sábado, 6 de abril de 2019

Porque o Pai espera por nós, vem aí a grande festa


No passado dia 7 de abril, 4.º domingo da Quaresma, o Cardeal Patriarca de Lisboa presidiu, na igreja da Trindade, no Porto, à celebração eucarística da ordenação episcopal de Dom Américo Aguiar, que o Papa Francisco, no passado dia 1 de março, nomeara Bispo Titular de Dagno e Auxiliar do Patriarcado de Lisboa.  
A homilia de Dom Manuel Clemente, apesar de marcada pela simplicidade discursiva, constitui uma verdadeira pérola de espiritualidade e uma bela diretiva de ação pastoral, inspirada na frase a completar “Porque o Pai nos espera e a festa é possível…”, que serviu de mote.
Começou pela parábola do Pai misericordioso e dos dois filhos vincando a necessidade de nos fixarmos um pouco no filho mais novo, dada a naturalidade com que nos identificamos tantas vezes no repetido afastamento da casa paterna, ou seja, de Deus e da verdadeira comunhão com Ele – que consiste em “dar-Lhe graças e nunca desperdiçar os seus dons” – persistindo na nossa orgulhosa autossuficiência e fazendo finca-pé na nossa pretensa autonomia.
Depois, considerando a Quaresma como tempo favorável para cairmos em nós próprios, porfiou em sugerir o acolhimento da lição daquele filho mais novo na “decisão de regressar” e na “confiança na inabalável disposição do Pai em recebê-lo”. Na verdade, urge o tempo “da decisão em levantarmo-nos e voltarmos a Deus que sempre nos espera”, incluindo o momento daquela “ocasião celebrativa”. E a primeira exortação patriarcal não se fez esperar:
Temos Deus à nossa espera, fruamos sempre com Ele os dons que nos oferece, partilhando-os também”.
Porém, o discurso homilético do celebrante orador sublinhou os inefáveis sentimentos paternos evidenciados na parábola, tendo em linha de conta a da nossa contraditória condição humana: 
Por longe que ainda estejamos, já nos avista e distingue; quando voltamos finalmente, contritos e esperançosos, restitui-nos a dignidade atingida e transborda em afeto – aquele afeto e alegria que preenchem o Céu por cada pecador que se converte (cf Lc 15,7). Por cada um de nós, quando realmente regressamos e nos reavemos como filhos de Deus. Sem Deus nos perdemos, com Deus nos recuperamos, seja qual for a distância interior que nos afastasse.”. 
E, considerando que nós, ao pressentirmos o sentimento que transborda do coração do nosso Deus a criar e aviventar “o anseio de que a dignidade e o bem dos seus filhos sejam respeitados, garantidos e recuperados”, nos apercebemos de que “o máximo regozijo que terá é que tal seja assim e só assim, fosse o que fosse e aconteça o que acontecer” e de que a casa do Pai, sempre disponível para nós, é “o único lugar de Deus”, irrompe com a segunda exortação patriarcal:
Apercebidos disso, compartilharemos também a misericórdia que O define, para que ninguém se perca e não percamos ninguém. Isto se diga de nós, e muito especialmente dum bispo, do lado do Pai e à espera de todos.”.
E o discurso homilético passa de analítico e compreensivo a perentório ao assegurar com toda a clareza: “O que nunca poderemos fazer é imitar a outra personagem da parábola: O irmão mais velho, que se julgava impecável por não se ter afastado do espaço físico daquela casa – ainda que jamais tivesse entrado no infinito espaço do coração paterno”.
Talvez esta postura se aplique a tantos de nós, se tivermos a ousadia de nos desnudarmos diante de Deus. Como aquele irmão mais velho, longe de nos alegrarmos com o regresso dos irmãos que designamos por pródigos – marginais, anormais, troca-tintas, dissolutos, fraudulentos, ladrões, assassinos, vigaristas, corruptos, energúmenos, sem Deus, beatos, papa-hóstias, etc. – criticamos o seu regresso, protestamos, acusamo-los superlativamente e não queremos participar no acolhimento e na festa que o Pai organiza. E acusamos também o Pai acolhedor por ser perdulário no perdão a quem tudo lhe espatifou e insensível ao nosso comportamento submisso e às nossas necessidades e caprichos.
Mas o Pai vem em saída para instar com ele com as palavras evangélicas essenciais e profundas:
Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado” (Lc 15,32).
De facto, a festa tem de ser feita, não porque pecámos, mas porque tivemos a humildade e a coragem de regressar; e é possível, porque o Pai é imensamente generoso, espera por nós, sabe alegrar-se e comunicar alegria. Fruindo do sabor da generosidade e da alegria, consegue aliar à justiça a misericórdia, fazendo que esta prevaleça em prol do amor que tudo vence.  
O Cardeal Patriarca, chamando a nossa atenção para o facto de a parábola acabar em festa, mas “sem nos dizer o que aconteceu depois e se o irmão mais velho sempre entrou na festa, ou teimou em ficar de fora…”, frisa que a “palavra de salvação” se torna “para cada um de nós ‘palavra de interrogação’, à espera que lhe demos resposta positiva”. E o teor positivo da nossa resposta é no sentido de, se estivermos longe, nos dispormos a regressar; se estivermos perto, nos dispormos a maior aproximação; se estamos na casa paterna, nos dispormos a cooperar no acolhimento dos que regressam e a participar na festa de acolhimento, de perdão e de reintegração total; em qualquer momento e lugar nos dispormos a fazer tudo junto de “quem esteja mais perto ou mais longe da casa do Pai”, “para que regresse ao lugar onde a festa acontece”; e, “em termos aí a nossa alegria, sem alheamento nem despeito pela chegada de alguém, mesmo que já não contássemos”, porque, “na casa do Pai, os últimos são sempre os primeiros” (cf Mt 20,16) e porque “Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão” (Lc 15,7) ou “Assim há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,10).
***
E o celebrante orador tentou fazer a ponte entre o discurso da parábola e a celebração da ordenação episcopal. Com efeito, os seguidores de Jesus Cristo – e de forma eminente os bispos, como testemunhas e arautos privilegiados do Ressuscitado, que Se entregara por nós na Ceia e no Calvário – são insistentemente instados a regressar ao Pai sempre que se afastem da casa paterna, seja muito ou seja pouco significativo tal afastamento, a partilhar a alegria do Pai celeste e dos seus anjos pelo regresso dos pródigos, a banir da face da Terra a atitude invejosa, acusatória e exclusivista dos irmãos mais velhos e, sobretudo, a tomar a atitude do Pai misericordioso: chamar, esperar, correr ao encontro, acolher, promover a festa pelo regresso dos pródigos, bem como instar pacientemente com os que se escandalizam com o perdão aos pródigos e, fazendo birra, não querem participar na festa integradora.     
Aludindo ao episódio parabólico do pastor que deixa as noventa e nove ovelhas no deserto para ir à procura da que se perdeu, até a encontrar – e ao encontrá-la, põe-na alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’ – Dom Manuel Clemente atesta que “o ministério ordenado é na Igreja, e da Igreja para o mundo, a revelação concreta do coração divino, como sacramento de Cristo Pastor”. E Cristo Pastor – diz o Patriarca e Presidente da Conferência Episcopal – “ao contrário do irmão mais velho da parábola, é o nosso irmão absoluto, partilhando inteiramente dos sentimentos do Pai e vindo Ele próprio buscar-nos onde estivermos e mesmo onde nos perdêssemos”.
Assim, “participar do sentimento de Deus, na procura incansável de cada um e no acolhimento feliz de quem regressa”, constitui a graça e o encargo do sacramento da ordenação episcopal, tanto para o ordinando como para os outros bispos e, por extensão, para todos os discípulos de Cristo, os cristãos, cada um na sua condição e segundo as suas possibilidades, mas sempre em obediência aos ditames do Mestre dos mestres.
Depois, o homiliante refere que foi neste dinamismo de vocação e acolhimento que “Jesus escolheu os Doze, para serem ‘pescadores de homens’, recolhendo-os em redes de convivência verdadeira e feliz, como cada comunidade ‘cristã’ há de ser e necessariamente será”.
Então de porta-vozes da chamada divina, os bispos passam a verdadeiros pescadores de homens e pastores das ovelhas que o rebanho congrega sob o cuidado de Cristo, o grande Pastor.
