Na noite do passado dia 1 de maio, realizou-se a primeira de 6 visitas temáticas à exposição
temporária Capela Mundi, que,
durante este ano pastoral, vão aprofundar elementos da mostra comemorativa do
centenário da Capelinha das Aparições (Desde a sua inauguração, a exposição
temporária Capela-Mundi foi visitada por mais de 88 mil pessoas).
Esta primeira visita temática estabeleceu relação entre uma obra
literária setecentista e mensagem de Fátima. Com efeito, José Augusto Cardoso Bernardes, Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, apresentou a
obra literária “História Trágico-Marítima”,
que inspirou a pintura homónima de Vieira da Silva, que a partir daquele dia
integra a predita exposição. Assim, a visita ganhou especial relevo pela
integração da peça “História
Trágico-Marítima”, de Maria Helena Vieira da Silva, pertencente ao Museu da
Fundação Calouste Gulbenkian, que elegeu o nome e o motivo pictórico na obra
literária de Bernardo Gomes de Brito, também presente na exposição, e que foi o
propósito desta primeira visita temática.
A justificar
a inclusão da obra na exposição, o orador falou da natureza e do conteúdo do
livro, destacando um dos episódios relatados. A propósito da natureza, Cardoso
Bernardes começou por esclarecer que a obra é uma compilação, da autoria de
Bernardo Gomes de Brito, de doze relatos de naufrágios reais.
Após a
análise de um dos relatos da obra, que foi publicada pela primeira vez no
século XVIII (1735-36), o diretor
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra justificou a inclusão da mesma
na exposição, estabelecendo uma relação de “conformidade” entre a “antropologia
cristã, que lhe subjaz”, e o “apelo que Nossa Senhora deixou em Fátima”.
Segundo o orador,
“a ‘História Trágico-Marítima’ mostra-nos que somos peregrinos, que enfrentam
tempestades e que têm a memória de onde vêm e o sentido do encontro”. Na verdade,
como afirmou, “o naufrágio atesta a necessidade de contar com a contingência
das nossas forças e a moderação da nossa cobiça”, sendo “sobre este
despojamento, temor a Deus e certeza no encontro, de que estes relatos de
naufrágio falam, que Nossa Senhora vem alertar em Fátima”. Na concretização da
relação de conformidade que estabeleceu, o orador terminou a apresentação com a
leitura dum relato de naufrágio extraído da VI Memória da Irmã Lúcia, que alude
a um episódio passado com o seu tio José, numa viagem ao Brasil em que,
náufrago, se salvou invocando a proteção de Nossa Senhora do Rosário e,
regressado depois a Aljustrel, construiu a casa onde viriam a nascer os
Pastorinhos.
O encontro
terminou com um diálogo aberto entre a plateia e o orador, sobre o tema
que deu mote à visita.
Estão
previstas para este ano mais 5 visitas temáticas. A próxima, agendada para
5 de junho, tem por título “Imagens e
histórias de devoção – a propósito de Agnus Dei, de Josefa d’Ayala” e será
apresentada por Fernando António Batista Pereira, presidente do conselho
diretivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa; a de 3 de julho
tem por título “Aspetos da
iconografia mariana”, a propósito da escultura Nossa Senhora da Boa
Morte, do Santuário de Vila Viçosa, e será apresentada por Carlos Filipe, Presidente do Instituto
da Padroeira de Portugal para os Estudos da Mariologia; a de 7 de agosto tem
por título “O Correio de Nossa Senhora”, a propósito das mensagens dos peregrinos à Virgem de Fátima,
e será apresentada por André Melícias,
Coordenador do Serviço de Arquivo (Departamento de Estudos) do Santuário de Fátima; a de 4 de setembro tem por
título “Agradecer através da imagem: ex-votos portugueses da Época
Moderna”, a propósito dos
ex-votos à Virgem de Fátima, e será apresentada por Isabel Drumond Braga, Professora de Historiadora da Época Moderna,
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; e a de 2 de outubro tem por
título “A museologia e a missão
cultural da Igreja”, a propósito da exposição temporária Capela-Mundi,
e será apresentada por Artur Goulart,
Coordenador do Inventário do Património Artístico Móvel da Arquidiocese de
Évora, Historiador da Arte e Museólogo. É sempre a ligação entre a arte e a
mensagem ou o sentir do povo peregrino.
***
Desde 1 de
dezembro de 2018 até 15 de outubro de 2019, está aberta ao público,
com entrada livre, das 9 às 18 horas, no Convivium de Santo
Agostinho, Basílica da Santíssima Trindade, a exposição temporária comemorativa do centenário da construção da
Capelinha das Aparições intitulada Capela-Mundi.
Composta por
9 núcleos, a exposição assenta numa acurada pesquisa histórica que intenta ler
a Capelinha das Aparições como um dos mais importantes ícones do Santuário de
Fátima. Por ter sido construída a partir do desejo que os Pastorinhos de Fátima
asseguram ter sido transmitido por Maria, este pequeno templo, de traça
vernacular, é considerado o coração do Santuário e é ao seu redor que têm lugar
as mais íntimas e tocantes manifestações de fé dos peregrinos da Cova da Iria.
