazendo finca-pé na nossa pretensa autonomia.
Depois,
considerando a Quaresma como tempo favorável para cairmos em nós próprios,
porfiou em sugerir o acolhimento da lição daquele filho mais novo na “decisão
de regressar” e na “confiança na inabalável disposição do Pai em recebê-lo”. Na
verdade, urge o tempo “da decisão em levantarmo-nos e voltarmos a Deus que
sempre nos espera”, incluindo o momento daquela “ocasião celebrativa”. E a primeira
exortação patriarcal não se fez esperar:
“Temos Deus à nossa espera, fruamos sempre com Ele os dons que nos
oferece, partilhando-os também”.
Porém, o
discurso homilético do celebrante orador sublinhou os inefáveis sentimentos
paternos evidenciados na parábola, tendo em linha de conta a da nossa contraditória
condição humana:
“Por longe que ainda estejamos, já nos avista e distingue; quando
voltamos finalmente, contritos e esperançosos, restitui-nos a dignidade
atingida e transborda em afeto – aquele afeto e alegria que preenchem o Céu por
cada pecador que se converte (cf Lc 15,7). Por cada um de nós, quando
realmente regressamos e nos reavemos como filhos de Deus. Sem Deus nos
perdemos, com Deus nos recuperamos, seja qual for a distância interior que nos
afastasse.”.
E,
considerando que nós, ao pressentirmos o sentimento que transborda do coração
do nosso Deus a criar e aviventar “o anseio de que a dignidade e o bem dos seus
filhos sejam respeitados, garantidos e recuperados”, nos apercebemos de que “o
máximo regozijo que terá é que tal seja assim e só assim, fosse o que fosse e
aconteça o que acontecer” e de que a casa do Pai, sempre disponível para nós, é
“o único lugar de Deus”, irrompe com a segunda exortação patriarcal:
“Apercebidos disso, compartilharemos também a misericórdia que O define,
para que ninguém se perca e não percamos ninguém. Isto se diga de nós, e muito
especialmente dum bispo, do lado do Pai e à espera de todos.”.
E o
discurso homilético passa de analítico e compreensivo a perentório ao assegurar
com toda a clareza: “O que nunca poderemos fazer é imitar a outra
personagem da parábola: O irmão mais velho, que se julgava impecável por não se
ter afastado do espaço físico daquela casa – ainda que jamais tivesse entrado
no infinito espaço do coração paterno”.
Talvez
esta postura se aplique a tantos de nós, se tivermos a ousadia de nos
desnudarmos diante de Deus. Como aquele irmão mais velho, longe de nos alegrarmos
com o regresso dos irmãos que designamos por pródigos – marginais, anormais,
troca-tintas, dissolutos, fraudulentos, ladrões, assassinos, vigaristas,
corruptos, energúmenos, sem Deus, beatos, papa-hóstias, etc. – criticamos o seu
regresso, protestamos, acusamo-los superlativamente e não queremos participar
no acolhimento e na festa que o Pai organiza. E acusamos também o Pai acolhedor
por ser perdulário no perdão a quem tudo lhe espatifou e insensível ao nosso
comportamento submisso e às nossas necessidades e caprichos.
Mas o
Pai vem em saída para instar com ele com as palavras evangélicas essenciais e profundas:
“Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava
morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado” (Lc 15,32).
De facto,
a festa tem de ser feita, não porque pecámos, mas porque tivemos a humildade e
a coragem de regressar; e é possível, porque o Pai é imensamente generoso,
espera por nós, sabe alegrar-se e comunicar alegria. Fruindo do sabor da
generosidade e da alegria, consegue aliar à justiça a misericórdia, fazendo que
esta prevaleça em prol do amor que tudo vence.
