quinta-feira, 25 de abril de 2019

O Brasil tem de respeitar a justiça portuguesa e não desvalorizá-la


Digo-o com o mesmo à vontade com que o fiz aquando do caso em que era arguido em Portugal Manel Vicente e o nosso Ministério Público aduzia que a justiça angolana não era credível.
Por outro lado, recordo que estamos habituados a ver os detentores de órgãos de soberania, incluindo obviamente os magistrados, a não comentar processos judiciais em concreto.
Isto vem a propósito da intervenção de Sérgio Moro, Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, no painel “O Estado democrático de Direito e o combate à criminalidade organizada e à corrupção”, no âmbito do VII Fórum Jurídico sob o tema Justiça e Segurança (valores intrínsecos à atuação do direito, cuja função é colocá-los em prática), que decorreu, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, de 22 a 24 de abril, e cuja cerimónia de abertura teve a presença e a palavra do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Convém referir que Moro, membro do Governo de Jair Bolsonaro, que tomou posse em janeiro, se tornou conhecido pela condenação de Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, e agora teceu comentários a propósito da Operação Marquês em que um dos arguidos é Sócrates, ex-primeiro-ministro português.  
No predito Fórum Jurídico, que contou com a participação de vários governantes portugueses e brasileiros, para lá de juristas, académicos e investigadores na área judicial, foram abordados assuntos relevantes do foro político internacional pelo presidente do senado do Brasil, Davi Alcolumbre, o presidente da câmara dos deputados brasileira, Rodrigo Maia, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, João Otávio de Noronha, e o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Pedro Romano Martinez, entre outros.
As várias conferências abordaram temas de atualidade, como “Reformas na Justiça, no domínio penal e processual penal”, “Segurança Pública”, “Custos públicos e privados em segurança no Brasil” e “Execução penal e crise penitenciária”.
O segundo dia teve como palestrantes: o diretor-geral da Polícia Federal no Brasil de 2011 a 2017 e coordenador de Inteligência e Segurança da FGV Projetos, Leandro Daiello; o senador brasileiro António Anastasia; e o criminalista Sacha Darke.
E o último dia ficou marcado pelo painel “Redes sociais, Informação e Democracia”, com um painel composto pelo diretor-geral da Impresa, Ricardo Costa, e a diretora da Lusa, Luísa Meireles, entre outros. Em debate estiveram questões pertinentes dos desafios e limites que se colocam à comunicação social, entre os quais ‘fake news’ e as redes sociais.
O Fórum Jurídico é um evento anual fruto da parceria estabelecida entre o IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) e o ICJP/FDUL (Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) – organizadores do evento.
O seminário, que abordou a capacidade do Estado de promover qualidade de vida e bem-estar para os seus cidadãos sob a perspetiva da Justiça e Segurança, tinha como objetivo debater soluções, ações e políticas públicas que busquem solucionar ou amenizar os impactos da globalização e das mudanças sociopolíticas nos campos da segurança pública, da seguridade social, da criminalidade organizada, das reformas na justiça, no domínio penal e processual penal, da governança 4.0, da inteligência artificial, entre outros.
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O ministro que, enquanto juiz, lançou a Operação Lava-Jato no Brasil interveio no referido painel do VII Fórum Jurídico no passado dia 22, falando do combate à criminalidade e à corrupção e fazendo referência explícita à Operação Marquês em Portugal.
Referindo que há uma “dificuldade institucional” em Portugal em fazer avançar o processo contra o antigo primeiro-ministro José Sócrates, tal como acontece no Brasil, observou:
“O Brasil está perto da centésima posição no Índice de Perceção da Corrupção, enquanto Portugal está entre a vigésima e a trigésima posição. É famoso o exemplo envolvendo o antigo primeiro-ministro José Sócrates [na Operação Marquês], que, vendo à distância, percebe-se alguma dificuldade institucional para que esse processo caminhe num tempo razoável, assim como nós temos essa dificuldade institucional no Brasil.”.
Sérgio Moro deitou mais achas para a fogueira ao assegurar que “a corrupção, a criminalidade violenta e a criminalidade organizada caminham juntas” e ao explicar que estes desafios levaram o executivo brasileiro a optar por uma abordagem conjunta.
Vincando que “boa parte dos homicídios constitui um produto de disputa de mercado entre organizações criminosas ou cobranças, muitas vezes com sangue, feitas a utilizadores do mercado de droga”, disse:
Com estes desafios, a nossa opção foi apresentar um projeto com medidas simples, mas fundamentais, porque estes três tipos de crime caminham juntos”.
Em jeito de lamento, disse que a corrupção “muitas vezes desvia os recursos públicos que deviam servir para enfrentar eficazmente os recursos do Estado contra a criminalidade violenta e organizada”. Porém, comparando a criminalidade violenta no Brasil e em Portugal, considerou que as diferenças são enormes: 
“Temos um problema sério com a criminalidade violenta: em 2016 alcançámos o triste recorde de mais de 60 mil homicídios, e a taxa mantém-se mais ou menos nessa linha, enquanto em Portugal houve 76 homicídios, ou seja, a diferença é brutal, e nesse ponto Portugal causa-nos muito inveja”.
Moro foi o juiz responsável pela condução da Operação Lava Jato, que desvendou grandes esquemas de corrupção na petrolífera estatal brasileira Petrobras, e pela prisão de empresários, ex-funcionários públicos e políticos de renome como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Já o inquérito da Operação Marquês culminou na acusação pela justiça de 28 arguidos – 19 pessoas e nove empresas – e está relacionado com a alegada prática de quase duas centenas de crimes de natureza económico-financeira. Mas o desfecho está longe de ser conhecido.
Recorde-se que Sócrates esteve preso preventivamente durante dez meses e depois em prisão domiciliária, está acusado de 3 crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, 9 de falsificação de documentos e 3 de fraude fiscal qualificada.
Entre outros factos, Sócrates é acusado de ter recebido cerca de 34 milhões de euros (entre 2006 e 2015) a troco de favorecimentos a interesses de Ricardo Salgado no GES (Grupo Espírito Santo) e na PT, bem como por garantir a concessão de financiamento da CGD (Caixa Geral de Depósitos) ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve e por favorecer negócios do Grupo Lena.
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O antigo primeiro-ministro não se calou e, afirmando que o Brasil está a viver “uma tragédia institucional” considerou que o Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil atuou como “um ativista político disfarçado de juiz”. É o que consta de nota enviada por José Sócrates à agência Lusa depois de o governante brasileiro e ex-juiz responsável pela Operação Lava Jato ter identificado uma “dificuldade institucional” em Portugal em fazer avançar o processo contra o antigo primeiro-ministro José Sócrates, tal como acontece no Brasil.  
Com efeito, respondendo à intervenção proferida por Moro na Conferência de Abertura sobre “o Estado Democrático de Direito e o Combate à Criminalidade Organizada e à Corrupção”, no VII Fórum Jurídico de Lisboa, o antigo líder do executivo português (2005/2011) declarou:
O que o Brasil está a viver é uma desonesta instrumentalização do seu sistema judicial ao serviço de um determinado e concreto interesse político”.
José Sócrates disse que isto “é o que acontece quando um ativista político atua disfarçado de juiz”, esclareceu que “não é apenas um problema institucional, é uma tragédia institucional”, e avisou que voltará ao assunto.
E, na reação à intervenção proferida por Sérgio Moro, o antigo primeiro-ministro português referiu que o atual ministro brasileiro, enquanto juiz, validou “ilegalmente uma escuta telefónica” entre a então Presidente da República, Dilma Roussef, e o seu antecessor na chefia do Estado brasileiro, Lula da Silva. E, nesse sentido, discorreu:
O juiz decide, ilegalmente, entregar a gravação à rede de televisão Globo, que a divulga nesse mesmo dia, o juiz condena o antigo Presidente [Lula da Silva] por corrupção em atos indeterminados, o juiz prende o ex-Presidente antes de a sentença transitar em julgado, violando frontalmente a constituição brasileira. O juiz, em gozo de férias e sem jurisdição no caso, age ilegalmente para impedir que a decisão de um desembargador que decidiu pela libertação de Lula seja cumprida.”.
Também o antigo primeiro-ministro (e líder do PS) lembrou que, nessa mesma fase do processo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas notificou as instituições brasileiras para que permitissem a candidatura de Lula da Silva e o acesso aos meios de campanha. E acrescentou:
Mas as instituições brasileiras recusam, violando assim o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos que o Brasil livremente subscreveu. No final, o juiz obtém o seu prémio: é nomeado Ministro da Justiça pelo Presidente eleito [Jair Bolsonaro] e principal beneficiário das decisões de condenar, prender e impedir a candidatura de Lula da Silva.”.
Em suma, para o antigo líder dos socialistas portugueses, este “espetáculo” no Brasil em torno da Operação Lava Jato “é, na realidade, bastante sinistro”.
E, em entrevista à TVI24, Sócrates referiu que durante a primeira fase do processo Operação Marquês, em que é arguido e suspeito de ter cometido 31 crimes, houve um juiz – Carlos Alexandre – que atuou com parcialidade e equiparou-o ao juiz brasileiro e agora ministro de Bolsonaro, Sérgio Moro.
Para o ex-governante português, Moro é “um ativista disfarçado de juiz”, que só chegou a ministro por ter detido o ex-presidente Lula da Silva. Para José Sócrates, parece que “há uma escola internacional que pensa que é possível instrumentalizar juízes”.
Na mesma entrevista, José Sócrates sublinhou várias vezes sentir-se chocado com o facto de a comunidade jurídica portuguesa ter aceitado receber Sérgio Moro para apresentar o seu pacote anticrime, que, afirma, “viola o direito internacional”. E criticou também a comunidade política e o próprio Governo por não terem manifestado qualquer reação ao convite a Moro que o trouxe até à Faculdade de Direito de Lisboa. Sócrates disse acreditar haver pessoas no Governo que se devem ter sentido “tão chocadas” como ele com “esta celebração na Faculdade de Direito”.
Também voltou a referir a classe jornalista manifestando-se chocado com a atitude acrítica dos jornalistas perante a apresentação do pacote anticrime de Moro. E disse: “Espanta-me não ter havido uma reação”.
Questionado pelo jornalista da TVI24 sobre o debate instrutório da Operação Marquês, José Sócrates recusou comentar esta fase do processo, que ainda decorre, porque, neste momento, “há um juiz que respeito e que considero independente”, disse referindo-se a Ivo Rosa.
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O ministro brasileiro respondeu a Sócrates e fê-lo de forma simples e curta: “Não debato com criminosos”. Foi desta forma que Sérgio Moro, respondeu aos ataques proferidos pelo ex-primeiro-ministro português José Sócrates numa entrevista à TVI24.
Sócrates acusara Sérgio Moro de ser “um ativista político disfarçado de juiz”, criticando a sua participação no Fórum Jurídico de Lisboa, no dia 22, na Faculdade de Direito da UL. 
Horas mais tarde, Moro, numa entrevista à Record TVEuropa, referia:
Em relação à pessoa em particular, eu não debato com criminosos pela televisão. Então, não vou fazer mais comentários.”.
Segundo a revista Sábado, Moro explicou ainda:
Em todo o lugar do mundo é difícil lidar com esses crimes de grande corrupção, envolvem pessoas poderosas. O sistema está preparado para [combater] outro tipo de criminalidade, mas todos os países precisam de avançar nessa área e enfrentar a grande corrupção.”.
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José Sócrates não perdeu tempo respondeu a Moro: “Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado”. E fê-lo em texto enviado ao Diário de Notícias, onde responde ao Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil e antigo juiz do caso Lava-Jato, dizendo:
Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado por nenhum crime. Não posso aceitar ser condenado sem julgamento.”.
Primeiro, o ataque foi desferido por Sócrates, chocado com a presença de Moro no VII Fórum Jurídico de Lisboa: “Um ativista político disfarçado de juiz” – disse em entrevista à TVI 24.
Depois, em entrevista à TV Record, veio o contra-ataque de Moro, recusando responder ao ex-primeiro-ministro: “Em relação à pessoa em particular, eu não debato com criminosos pela televisão. Então, não vou fazer mais comentários”, disse o Ministro e Juiz.
Agora, numa declaração escrita enviada ao Diário de Notícias, Sócrates contrarreplica: 
Impossível ler a declaração do Ministro da Justiça brasileiro sem um esgar de repugnância. Ela põe em causa os princípios básicos do direito e da decência democrática. Não, nunca cometi nenhum crime nem fui condenado por nenhum crime. Não posso aceitar ser condenado sem julgamento, muito menos por autoridades brasileiras..
O antigo primeiro-ministro vai mais longe, atacando o governo de Jair Bolsonaro onde Moro é responsável pela pasta da Justiça e atirando:
Na Europa conhecemos bem o ovo da serpente. Conhecemos o significado das palavras de agressão, de insulto e de violência política. Conhecemos o significado dos discursos governamentais que celebram golpes militares, defendem a tortura e recomendam o banimento dos adversários políticos. E até conhecemos o significado do silêncio daqueles que assistem a tudo isto como se nada fosse com eles.”.
No final, deixa o último ataque a Sério Moro:
Há no entanto, em todo este episódio, um mérito: as palavras produzidas confirmam o que já se sabia do personagem- como juiz, indigno; como político, medíocre; como pessoa, lamentável”.
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Não morro de amores (nem de ódios) por Sócrates e sei que, vindo a provar-se inequivocamente os factos que lhe são imputados, será condenado e punido com pena proporcionada. Porém, até decisão condenatória transitada em julgado, não pode, pelo menos por entidades que têm a obrigação de respeitar a presunção de inocência, ser considerado criminoso, embora seja, de momento, incontornável o juízo que a opinião pública faça a seu respeito.
Não penso admissível que as autoridades portuguesas vetassem ou criticassem a presença de Moro no VII Fórum Jurídico, pois devem respeitar a autonomia da Universidade e a excelência da produção e divulgação do conhecimento, bem como as parcerias estabelecidas em termos internacionais. O mesmo não digo dos jornalistas, a quem incumbe um saudável papel crítico e o poder de informar e purificar a opinião pública.
Do ponto de vista técnico, as afirmações de Sérgio Moro são imbatíveis, mas cabia-lhe o dever de não referir um caso em processo na justiça portuguesa nem fazer juízos de valor sobre a capacidade da mesma. Para a elogiar ou para a deitar abaixo estamos cá nós.
Por fim, embora assista a Sócrates o direito de falar em sua defesa – até porque já esteve preso quando andam à solta outros que prejudicaram mais pessoas, instituições e interesses – ele não pode ter-se como o centro do mundo, falar ex cátedra sobre tudo e a todos acusar.  
2019.04.24 – Louro de Carvalho         

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