Os núcleos
temáticos como a construção física da capela, os protagonistas que lhe estão
ligados, a dinamitação de 1922 e a simbólica que lhe está associada serão
tratados através da linguagem da museologia, recorrendo a peças de valor
histórico e artístico não só do espólio do Museu do Santuário de Fátima como de
outras instituições museológicas, incluindo museus, bibliotecas e palácios do
Estado e de museus e arquivos da Igreja Católica e de diferentes organismos
eclesiais (paróquias, congregações religiosas, confrarias e dioceses do País e de
Espanha), que cederam peças para a
exposição, o que proporcionará uma experiência que se pretende ao mesmo tempo
de formação e de fruição estética.
***
No
dizer de Carlos Jaca (in
Aspectos da História Trágico-Marítima:
http://www.esas.pt/jaca/docs/tragicoMaritima.pdf), a História Trágico-Marítima corresponde à face escura da glória dos
descobrimentos, a tragédia que fez dizer a Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / são
lágrimas de Portugal!”. Pode até considerar-se como obra “sui generis”. Com efeito, em nenhuma das
outras literaturas haverá “soma tão impressionante de relações de naufrágios”. Tão
grande foi a voga desses escritos e tantos foram, que chegaram a constituir
quase um subgénero literário.
A História Trágico-Marítima não é obra de um
único autor, mas acoplação de várias descrições (conhecidas por
“relações”) de
naufrágios ocorridos de 1552 a 1602.
Na
Biblioteca Nacional de Lisboa e na da Ajuda, na Torre do Tombo, nas bibliotecas
de Évora, Vila Viçosa e Coimbra e em coleções privadas encontram-se,
manuscritos ou impressos, vários exemplares de uns 20 relatos de naufrágios que
foram escritos entre a segunda metade do século XVI e o fim do século XVII por
diversos autores desconhecidos. Os relatos de naufrágios viriam a tornar-se, na
verdade, quase um subgénero literário, de algum sucesso em Portugal no período
entre meados dos séculos XVI e XVII, atraindo a atenção de editores,
compiladores e leitores, em especial a partir da cristalização nos dois volumes
da “História Trágico-Marítima” de
Bernardo Gomes de Brito, publicada em 1735-1736 e apocrifamente acrescentados
de um terceiro. Fruto do labor de sobreviventes ou testemunhas próximas dos
desastres ocorridos com embarcações da “Carreira da Índia”, este tipo de
relatos é relevante não só para o conhecimento das circunstâncias da perda de
uma a duas dezenas de naus, mas também para o das próprias armadas em que se
integravam.
Releva-se
a História Trágico-Marítima como obra
de alto valor da nossa história da literatura no aspeto literário, no aspeto histórico
e no aspeto humano.
Do ponto
de vista literário o seu valor é muito desigual, o que se compreende, por tais
“relações” terem sido escritas por diversos autores. Quase todas saíram da pena
corrente ou tosca de sobreviventes, muitos dos quais não possuíam capacidades
para a prosa, que aqui se apresenta, por vezes, confusa e, consequentemente,
com problemas de interpretação – o que terá sido vantajoso para a verdade, pois
algumas “relações”, apesar de escritas apressadamente e sem cuidados de estilo
(provavelmente
sob a emoção causada pela proximidade da catástrofe, dado terem sido publicadas
na maioria, pouco tempo depois),
adquirem, talvez por isso, um tom de verdade e sinceridade que se transmite ao
relato uma forte carga dramática, que é possível viesse a ser atenuada se
fossem mais trabalhadas. A narração atinge o seu maior vigor na horrífica hora do
naufrágio e, por vezes, no subsequente caminhar dos desditosos náufragos
sobrevivos, durante infindos meses, por terras desconhecidas e cheias de
perigos, tantas vezes habitadas por gente estranha e hostil. Ninguém apontará
estes relatos como primores da nossa língua literária, pois, como salientam alguns
dos seus autores e depois os comentadores, interessava aqui preservar a verdade
e o conhecimento dos factos e porque muitos dos que os escreveram eram
marinheiros e outras pessoas sem pretensões intelectuais.