O Cardeal
Patriarca, chamando a nossa atenção para o facto de a parábola acabar em festa,
mas “sem nos dizer o que aconteceu depois e se o irmão mais velho sempre entrou
na festa, ou teimou em ficar de fora…”, frisa que a “palavra de salvação” se
torna “para cada um de nós ‘palavra de interrogação’, à espera que lhe demos
resposta positiva”. E o teor positivo da nossa resposta é no sentido de,
se estivermos longe, nos dispormos a regressar; se estivermos perto, nos dispormos
a maior aproximação; se estamos na casa paterna, nos dispormos a cooperar no
acolhimento dos que regressam e a participar na festa de acolhimento, de perdão
e de reintegração total; em qualquer momento e lugar nos dispormos a fazer tudo
junto de “quem esteja mais perto ou mais longe da casa do Pai”, “para que
regresse ao lugar onde a festa acontece”; e, “em termos aí a nossa alegria, sem
alheamento nem despeito pela chegada de alguém, mesmo que já não contássemos”, porque,
“na casa do Pai, os últimos são sempre os
primeiros” (cf Mt 20,16) e porque “Haverá mais alegria no Céu por um só
pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de
conversão” (Lc 15,7) ou “Assim há alegria
entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,10).
***
E o celebrante
orador tentou fazer a ponte entre o discurso da parábola e a celebração da ordenação
episcopal. Com efeito, os seguidores de Jesus Cristo – e de forma eminente os
bispos, como testemunhas e arautos privilegiados do Ressuscitado, que Se
entregara por nós na Ceia e no Calvário – são insistentemente instados a
regressar ao Pai sempre que se afastem da casa paterna, seja muito ou seja
pouco significativo tal afastamento, a partilhar a alegria do Pai celeste e dos
seus anjos pelo regresso dos pródigos, a banir da face da Terra a atitude
invejosa, acusatória e exclusivista dos irmãos mais velhos e, sobretudo, a
tomar a atitude do Pai misericordioso: chamar, esperar, correr ao encontro,
acolher, promover a festa pelo regresso dos pródigos, bem como instar pacientemente
com os que se escandalizam com o perdão aos pródigos e, fazendo birra, não
querem participar na festa integradora.
Aludindo
ao episódio parabólico do pastor que deixa as noventa e nove ovelhas no deserto
para ir à procura da que se perdeu, até a
encontrar – e ao encontrá-la, põe-na
alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e
diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’
– Dom Manuel Clemente atesta que “o ministério ordenado é na Igreja, e
da Igreja para o mundo, a revelação concreta do coração divino, como sacramento
de Cristo Pastor”. E Cristo Pastor – diz o Patriarca e Presidente da
Conferência Episcopal – “ao contrário do irmão mais velho da parábola, é o nosso
irmão absoluto, partilhando inteiramente dos sentimentos do Pai e vindo Ele
próprio buscar-nos onde estivermos e mesmo onde nos perdêssemos”.
Assim, “participar
do sentimento de Deus, na procura incansável de cada um e no acolhimento feliz
de quem regressa”, constitui a graça e o encargo do sacramento da ordenação episcopal,
tanto para o ordinando como para os outros bispos e, por extensão, para todos
os discípulos de Cristo, os cristãos, cada um na sua condição e segundo as suas
possibilidades, mas sempre em obediência aos ditames do Mestre dos mestres.
Depois,
o homiliante refere que foi neste dinamismo de vocação e acolhimento que “Jesus
escolheu os Doze, para serem ‘pescadores de homens’, recolhendo-os em redes de
convivência verdadeira e feliz, como cada comunidade ‘cristã’ há de ser e
necessariamente será”.
Então de
porta-vozes da chamada divina, os bispos passam a verdadeiros pescadores de
homens e pastores das ovelhas que o rebanho congrega sob o cuidado de Cristo, o
grande Pastor.
Mas há
um ouro múnus apostólico enunciado por São Paulo: os apóstolos e os seus
sucessores são verdadeiros “embaixadores de Cristo”, que propõem, não o abandono
ou a exclusão dos irmãos pecadores, mas a reconciliação com Deus. E esta reconciliação
exige a conformidade com Cristo, exemplo perfeito de comunhão divina, e que “os
ministros de Cristo, em tempos de hoje e em tempos de sempre”, vivam e se
apresentem “como quem foi recuperado por Cristo para viver com Deus e de Deus
para os outros”, pelo que “nada menos do que isto importa e urge, de nós para
todos e para cada um que encontremos aqui, ou busquemos mais longe”.
E o Cardeal
reconhece que “há tanto que encontrar e buscar nos nossos dias, para que a
festa de Deus aconteça”. Porém, identifica um problema: “quando dispomos de tantas possibilidades de comunicação e reencontro, o
convite demora e a escuta é difícil”, pois “a acumulação do que se emite atropela as mensagens, dispersa a atenção,
dilui as perguntas e adia as respostas”. Ora, face aos desencontros que há
hoje (físicos
e morais), como
sempre houve nos “pródigos” que somos, encontra-se a solução na “definição
pessoal e clara de quem pergunta”, pois só com ela se poderá “interpelar quem
responda”. Por isso, “o que mais importa a todos nós, discípulos e ministros de
Cristo – sentenciou o homiliante – “é sermos verdadeiramente tais, contritos e
convictos, coerentes e límpidos no anúncio e na vida”; é embarcar nesta rota de
“purificação” a que é chamada a Igreja, como destaca o Papa Francisco e o mundo
aguarda, este itinerário quaresmal de escuta, reflexão, sobriedade, oração e
partilha, que nos conduz ao tempo da festa pascal, que se avizinha galopantemente.
Porque o
Pai nos espera a nós que nos desviamos da rota e a retomamos, por que Ele é
generoso e mostra o seu poder misericordiando, perdoando e rejubilando com o
reencontro dos filhos, a festa é possível, acontece e vem aí. E vem para todos.
Que ninguém a rejeite, porque não se pode deitar fora aquilo que Deus nos dá!
***
É expectável que Dom Américo Aguiar, um homem da comunicação e
do desígnio de fazer pontes e abater os muros, assuma cada uma das palavras do
Cardeal Patriarca. Recorde-se que viveu nas 24 horas que antecederam a sua
ordenação episcopal momentos de dor devido ao falecimento de sua mãe, facto a
que se referiu de modo implícito na sua alocução no final da celebração ao
recordar o seu lema episcopal “In Manus
Tuas”, dizendo que não esperava que o lema tivesse consequências tão
imediatas, mas que sim, seja feita a vontade de Deus.
É de ter em conta que a escolha do lema episcopal de Dom
Américo é uma referência específica ao exemplo e testemunho de Dom António
Francisco dos Santos, Bispo do Porto entre 2014 e 2017. Em entrevista à Voz Portucalense, a propósito da sua nomeação
para Bispo Auxiliar de Lisboa, declarou querer homenagear a bondade de Dom
António Francisco e disse:
“Eu tive a graça de viver com ele no
Porto, intensamente, a correr de Lisboa para o Porto e do Porto para Lisboa, e
sei muito bem o quanto ele se deu e deu até ao fim. Sem ‘ses’ e sem ‘mas’, e
sem nos escutar naquilo que eram os nossos pedidos e provocações para que ele
se poupasse. Mas depois aprendi e aprendemos todos que o Bom Pastor não tem ‘ses’
nem ‘mas’. E é isso que eu quero e desejo fazer e peço ao Senhor que me permita
ser. “In manus tuas”, Pai, nas tuas
mãos, entrego o meu espírito, quer significar este fim e início. Foram as
últimas palavras de Jesus na cruz e foi o início de uma história bonita da qual
todos nós usufruímos. A homenagem ao senhor Dom António Francisco quer ser
também essa bondade que tanto marcou o seu pontificado. E aquela frase que me
marca profundamente quando ele dizia na homilia da entrada: ‘Só pela Bondade
aprenderemos a fazer do poder um Serviço, da Autoridade uma Proximidade e do
Ministério a Paixão da missão de anunciar a alegria do Evangelho’. O Evangelho
é tudo o que temos e somos. In manus tuas.
Assim será.”.
***
E é
desta massa que surgem os grandes homens e que Deus faz os santos e os apóstolos!
2019.04.06 –
Louro de Carvalho
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