segunda-feira, 20 de maio de 2019

Oito agentes da PSP condenados por agressões, injúrias e sequestro...


Foi lido hoje, dia 20 de maio, no Tribunal de Sintra, o acórdão atinente ao processo em que 17 agentes da Esquadra da PSP de Alfragide são acusados pelo Ministério Público (MP) de vários crimes (denúncia caluniosa, injúria, agressão ou ofensa `integridade física, falsificação de documento e falsidade de testemunho sequestro, tortura, ódio racista…) contra 6 jovens da Cova da Moura – isto quase um ano após o começo do julgamento (22 de maio de 2018).
Regista a comunicação social que a tarde foi marcada pelo reforço da segurança no tribunal com mais quatro militares da GNR e pelo ambiente de tensão. Com efeito, no átrio estavam cerca de 50 pessoas, entre jornalistas e muitos agentes da PSP que foram apoiar expressamente os colegas e lotaram a sala de audiências, embora muitos polícias tenham sido barrados à porta, só tendo entrado os representantes das suas associações sindicais. Assistentes e outros ativistas apoiantes dos ofendidos ficaram de fora da sala e mostraram a sua indignação aos oficiais de justiça. Entretanto, o tribunal acabou por desocupar uma fila para permitir a entrada dos assistentes e de três observadores da AMI (Amnistia Internacional). A juíza-presidente não permitiu a permanência de pessoas em pé para assistir à leitura do acórdão. Entre as várias pessoas que ficaram de fora, destaca-se Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, que de imediato se manifestou no Facebook, classificando de “vergonha” o sucedido no Tribunal, acusando:
O Tribunal consentiu que os sindicatos da polícia se organizassem para impedir que cidadãos assistissem a leitura da sentença em que 17 agentes são acusados entre outros de sequestro, tortura, racismo, coação, falsificação de provas. Uma vergonha!”.
Foram ouvidos, ao longo de 30 sessões, os 17 arguidos (logo nas primeiras quatro), os 6 ofendidos e dezenas de testemunhas. A juíza-presidente, Ester Pacheco, referiu que eram mais de 100.
Manuel das Dores, o procurador que acompanha o julgamento, deixou cair as acusações de tortura e ódio racial, de que também os acusava o despacho do MP de julho de 2017. Manteve a acusação a pelo menos 7 polícias pelos crimes de ofensas à integridade física. Neste grupo está João Nunes, o agente que disparou uma shotgun e que tem, aliás, o maior número de acusações. 
A acusação inicial conheceu dois momentos: o primeiro, a 5 de fevereiro de 2015, em que uma equipa da PSP foi à Cova da Moura fazer patrulhamento e deteve Bruno Lopes, por este alegadamente ter atirado pedras à carrinha da polícia, tendo um agente disparado dois tiros e atingido duas moradoras; e o segundo, em que amigos do jovem, entre eles membros do Moinho da Juventude, se dirigiram à esquadra para, segundo os próprios, pedirem esclarecimentos, tendo, porém, sido detidos e acusados de invasão. Os agentes da PSP, como é natural, sempre porfiaram a sua inocência. Mantiveram em tribunal as descrições que passaram aos autos de notícia: primeiro, que o ofendido é que os agredira atirando uma pedra; segundo, que houve tentativa de invasão da esquadra por parte dum grupo de jovens. Negaram em absoluto as agressões físicas e racistas, afirmando que usaram apenas a força necessária.
O procurador considerou que não ficou provado em sede de julgamento que as lesões dos jovens foram tão graves que configurem o crime de “tortura” e “sofrimento atroz”, alegando:
Não estamos na presença de tal grau de severidade. Era preciso mais, que as acusações estivessem mais suportadas nas lesões que apresentam.”.
Também referiu não ter ficado provado que as injúrias proferidas se enquadrem no crime de ódio racial. Um dos exemplos aduzidos para deixar cair o crime de tortura diz respeito ao ofendido Rui Moniz, que tem um braço imobilizado por uma tala. O despacho descreve que lhe foram desferidos diversos murros e pontapés, bofetadas, pisadelas nas costas e puxões de cabelo. O relatório médico refere que ele teve uma contusão lombar, com 10 dias de cura e 3 de impossibilidade para o trabalho geral, “inexistindo perigo para a vida”. Por isso, o procurador achou que não constituía prova suficiente para tortura, segundo as várias definições que leu.
Além disso, Manuel das Dores entendeu que a tese de tentativa de invasão da esquadra por 6 jovens, defendida pelos agentes e apresentada como justificativa para a sua detenção, tinha legitimidade, pois foi essa “a perceção da realidade” por parte dos agentes ao verem os jovens a aproximarem-se e que agiram de acordo com essa perceção. Vinham efetivamente indignados com o que se passara no bairro da Cova Moura, onde detiveram Bruno Lopes. Assim, encararam o grupo “como hostil”, porque os jovens não vieram com “uma atitude de pura paz”.
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Os factos da acusação do MP datam de 5 de fevereiro de 2015. Nessa, alegava o MP que 6 jovens desceram a rua da Cova da Moura em direção à esquadra da PSP, em Alfragide, indo procurar Bruno, conhecido e amigo que fora detido no bairro, havia poucos minutos, vítima de alegadas agressões por parte dos agentes. Dos 6, acabaram detidos 4 (pois António e Fernando fugiram), juntamente com Bruno e Rui, apanhados pela PSP um pouco depois nas imediações da esquadra. Nas 72 horas que estiveram à guarda desta força de segurança, dizia o MP, foram torturados, agredidos, humilhados e injuriados por todos os 18 agentes (9 de cada turno) da PSP da EIFP (Esquadra de Investigação e Fiscalização Policial) de Alfragide, agindo “por sentimento de ódio racial, de forma desumana, cruel e pelo prazer de causarem sofrimento” aos 6 jovens.
A acusação deduzida pelo procurador Helder Cordeiro, coordenador do DIAP da Amadora, em julho de 2017, caiu como uma bomba na PSP e no bairro. Na polícia, mercê da quantidade de agentes acusados (uma mulher oficial foi depois despronunciada), da gravidade e da dimensão dos factos descritos e porque, pela primeira vez, era posta em causa a sua palavra, segundo os dados da investigação que o procurador Paes de Faria decidiu delegar na UNCT (Unidade Nacional de Contraterrorismo) da PJ (Polícia Judiciária). No bairro porque, pela primeira vez, se acreditou que a justiça podia estar do lado dos jovens do bairro.
O julgamento começou a 22 de maio de 2018, mais de 3 anos após os incidentes. Do processo constam cerca de 90 testemunhas (entre vizinhos, amigos e pais, quer das vítimas, quer dos arguidos).
Numa primeira fase do processo, os jovens foram constituídos arguidos sob a acusação da PSP de terem tentado invadir a esquadra para libertar o outro jovem detido. Ficaram sujeitos a TIR (termo de identidade e residência), indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário, injúria, dano, tirada de presos e ofensa à integridade física. Porém, a PJ verificou na sua investigação que a narrativa não era verosímil, pelo que a versão dos jovens vingou em fase de inquérito, baseada em 30 testemunhos, relatórios médicos e cruzamento de informações recolhidas. Extrema frieza, prazer de ver sofrer, cenário de barbárie – são expressões que a advogada das vítimas utilizou para caraterizar o que se passou na esquadra.
A acusação contra os 17 polícias apontava para dezenas de crimes: 17 crimes de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, 28 crimes de injúria agravada, 45 crimes de ofensa à integridade física qualificada; 96 crimes de sequestro agravado; um crime de omissão de auxílio, 3 crimes de denúncia caluniosa, 5 crimes de falsificação de documento agravado.
Assim, os arguidos responderam por denúncia caluniosa, injúria, sequestro, ofensa à integridade física, falsificação de documento e falsidade de testemunho, por alegadas agressões e insultos racistas a 6 jovens, na Cova da Moura e no interior da esquadra de Alfragide. E, no PIC (Pedido de Indemnização Civil) apresentado em conjunto, a que a agência Lusa teve acesso, os seis assistentes pedem que os arguidos sejam condenados a pagar, entre todos, uma indemnização total de 327.000 euros, por danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo despesas relativas a tratamentos, reparações de danos e deslocações.
Segundo a acusação, os elementos da PSP, à data dos factos a prestar serviço na Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial (EIFP) da Amadora, espancaram, ofenderam a integridade física e trataram de forma vexatória, humilhante e degradante as 6 vítimas, além de incitarem à discriminação, ao ódio e à violência por causa da raça.
O MP considerava que os agentes agiram com ódio racial, de forma desumana, cruel, tiveram prazer em causar sofrimento e, além das agressões, alvejaram os jovens com frases xenófobas e racistas durante a detenção nas esquadras de Alfragide e da Damaia e no trajeto para o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, onde pernoitaram deitados no chão e algemados.
Porém, em tribunal, o procurador do MP, Manuel das Dores, não viu provas, nem nas lesões dos jovens, nem nos seus testemunhos, que demonstrassem a “tortura” e o “sofrimento atroz”, tendo apenas pedido a condenação de 7 dos polícias – a maior parte dos quais pelos factos ocorridos no bairro, aquando da detenção de Bruno Lopes. O magistrado considerou provado que, em relação a esse momento, a versão dos jovens era a verdadeira e que os polícias tinham mentido, quer em relação à localização da detenção, quer quanto aos motivos, quer quanto ao uso da força, mas ficou com dúvidas quanto ao que acontecera na esquadra. Enquanto no bairro havia várias testemunhas de moradores que assistiram à cena, na esquadra era só palavra dos jovens contra a dos polícias. Na dúvida, Manuel das Dores, não acreditou nas vítimas.
O MP sustenta a condenação de alguns dos agentes pelos crimes de sequestro, de falsificação de documento e de ofensas à integridade física qualificada, dando como provado que estes arguidos agrediram os ofendidos, detiveram um jovem de forma ilegal na Cova da Moura e falsificaram os autos de notícia para “branquearem” o que realmente se passou no bairro e nos subsequentes confrontos ocorridos no exterior da esquadra.
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Quatro anos e mais de três meses depois da data dos factos, os 17 agentes da PSP ouviram a leitura do acórdão. Foram condenados 8: um a pena de prisão efetiva; e 7 a prisão com suspensão de pena. Mas nenhum agente foi condenado pelos crimes de tortura. E, apesar de ter havido condenações por injúrias de caráter xenófobo, foi descartada da decisão a motivação racial, que agravaria as penas. As condenações foram sobretudo por crimes de sequestro agravado, ofensas à integridade física qualificada, injuria, denúncia caluniosa e falso testemunho. As penas foram agravadas porque nenhum se mostrou arrependido. “O que aconteceu foi sem dúvida um grave abuso de autoridade” – destacou a juíza Ester Pacheco, que presidiu ao coletivo que julgou este caso sem precedentes.
As penas de condenação são de dois meses a 5 anos e as vítimas receberão indemnizações de 10 mil euros. Embora sejam só 8 condenados em 18 acusados (só 17 chegaram a tribunal, pois uma oficial foi despronunciada), é o maior número de sempre de agentes condenados num processo.
À saída da sala de audiências, Jakilson Pereira, da direção da Associação Cultural Moinho da Juventude, da Cova da Moura, assinalava tratar-se de “uma decisão histórica e uma esperança de que a Justiça pode funcionar”, mas entende que “devia ter havido mais condenações a prisão efetiva”. Com efeito, o único agente condenado a prisão efetiva foi Joel Machado, porque do seu cadastro constava uma condenação pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, por atos praticados em 2010. A juíza-presidente assinalou que os crimes praticados no âmbito deste processo ocorreram quando ainda vigorava a suspensão da pena anterior, o que é indicador do não funcionamento da medida como dissuasora dos comportamentos criminosos. Assim, “por uma questão de prevenção”, o Tribunal entendeu dever condená-lo a prisão efetiva de um ano e 6 meses, por ofensa à integridade física qualificada de Rui Moniz.
Todos os outros arguidos viram as suas penas serem suspensas. E foi Luís Anunciação, então chefe da esquadra, quem teve a pena mais elevada, com 5 anos, pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado (pela detenção ilegal de 5 jovens), denúncia caluniosa e sequestro agravado (por ter mentido no auto de notícia, acusando os jovens de terem tentado invadir a esquadra, alegação que o tribunal não acreditou). O Tribunal considerou que João Nunes disparou a shot-gun contra duas pessoas no bairro (Jailza e Neusa) sem justificação e contra Celso Lopes e depois mentiu no relatório que fez sobre os acontecimentos. Foi condenado a 4 anos de prisão, suspensos por igual período, pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada e falsificação de documento. André Quesado foi condenado a 2 anos e 6 meses, suspensos por igual período, por um crime de sequestro agravado (subsequente à detenção ilegal de Bruno Lopes no bairro). Arlindo Silva foi condenado a um ano e um mês de prisão, pena suspensa por um ano, pelo crime de ofensa à integridade física e injúria agravada. E, por último, Hugo Gaspar foi condenado a uma pena de 2 meses de prisão, suspensa por um mês, pelo crime de injúria contra os ofendidos.
“Pese embora não se tenha apurado que os arguidos agiram com motivação racial e que praticaram a tortura, é evidente que houve um grave abuso de autoridade”, afiançou a juíza.
Tal como já tinha concluído o MP, depois das audições de julgamento, também o coletivo de juízes entendeu que as alegações de tortura e de “tratamentos desumanos e cruéis”, não ficaram demonstrados nas lesões apresentadas nos relatórios hospitalares das vítimas.
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Funcionou a Justiça. A decisão judicial é histórica. Mas queriam mais. No entanto, pergunto-me como é que a PJ conseguiu concluir pela mentira dos agentes da PSP; como é que, não tendo sido provado ter havido atos de tortura e ódio rácico, se demonstra que a PSP ultrapassou a utilização da força necessária; e como se consegue provar a inocência de jovem que atira pedra(s) a uma patrulha e de uns jovens que vão em grupo a uma esquadra.      
Depois, temos mais um caso de justiça-espetáculo. Com efeito, o espetáculo justiçoso televisionado não é só o juiz ir pessoalmente ao Parlamento pedir o levantamento da imunidade dum deputado; prender ou deter um ex-primeiro-ministro na manga do aeroporto; escancarar perante as câmaras a residência ou os escritórios de altas figuras públicas; filmar e exibir os preparativos e a entrada de um ex-ministro na prisão; passar o videograma dos interrogatórios no DCIAP; mostrar na TV a apresentação às autoridades por parte do suspeito de crimes de sangue… O espetáculo também aconteceu em Sintra hoje. É óbvio que são públicos o julgamento e a leitura do acórdão, mas não têm de ser espetaculares. O público acedia à Sala por ordem de chegada, devendo ter sido garantido lugar para os observadores da AMI. Mas para quê lugares para representantes dos sindicatos? Só é reservável lugar ao Tribunal e às partes.
2019.05.20 – Louro de Carvalho    

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