Do ponto
de vista estilístico, haverá duas espécies de “relações”: as escritas pelos próprios
que escaparam à tragédia; e as escritas por estranhos, que tomaram conhecimento
dos factos através do testemunho oral dos sobreviventes. Entende-se que as
primeiras tenham em geral maior vivacidade, mais poder comunicativo, por
representarem a própria experiência, embora um autor ilustre como Diogo do
Couto, pertencente ao segundo grupo, consiga, mercê do seu talento,
“representar-nos belissimamente um naufrágio que não padeceu”. Ainda incluída
na primeira referência poder-se-ão distinguir as “relações” escritas por
padres, normalmente mais literárias, com um estilo mais erudito e entremeado de
citações latinas, de que é exemplo a “relação” da viagem da nau “São
Francisco”, em 1596, escrita pelo jesuíta Gaspar Afonso. Já as narrações de
autores seculares, nomeadamente os do 1.º período clássico, apresentam muito
melhor estilo, salientando-se Manuel de Mesquita Perestrelo, que descreveu o
naufrágio da nau “São Bento”, e o boticário Henrique Dias, autor da “relação”
da perda da nau “São Paulo”. Ambos manifestam o intento de contar as coisas na
sua generalidade sem cair no pormenor fastidioso. Cingiam-se assim aos cânones
da arte clássica, que procura evitar o excesso das particularidades, segundo o
princípio económico do “inutilia truncat”,
do neoclassicismo, a fim de privilegiar os aspetos gerais. Isto era o preceito,
mas nem sempre foi a prática. As próprias exigências do tema se encarregavam de
mostrar a cada passo o incumprimento desta determinação pela incapacidade de
relatar satisfatoriamente um naufrágio ou as aventuras por terra, sem descer a
certas minúcias que mais pudessem impressionar os leitores – o que também
confere força documental histórica a estes relatos e descrições que tanto
impressionaram os coevos e ainda fazem arrepiar os leitores de hoje que tiverem
a ousadia de os ler.
Estas
relações que hoje encaramos como documentos históricos fizeram, na época, a
paixão dos leitores, pois o público, então como agora, não conseguia fugir ao
fascínio pelas emoções fortes, pondo-se virtualmente no lugar dos sofridos. Compreende-se
como o público de outros tempos, na rotina da vida quotidiana, apreciava “essas
impressionantes narrativas, o espetáculo das naus destroçadas pela tormenta, a
confusão e o alarido das gentes, o engenho dos homens buscando meios de
salvação, e a triste e aventurosa caminhada pelo sertão africano”.
Cerca de
um quinto da população portuguesa da época (dois milhões e meio) experienciou as viagens
marítimas, pois todas as famílias tinham pelo menos um ou dois elementos
embarcados. Por isso, a repercussão de tais relatos no imaginário nacional
tornou-se irrecusável e apaixonou a generalidade das pessoas durante gerações
sucessivas – os que iam e os que ficavam, os que sofriam e os que fantasiavam. E,
em certa medida, permanece ativa quando se vivem e recordam os males das duas
guerras mundiais, a guerra colonial portuguesa, a emigração a que gerações de
compatriotas se sujeitaram, as guerras que pululam e vários recantos do orbe, a
onda de refugiados, deslocados e migrantes forçados, os ataques terroristas, os
cataclismos naturais, as pandemias ou as doenças terminais.
Os
episódios sucediam-se, um mais desgraçado do que o outro, numa série (precursora
de “folhetim” e “telenovela”)
de horrores, suplícios e fatalismos intermináveis. Como hoje se comenta o crime
sensacional, descrito pelas gazetas diárias, assim outrora se falava do último
naufrágio, cujos episódios eram referidos pela “relação” acabada de sair. Desconhece-se
qual seria a tiragem dessas “relações”, mas sabe-se que muitas eram impressas
várias vezes, havendo casos em que a primeira edição se esgotava em breve lapso
de tempo, uma vez que há conhecimento da existência de uma segunda edição
publicada no mesmo ano.
Giulia
Lanciani, e reportando-se ao naufrágio de Jorge de Albuquerque Coelho, refere depreender-se
do texto que tanto da primeira como da segunda edição se tiraram mil exemplares
de cada uma, quando, segundo os estudiosos, na segunda metade do século XVI a
tiragem média de um livro na Europa dificilmente superava os trezentos
exemplares.
***
Efetivamente,
como hoje em terra, muitos sob o peso da aflição se dirigem à Virgem Maria no Santuário,
de que o de Fátima é proeminente, também os nautas perdidos “na fúria das
ondas, nos longes do mar” (como reza a letra da composição “Maris Stella”, de Veríssimo Lemos Peliz), confiavam na Virgem Estrela do
Mar. E, como dizia São João Paulo II a 13 de maio de 1982, em Fátima, “a Senhora da mensagem parecia ler, com uma perspicácia
especial, os “sinais dos tempos”, os sinais do nosso tempo”, e, “nas palavras
da mensagem de Fátima parece-nos encontrar precisamente a dimensão do amor materno, o qual com a sua
amplitude, abrange todos os caminhos do homem em direção a Deus”.
Na verdade, “quando Jesus disse do alto da Cruz: ‘Senhora, eis o Seu filho’ (Jo 19,26), abriu, de maneira nova,
o Coração da Sua Mãe, o coração Imaculado, e revelou-Lhe a nova
dimensão do amor e o novo alcance do amor a que Ela fora chamada, no Espírito
Santo, em virtude do sacrifício da Cruz”.
Por isso, a mensagem de Maria, para quem anda desligado do
rumo traçado por Deus é apelativa; para quem se compraz nas vias do pecado é interpelante
e exigente; para quem se verga sob o peso da vida é ternurenta; e para quem
pretende a via discipular e apostólica é entusiasmante e deveras compensadora!
2019.05.09
– Louro de Carvalho
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