Mas há um ouro múnus apostólico enunciado por São Paulo: os apóstolos e os seus sucessores são verdadeiros “embaixadores de Cristo”, que propõem, não o abandono ou a exclusão dos irmãos pecadores, mas a reconciliação com Deus. E esta reconciliação exige a conformidade com Cristo, exemplo perfeito de comunhão divina, e que “os ministros de Cristo, em tempos de hoje e em tempos de sempre”, vivam e se apresentem “como quem foi recuperado por Cristo para viver com Deus e de Deus para os outros”, pelo que “nada menos do que isto importa e urge, de nós para todos e para cada um que encontremos aqui, ou busquemos mais longe”.
E o Cardeal reconhece que “há tanto que encontrar e buscar nos nossos dias, para que a festa de Deus aconteça”. Porém, identifica um problema: “quando dispomos de tantas possibilidades de comunicação e reencontro, o convite demora e a escuta é difícil”, pois “a acumulação do que se emite atropela as mensagens, dispersa a atenção, dilui as perguntas e adia as respostas”. Ora, face aos desencontros que há hoje (físicos e morais), como sempre houve nos “pródigos” que somos, encontra-se a solução na “definição pessoal e clara de quem pergunta”, pois só com ela se poderá “interpelar quem responda”. Por isso, “o que mais importa a todos nós, discípulos e ministros de Cristo – sentenciou o homiliante – “é sermos verdadeiramente tais, contritos e convictos, coerentes e límpidos no anúncio e na vida”; é embarcar nesta rota de “purificação” a que é chamada a Igreja, como destaca o Papa Francisco e o mundo aguarda, este itinerário quaresmal de escuta, reflexão, sobriedade, oração e partilha, que nos conduz ao tempo da festa pascal, que se avizinha galopantemente.
Porque o Pai nos espera a nós que nos desviamos da rota e a retomamos, por que Ele é generoso e mostra o seu poder misericordiando, perdoando e rejubilando com o reencontro dos filhos, a festa é possível, acontece e vem aí. E vem para todos. Que ninguém a rejeite, porque não se pode deitar fora aquilo que Deus nos dá!
***
É expectável que Dom Américo Aguiar, um homem da comunicação e do desígnio de fazer pontes e abater os muros, assuma cada uma das palavras do Cardeal Patriarca. Recorde-se que viveu nas 24 horas que antecederam a sua ordenação episcopal momentos de dor devido ao falecimento de sua mãe, facto a que se referiu de modo implícito na sua alocução no final da celebração ao recordar o seu lema episcopal “In Manus Tuas”, dizendo que não esperava que o lema tivesse consequências tão imediatas, mas que sim, seja feita a vontade de Deus.
É de ter em conta que a escolha do lema episcopal de Dom Américo é uma referência específica ao exemplo e testemunho de Dom António Francisco dos Santos, Bispo do Porto entre 2014 e 2017. Em entrevista à Voz Portucalense, a propósito da sua nomeação para Bispo Auxiliar de Lisboa, declarou querer homenagear a bondade de Dom António Francisco e disse:
Eu tive a graça de viver com ele no Porto, intensamente, a correr de Lisboa para o Porto e do Porto para Lisboa, e sei muito bem o quanto ele se deu e deu até ao fim. Sem ‘ses’ e sem ‘mas’, e sem nos escutar naquilo que eram os nossos pedidos e provocações para que ele se poupasse. Mas depois aprendi e aprendemos todos que o Bom Pastor não tem ‘ses’ nem ‘mas’. E é isso que eu quero e desejo fazer e peço ao Senhor que me permita ser. “In manus tuas”, Pai, nas tuas mãos, entrego o meu espírito, quer significar este fim e início. Foram as últimas palavras de Jesus na cruz e foi o início de uma história bonita da qual todos nós usufruímos. A homenagem ao senhor Dom António Francisco quer ser também essa bondade que tanto marcou o seu pontificado. E aquela frase que me marca profundamente quando ele dizia na homilia da entrada: ‘Só pela Bondade aprenderemos a fazer do poder um Serviço, da Autoridade uma Proximidade e do Ministério a Paixão da missão de anunciar a alegria do Evangelho’. O Evangelho é tudo o que temos e somos. In manus tuas. Assim será.”.
***
E é desta massa que surgem os grandes homens e que Deus faz os santos e os apóstolos!
2019.04.06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário