Digo-o com o mesmo à vontade com que o fiz
aquando do caso em que era arguido em Portugal Manel Vicente e o nosso
Ministério Público aduzia que a justiça angolana não era credível.
Por outro lado, recordo que estamos habituados a
ver os detentores de órgãos de soberania, incluindo obviamente os magistrados,
a não comentar processos judiciais em concreto.
Isto vem a propósito da intervenção de Sérgio
Moro, Ministro da Justiça e Segurança Pública
do Brasil, no painel “O Estado
democrático de Direito e o combate à criminalidade organizada e à corrupção”,
no âmbito do
VII Fórum Jurídico sob o tema Justiça e
Segurança (valores intrínsecos à atuação do direito, cuja função é
colocá-los em prática), que
decorreu, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, de 22 a 24 de
abril, e cuja cerimónia de abertura teve a presença e a palavra do Presidente
da República Marcelo Rebelo de Sousa. Convém referir que Moro, membro do
Governo de Jair Bolsonaro, que tomou posse em janeiro, se tornou conhecido pela
condenação de Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, e agora teceu comentários
a propósito da Operação Marquês em que um dos arguidos é Sócrates,
ex-primeiro-ministro português.
No predito
Fórum Jurídico, que contou com a participação de vários governantes
portugueses e brasileiros, para lá de juristas, académicos e investigadores na
área judicial, foram
abordados assuntos relevantes do foro político internacional pelo presidente do
senado do Brasil, Davi Alcolumbre, o presidente da câmara dos deputados
brasileira, Rodrigo Maia, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça de
Portugal, João Otávio de Noronha, e o diretor da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Pedro Romano Martinez, entre outros.
As várias
conferências abordaram temas de atualidade, como “Reformas na Justiça, no domínio penal e processual penal”, “Segurança Pública”, “Custos públicos e privados em segurança no
Brasil” e “Execução penal e crise
penitenciária”.
O segundo
dia teve como palestrantes: o diretor-geral da Polícia Federal no Brasil de
2011 a 2017 e coordenador de Inteligência e Segurança da FGV Projetos, Leandro
Daiello; o senador brasileiro António Anastasia; e o criminalista Sacha Darke.
E o último
dia ficou marcado pelo painel “Redes
sociais, Informação e Democracia”, com um painel composto pelo
diretor-geral da Impresa, Ricardo Costa, e a diretora da Lusa, Luísa Meireles,
entre outros. Em debate estiveram questões pertinentes dos desafios e limites
que se colocam à comunicação social, entre os quais ‘fake news’ e as redes
sociais.
O Fórum
Jurídico é um evento anual fruto da parceria estabelecida entre o IDP (Instituto Brasiliense
de Direito Público) e o
ICJP/FDUL (Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa) –
organizadores do evento.
O seminário, que abordou a capacidade do Estado de promover
qualidade de vida e bem-estar para os seus cidadãos sob a perspetiva da Justiça e Segurança, tinha como objetivo
debater soluções, ações e políticas públicas que busquem solucionar ou amenizar
os impactos da globalização e das mudanças sociopolíticas nos campos da
segurança pública, da seguridade social, da criminalidade organizada, das
reformas na justiça, no domínio penal e processual penal, da governança 4.0, da
inteligência artificial, entre outros.
***
O ministro que, enquanto juiz, lançou a Operação Lava-Jato no Brasil interveio no
referido painel do VII Fórum Jurídico no passado dia 22, falando do combate à
criminalidade e à corrupção e fazendo referência explícita à Operação Marquês em Portugal.
Referindo
que há uma “dificuldade institucional” em Portugal em fazer avançar o processo
contra o antigo primeiro-ministro José Sócrates, tal como acontece no Brasil,
observou:
“O Brasil está perto da centésima posição no Índice de
Perceção da Corrupção, enquanto Portugal está entre a vigésima e a trigésima
posição. É famoso o exemplo envolvendo o antigo primeiro-ministro José Sócrates
[na Operação Marquês], que, vendo à distância, percebe-se alguma dificuldade
institucional para que esse processo caminhe num tempo razoável, assim como nós
temos essa dificuldade institucional no Brasil.”.
Sérgio
Moro deitou mais achas para a fogueira ao assegurar que “a corrupção, a
criminalidade violenta e a criminalidade organizada caminham juntas” e ao
explicar que estes desafios levaram o executivo brasileiro a optar por uma
abordagem conjunta.
Vincando
que “boa parte dos homicídios constitui um produto de disputa de mercado entre
organizações criminosas ou cobranças, muitas vezes com sangue, feitas a utilizadores
do mercado de droga”, disse:
“Com estes desafios, a nossa opção foi apresentar um projeto com medidas
simples, mas fundamentais, porque estes três tipos de crime caminham juntos”.
Em jeito
de lamento, disse que a corrupção “muitas vezes desvia os recursos públicos que
deviam servir para enfrentar eficazmente os recursos do Estado contra a criminalidade
violenta e organizada”. Porém, comparando a criminalidade violenta no Brasil e
em Portugal, considerou que as diferenças são enormes:
“Temos um problema sério com a criminalidade violenta:
em 2016 alcançámos o triste recorde de mais de 60 mil homicídios, e a taxa
mantém-se mais ou menos nessa linha, enquanto em Portugal houve 76 homicídios,
ou seja, a diferença é brutal, e nesse ponto Portugal causa-nos muito inveja”.
Moro foi
o juiz responsável pela condução da Operação Lava Jato, que desvendou grandes
esquemas de corrupção na petrolífera estatal brasileira Petrobras, e pela
prisão de empresários, ex-funcionários públicos e políticos de renome como o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Já o
inquérito da Operação Marquês culminou na acusação pela justiça de 28 arguidos –
19 pessoas e nove empresas – e está relacionado com a alegada prática de quase
duas centenas de crimes de natureza económico-financeira. Mas o desfecho está
longe de ser conhecido.
Recorde-se que Sócrates esteve preso preventivamente
durante dez meses e depois em prisão domiciliária, está acusado de 3 crimes de
corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais,
9 de falsificação de documentos e 3 de fraude fiscal qualificada.
Entre outros
factos, Sócrates é acusado de ter recebido cerca de 34 milhões de euros (entre
2006 e 2015) a troco
de favorecimentos a interesses de Ricardo Salgado no GES (Grupo
Espírito Santo) e na
PT, bem como por garantir a concessão de financiamento da CGD (Caixa
Geral de Depósitos)
ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve e por favorecer negócios do Grupo
Lena.
***
O antigo
primeiro-ministro não se calou e, afirmando que o Brasil está a viver “uma
tragédia institucional” considerou que o Ministro da Justiça e Segurança
Pública do Brasil atuou como “um ativista político disfarçado de juiz”. É o que
consta de nota enviada por José Sócrates à agência Lusa depois de o governante brasileiro e ex-juiz responsável pela
Operação Lava Jato ter identificado uma “dificuldade institucional” em Portugal
em fazer avançar o processo contra o antigo primeiro-ministro José Sócrates,
tal como acontece no Brasil.
Com efeito, respondendo à intervenção proferida por Moro na Conferência
de Abertura sobre “o Estado Democrático
de Direito e o Combate à Criminalidade Organizada e à Corrupção”, no VII
Fórum Jurídico de Lisboa, o antigo líder do executivo português (2005/2011) declarou:
“O que
o Brasil está a viver é uma desonesta instrumentalização do seu sistema
judicial ao serviço de um determinado e concreto interesse político”.
José
Sócrates disse que isto “é o que acontece quando um ativista político atua
disfarçado de juiz”, esclareceu que “não
é apenas um problema institucional, é uma tragédia institucional”, e avisou
que voltará ao assunto.
E, na reação à intervenção proferida por Sérgio Moro, o antigo
primeiro-ministro português referiu que o atual ministro brasileiro, enquanto
juiz, validou “ilegalmente uma escuta telefónica” entre a então Presidente da
República, Dilma Roussef, e o seu antecessor na chefia do Estado brasileiro,
Lula da Silva. E, nesse sentido, discorreu:
“O juiz decide, ilegalmente, entregar a gravação à rede de televisão
Globo, que a divulga nesse mesmo dia, o juiz condena o antigo Presidente [Lula
da Silva] por corrupção em atos indeterminados, o juiz prende o ex-Presidente
antes de a sentença transitar em julgado, violando frontalmente a constituição
brasileira. O juiz, em gozo de férias e sem jurisdição no caso, age ilegalmente
para impedir que a decisão de um desembargador que decidiu pela libertação de
Lula seja cumprida.”.
Também o antigo primeiro-ministro (e líder do
PS) lembrou
que, nessa mesma fase do processo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas notificou as instituições brasileiras para que permitissem a candidatura
de Lula da Silva e o acesso aos meios de campanha. E acrescentou:
“Mas as instituições brasileiras recusam, violando assim o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos que o Brasil livremente
subscreveu. No final, o juiz obtém o seu prémio: é nomeado Ministro da Justiça
pelo Presidente eleito [Jair Bolsonaro] e principal beneficiário das decisões
de condenar, prender e impedir a candidatura de Lula da Silva.”.
Em suma, para o antigo líder dos socialistas portugueses, este
“espetáculo” no Brasil em torno da Operação Lava Jato “é, na realidade,
bastante sinistro”.
E, em
entrevista à TVI24, Sócrates referiu que durante a primeira fase do processo
Operação Marquês, em que é arguido e suspeito de ter cometido 31 crimes, houve
um juiz – Carlos Alexandre – que atuou com parcialidade e equiparou-o ao juiz
brasileiro e agora ministro de Bolsonaro, Sérgio Moro.
Para o ex-governante português, Moro é “um ativista disfarçado de juiz”, que só chegou a ministro por ter
detido o ex-presidente Lula da Silva. Para José Sócrates, parece que “há uma
escola internacional que pensa que é possível instrumentalizar juízes”.
Na mesma
entrevista, José Sócrates sublinhou várias vezes sentir-se chocado com o facto
de a comunidade jurídica portuguesa ter aceitado receber Sérgio Moro para
apresentar o seu pacote anticrime, que, afirma, “viola o direito internacional”.
E criticou também a comunidade política
e o próprio Governo por não terem manifestado qualquer reação ao convite a Moro
que o trouxe até à Faculdade de Direito de Lisboa. Sócrates disse acreditar
haver pessoas no Governo que se devem ter sentido “tão chocadas” como ele com “esta
celebração na Faculdade de Direito”.
Também
voltou a referir a classe jornalista manifestando-se chocado com a atitude
acrítica dos jornalistas perante a apresentação do pacote anticrime de Moro. E
disse: “Espanta-me não ter havido uma
reação”.
Questionado
pelo jornalista da TVI24 sobre o debate instrutório da Operação Marquês, José
Sócrates recusou comentar esta fase do processo, que ainda decorre, porque,
neste momento, “há um juiz que respeito e que considero independente”, disse referindo-se
a Ivo Rosa.
***
O ministro
brasileiro respondeu a Sócrates e fê-lo de forma simples e curta: “Não debato com criminosos”. Foi desta
forma que Sérgio Moro, respondeu aos ataques proferidos pelo ex-primeiro-ministro
português José Sócrates numa entrevista à TVI24.
Sócrates acusara Sérgio Moro de ser “um ativista político disfarçado de
juiz”, criticando a sua participação no Fórum Jurídico de Lisboa, no dia 22, na
Faculdade de Direito da UL.
Horas mais
tarde, Moro, numa entrevista à Record TVEuropa, referia:
“Em relação à pessoa em particular, eu não debato com criminosos pela
televisão. Então, não vou fazer mais comentários.”.
Segundo a revista Sábado, Moro
explicou ainda:
“Em
todo o lugar do mundo é difícil lidar com esses crimes de grande corrupção,
envolvem pessoas poderosas. O sistema está preparado para [combater] outro tipo
de criminalidade, mas todos os países precisam de avançar nessa área e
enfrentar a grande corrupção.”.
***
José Sócrates não perdeu tempo respondeu a Moro:
“Não, nunca cometi nenhum crime nem fui
condenado”. E fê-lo em texto
enviado ao Diário de Notícias, onde
responde ao Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil e antigo juiz do
caso Lava-Jato, dizendo:
“Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado por nenhum crime. Não
posso aceitar ser condenado sem julgamento.”.
Primeiro, o
ataque foi desferido por Sócrates, chocado com a presença de Moro no VII Fórum
Jurídico de Lisboa: “Um ativista político
disfarçado de juiz” – disse em entrevista à TVI 24.
Depois, em entrevista
à TV Record, veio o contra-ataque de Moro, recusando responder ao
ex-primeiro-ministro: “Em relação à
pessoa em particular, eu não debato com criminosos pela televisão. Então, não
vou fazer mais comentários”, disse o Ministro e Juiz.
Agora, numa
declaração escrita enviada ao Diário de
Notícias, Sócrates contrarreplica:
“Impossível
ler a declaração do Ministro da Justiça brasileiro sem um esgar de repugnância.
Ela põe em causa os princípios básicos do direito e da decência democrática.
Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado por nenhum crime. Não posso
aceitar ser condenado sem julgamento, muito menos por autoridades brasileiras.”.
O antigo
primeiro-ministro vai mais longe, atacando o governo de Jair Bolsonaro onde
Moro é responsável pela pasta da Justiça e atirando:
“Na Europa conhecemos bem o ovo da serpente. Conhecemos o significado
das palavras de agressão, de insulto e de violência política. Conhecemos o
significado dos discursos governamentais que celebram golpes militares,
defendem a tortura e recomendam o banimento dos adversários políticos. E até
conhecemos o significado do silêncio daqueles que assistem a tudo isto como se
nada fosse com eles.”.
No final,
deixa o último ataque a Sério Moro:
“Há no entanto, em todo este
episódio, um mérito: as palavras produzidas confirmam o que já se sabia do
personagem- como juiz, indigno; como político, medíocre; como pessoa, lamentável”.
***
Não morro
de amores (nem de ódios)
por Sócrates e sei que, vindo a provar-se inequivocamente os factos que lhe são
imputados, será condenado e punido com pena proporcionada. Porém, até decisão
condenatória transitada em julgado, não pode, pelo menos por entidades que têm
a obrigação de respeitar a presunção de inocência, ser considerado criminoso,
embora seja, de momento, incontornável o juízo que a opinião pública faça a seu
respeito.
Não penso
admissível que as autoridades portuguesas vetassem ou criticassem a presença de
Moro no VII Fórum Jurídico, pois devem respeitar a autonomia da Universidade e
a excelência da produção e divulgação do conhecimento, bem como as parcerias estabelecidas
em termos internacionais. O mesmo não digo dos jornalistas, a quem incumbe um saudável
papel crítico e o poder de informar e purificar a opinião pública.
Do ponto
de vista técnico, as afirmações de Sérgio Moro são imbatíveis, mas cabia-lhe o
dever de não referir um caso em processo na justiça portuguesa nem fazer juízos
de valor sobre a capacidade da mesma. Para a elogiar ou para a deitar abaixo estamos
cá nós.
Por fim,
embora assista a Sócrates o direito de falar em sua defesa – até porque já
esteve preso quando andam à solta outros que prejudicaram mais pessoas, instituições
e interesses – ele não pode ter-se como o centro do mundo, falar ex cátedra sobre tudo e a todos acusar.
2019.04.24 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário