Foi lido hoje, dia 20 de maio, no Tribunal de Sintra,
o acórdão atinente ao processo em que 17 agentes da Esquadra da PSP de Alfragide são acusados pelo Ministério Público (MP) de vários
crimes (denúncia
caluniosa, injúria,
agressão ou ofensa `integridade física, falsificação de
documento e falsidade de testemunho sequestro, tortura, ódio racista…) contra 6 jovens da Cova da Moura – isto quase um ano
após o começo do julgamento (22 de maio de 2018).
Regista a comunicação social
que a tarde foi marcada pelo reforço da segurança no tribunal com mais quatro
militares da GNR e pelo ambiente de tensão. Com efeito, no átrio estavam cerca de 50 pessoas,
entre jornalistas e muitos agentes da PSP que foram apoiar expressamente os colegas
e lotaram a sala de audiências, embora muitos polícias tenham sido barrados à
porta, só tendo entrado os representantes das suas associações sindicais.
Assistentes e outros ativistas apoiantes dos ofendidos ficaram de fora da sala
e mostraram a sua indignação aos oficiais de justiça. Entretanto, o
tribunal acabou por desocupar uma fila para permitir a entrada dos assistentes
e de três observadores da AMI (Amnistia Internacional). A juíza-presidente não permitiu a permanência de pessoas em pé para
assistir à leitura do acórdão. Entre as várias pessoas que ficaram de fora, destaca-se Mamadou Ba, dirigente do SOS
Racismo, que de imediato se manifestou no Facebook, classificando de
“vergonha” o sucedido no
Tribunal, acusando:
“O Tribunal consentiu que os sindicatos da
polícia se organizassem para impedir que cidadãos assistissem a leitura da
sentença em que 17 agentes são acusados entre outros de sequestro, tortura,
racismo, coação, falsificação de provas. Uma vergonha!”.
Foram
ouvidos, ao longo de 30 sessões, os 17 arguidos (logo nas primeiras quatro), os 6 ofendidos e dezenas de testemunhas. A
juíza-presidente, Ester Pacheco, referiu que eram mais de 100.
Manuel das
Dores, o procurador que acompanha o julgamento, deixou cair as acusações de
tortura e ódio racial, de que também os acusava o despacho do MP de julho de
2017. Manteve a acusação a pelo menos 7 polícias pelos crimes de ofensas à
integridade física. Neste grupo está João Nunes, o agente que disparou
uma shotgun e que tem, aliás, o
maior número de acusações.
A acusação
inicial conheceu dois momentos: o primeiro, a 5 de fevereiro de 2015, em que
uma equipa da PSP foi à Cova da Moura fazer patrulhamento e deteve Bruno Lopes,
por este alegadamente ter atirado pedras à carrinha da polícia, tendo um agente
disparado dois tiros e atingido duas moradoras; e o segundo, em que amigos do
jovem, entre eles membros do Moinho da Juventude, se dirigiram à esquadra
para, segundo os próprios, pedirem esclarecimentos, tendo, porém, sido detidos
e acusados de invasão. Os agentes da PSP, como é natural, sempre porfiaram a
sua inocência. Mantiveram em tribunal as descrições que passaram aos autos de
notícia: primeiro, que o ofendido é que os agredira atirando uma pedra;
segundo, que houve tentativa de invasão da esquadra por parte dum grupo de jovens.
Negaram em absoluto as agressões físicas e racistas, afirmando que usaram
apenas a força necessária.
O procurador
considerou que não ficou provado em sede de julgamento que as lesões dos jovens
foram tão graves que configurem o crime de “tortura” e “sofrimento atroz”, alegando:
“Não estamos na presença de tal grau de
severidade. Era preciso mais, que as acusações estivessem mais suportadas nas
lesões que apresentam.”.
Também
referiu não ter ficado provado que as injúrias proferidas se enquadrem no crime
de ódio racial. Um dos exemplos aduzidos para deixar cair o crime de tortura
diz respeito ao ofendido Rui Moniz, que tem um braço imobilizado por uma tala.
O despacho descreve que lhe foram desferidos diversos murros e pontapés,
bofetadas, pisadelas nas costas e puxões de cabelo. O relatório médico refere
que ele teve uma contusão lombar, com 10 dias de cura e 3 de impossibilidade
para o trabalho geral, “inexistindo perigo para a vida”. Por isso, o procurador
achou que não constituía prova suficiente para tortura, segundo as várias
definições que leu.
Além disso,
Manuel das Dores entendeu que a tese de tentativa de invasão da esquadra por 6
jovens, defendida pelos agentes e apresentada como justificativa para a sua
detenção, tinha legitimidade, pois foi essa “a perceção da realidade” por parte
dos agentes ao verem os jovens a aproximarem-se e que agiram de acordo com
essa perceção. Vinham efetivamente indignados com o que se passara no bairro da
Cova Moura, onde detiveram Bruno Lopes. Assim, encararam o grupo “como hostil”,
porque os jovens não vieram com “uma atitude de pura paz”.
***
Os factos da acusação do MP datam de
5 de fevereiro de 2015. Nessa, alegava o MP que 6 jovens desceram a rua da Cova
da Moura em direção à esquadra da PSP, em Alfragide, indo procurar Bruno, conhecido
e amigo que fora detido no bairro, havia poucos minutos, vítima de alegadas
agressões por parte dos agentes. Dos 6, acabaram detidos 4 (pois António e Fernando fugiram), juntamente com Bruno e Rui,
apanhados pela PSP um pouco depois nas imediações da esquadra. Nas 72 horas que estiveram
à guarda desta força de segurança, dizia o MP, foram torturados, agredidos,
humilhados e injuriados por todos os 18 agentes (9 de cada turno) da PSP da EIFP
(Esquadra de Investigação e
Fiscalização Policial) de Alfragide,
agindo “por sentimento de ódio racial, de forma desumana, cruel e pelo prazer
de causarem sofrimento” aos 6 jovens.
A acusação deduzida pelo procurador
Helder Cordeiro, coordenador do DIAP da Amadora, em julho de 2017, caiu como
uma bomba na PSP e no bairro. Na polícia, mercê da quantidade de agentes
acusados (uma mulher
oficial foi depois despronunciada), da gravidade e da dimensão dos factos descritos e porque,
pela primeira vez, era posta em causa a sua palavra, segundo os dados da
investigação que o procurador Paes de Faria decidiu delegar na UNCT (Unidade Nacional de Contraterrorismo) da PJ (Polícia Judiciária). No bairro porque, pela primeira
vez, se acreditou que a justiça podia estar do lado dos jovens do bairro.
O julgamento começou a 22 de maio de
2018, mais de 3 anos após os incidentes. Do processo constam cerca de 90
testemunhas (entre
vizinhos, amigos e pais, quer das vítimas, quer dos arguidos).
Numa primeira fase do processo, os jovens foram constituídos arguidos sob
a acusação da PSP de terem tentado invadir a esquadra para libertar o outro
jovem detido. Ficaram sujeitos a TIR (termo de identidade e residência), indiciados pelos crimes de resistência e coação contra funcionário,
injúria, dano, tirada de presos e ofensa à integridade física. Porém, a PJ verificou na sua
investigação que a narrativa não era verosímil, pelo que a versão dos jovens
vingou em fase de inquérito, baseada em 30 testemunhos, relatórios médicos e
cruzamento de informações recolhidas. Extrema
frieza, prazer de ver sofrer, cenário de barbárie – são expressões que
a advogada das vítimas utilizou para caraterizar o que se passou na esquadra.
A acusação contra os 17 polícias
apontava para dezenas de crimes: 17 crimes de tortura e outros tratamentos
cruéis, degradantes ou desumanos, 28 crimes de injúria agravada, 45 crimes de
ofensa à integridade física qualificada; 96 crimes de sequestro agravado; um crime
de omissão de auxílio, 3 crimes de denúncia caluniosa, 5 crimes de falsificação
de documento agravado.
Assim, os arguidos responderam por
denúncia caluniosa, injúria, sequestro, ofensa à integridade física,
falsificação de documento e falsidade de testemunho, por alegadas agressões e
insultos racistas a 6 jovens, na Cova da Moura e no interior da esquadra de
Alfragide. E, no PIC (Pedido
de Indemnização Civil) apresentado
em conjunto, a que a agência Lusa
teve acesso, os seis assistentes pedem que os arguidos sejam condenados a
pagar, entre todos, uma indemnização total de 327.000 euros, por danos
patrimoniais e não patrimoniais, incluindo despesas relativas a tratamentos,
reparações de danos e deslocações.
Segundo
a acusação, os elementos da PSP, à data dos factos a prestar serviço na
Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial (EIFP) da Amadora, espancaram, ofenderam a integridade física e trataram de
forma vexatória, humilhante e degradante as 6 vítimas, além de incitarem à
discriminação, ao ódio e à violência por causa da raça.
O MP
considerava que os agentes agiram com ódio racial, de forma desumana, cruel,
tiveram prazer em causar sofrimento e, além das agressões, alvejaram os jovens
com frases xenófobas e racistas durante a detenção nas esquadras de Alfragide e
da Damaia e no trajeto para o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, onde
pernoitaram deitados no chão e algemados.
Porém, em tribunal, o procurador do MP, Manuel das Dores, não viu provas,
nem nas lesões dos jovens, nem nos seus testemunhos, que demonstrassem a “tortura”
e o “sofrimento atroz”, tendo apenas pedido a condenação de 7 dos polícias – a
maior parte dos quais pelos factos ocorridos no bairro, aquando da detenção de
Bruno Lopes. O
magistrado considerou provado que, em relação a esse momento, a versão dos
jovens era a verdadeira e que os polícias tinham mentido, quer em relação à
localização da detenção, quer quanto aos motivos, quer quanto ao uso da força,
mas ficou com dúvidas quanto ao que acontecera na esquadra. Enquanto no bairro
havia várias testemunhas de moradores que assistiram à cena, na esquadra era só
palavra dos jovens contra a dos polícias. Na dúvida, Manuel das Dores, não
acreditou nas vítimas.
O MP
sustenta a condenação de alguns dos agentes pelos crimes de sequestro, de
falsificação de documento e de ofensas à integridade física qualificada, dando
como provado que estes arguidos agrediram os ofendidos, detiveram um jovem de
forma ilegal na Cova da Moura e falsificaram os autos de notícia para “branquearem”
o que realmente se passou no bairro e nos subsequentes confrontos ocorridos no
exterior da esquadra.
***
Quatro anos e mais de três meses
depois da data dos factos, os 17 agentes da PSP ouviram a leitura do acórdão. Foram
condenados 8: um a pena de prisão efetiva; e 7 a prisão com suspensão de pena. Mas
nenhum agente foi condenado pelos crimes de tortura. E, apesar de ter havido
condenações por injúrias de caráter xenófobo, foi descartada da decisão a
motivação racial, que agravaria as penas. As condenações foram sobretudo por
crimes de sequestro agravado, ofensas à integridade física qualificada,
injuria, denúncia caluniosa e falso testemunho. As penas foram agravadas porque
nenhum se mostrou arrependido. “O que
aconteceu foi sem dúvida um grave abuso de autoridade” – destacou a juíza
Ester Pacheco, que presidiu ao coletivo que julgou este caso sem precedentes.
As penas de condenação são de dois meses a 5 anos e as
vítimas receberão indemnizações de 10 mil euros. Embora sejam só 8 condenados
em 18 acusados (só 17
chegaram a tribunal, pois uma oficial foi despronunciada), é o maior número de sempre de
agentes condenados num processo.
À saída da sala de audiências, Jakilson Pereira, da direção da Associação
Cultural Moinho da Juventude, da Cova da Moura, assinalava tratar-se de “uma
decisão histórica e uma esperança de que a Justiça pode funcionar”, mas entende
que “devia ter havido mais condenações a prisão efetiva”. Com efeito, o único agente condenado a prisão
efetiva foi Joel Machado, porque do seu cadastro constava uma condenação pelo
crime de ofensa à integridade física qualificada, por atos praticados em 2010.
A juíza-presidente assinalou que os crimes praticados no âmbito deste processo ocorreram
quando ainda vigorava a suspensão da pena anterior, o que é indicador do não funcionamento
da medida como dissuasora dos comportamentos criminosos. Assim, “por uma
questão de prevenção”, o Tribunal entendeu dever condená-lo a prisão efetiva de
um ano e 6 meses, por ofensa à integridade física qualificada de Rui Moniz.
Todos os outros arguidos viram as
suas penas serem suspensas. E foi Luís Anunciação, então chefe da esquadra,
quem teve a pena mais elevada, com 5 anos, pelos crimes de ofensa à integridade
física qualificada, sequestro agravado (pela detenção ilegal de 5 jovens), denúncia caluniosa e sequestro
agravado (por ter mentido
no auto de notícia, acusando os jovens de terem tentado invadir a esquadra,
alegação que o tribunal não acreditou). O Tribunal considerou que João Nunes disparou a shot-gun contra duas pessoas no bairro (Jailza e Neusa) sem justificação e contra Celso
Lopes e depois mentiu no relatório que fez sobre os acontecimentos. Foi
condenado a 4 anos de prisão, suspensos por igual período, pelos crimes de
ofensa à integridade física qualificada e falsificação de documento. André Quesado
foi condenado a 2 anos e 6 meses, suspensos por igual período, por um crime de
sequestro agravado (subsequente
à detenção ilegal de Bruno Lopes no bairro). Arlindo Silva foi condenado a um ano e um mês de prisão,
pena suspensa por um ano, pelo crime de ofensa à integridade física e injúria
agravada. E, por último, Hugo Gaspar foi condenado a uma pena de 2 meses de
prisão, suspensa por um mês, pelo crime de injúria contra os ofendidos.
“Pese embora não se tenha apurado que
os arguidos agiram com motivação racial e que praticaram a tortura, é evidente
que houve um grave abuso de autoridade”, afiançou a juíza.
Tal como já tinha concluído o MP, depois das audições de
julgamento, também o coletivo de juízes entendeu que as alegações de tortura e
de “tratamentos desumanos e cruéis”, não ficaram demonstrados nas lesões
apresentadas nos relatórios hospitalares das vítimas.
***
Funcionou
a Justiça. A decisão judicial é histórica. Mas queriam mais. No entanto, pergunto-me
como é que a PJ conseguiu concluir pela mentira dos agentes da PSP; como é que,
não tendo sido provado ter havido atos de tortura e ódio rácico, se demonstra
que a PSP ultrapassou a utilização da força necessária; e como se consegue
provar a inocência de jovem que atira pedra(s) a uma patrulha e de uns jovens
que vão em grupo a uma esquadra.
Depois, temos mais um caso de
justiça-espetáculo. Com efeito, o espetáculo justiçoso televisionado não é só o
juiz ir pessoalmente ao Parlamento pedir o levantamento da imunidade dum
deputado; prender ou deter um ex-primeiro-ministro na manga do aeroporto; escancarar
perante as câmaras a residência ou os escritórios de altas figuras públicas; filmar
e exibir os preparativos e a entrada de um ex-ministro na prisão; passar o videograma
dos interrogatórios no DCIAP; mostrar na TV a apresentação às autoridades por
parte do suspeito de crimes de sangue… O espetáculo também aconteceu em Sintra
hoje. É óbvio que são públicos o julgamento e a leitura do acórdão, mas não têm
de ser espetaculares. O público acedia à Sala por ordem de chegada, devendo ter
sido garantido lugar para os observadores da AMI. Mas para quê lugares para
representantes dos sindicatos? Só é reservável lugar ao Tribunal e às partes.
2019.05.20 – Louro de Carvalho
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