quinta-feira, 9 de maio de 2019

Recuperação integral do tempo de serviço custaria só mais 398 milhões


Para a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) a recuperação integral do tempo de serviço das carreiras na Administração Pública custaria anualmente mais 398 milhões de euros em termos líquidos, para lá dos 169 milhões que a solução do Governo custa. Estamos a falar não só dos professores, mas de todos os trabalhadores das carreiras especiais. Ou seja, descontando o que o Estado receberia em receitas de IRS e contribuições para a Segurança Social, quando a medida se refletisse na totalidade em 2023, segundo a estimativa da UTAO, estes seriam os custos líquidos acrescidos caso fosse aprovada em votação final global a proposta dos deputados do PSD,CDS, BE e PCP na comissão de educação e ciência, e aumentaria ao todo para 567 milhões de euros o custo da contagem do tempo de serviço em termos líquidos, valor contrastante com os 800 milhões de euros brutos que o Governo diz que a medida custaria.
Segundo a análise que a UTAO fez ao PE (Programa de Estabilidade), enviada aos deputados hoje, 8 de maio, o orçamento teria o impacto inicial de 410 milhões de euros em 2020 devido às mudanças feitas no pagamento de 2 anos, 9 meses e 18 dias, o tempo aceite no diploma do Governo, mas agora sem faseamento, a que se junta um quarto da reposição dos restantes 6 anos e meio. Este valor contrasta com os 540 milhões brutos (não descontando as receitas acrescidas que teria com IRS e contribuições para a Segurança Social) como custos para a medida aprovada no Parlamento.
Em 2021, o acréscimo de despesa seria menor, porque desaparece a necessidade de pagamento de retroativos dos de 2 anos, 9 meses e 18 dias, passando aos 199 milhões de euros, e em 2022 para 298 milhões de euros, até que atinge o valor em velocidade cruzeiro em 2023.
Fica bem claro, do ponto de vista técnico, que a recuperação do tempo de serviço não põe em causa excedentes orçamentais. Ao invés, não obstante o agravamento da despesa resultante da recuperação integral do tempo de serviço para todas as carreiras, o Estado continuaria a registar excedentes orçamentais a partir do próximo ano. Nem a norma que impõe o pagamento de retroativos da contabilização da predita parcela do tempo de serviço dos professores já no próximo ano comprometeria um resultado que seria histórico. Nos termos do cálculo da UTAO, segundo refere o ECO, Portugal registaria saldo positivo nas contas públicas de 0,1% do PIB em 2020, menos duas décimas do previsto por Centeno no PE (conhecido a 15 de abril). Nos anos seguintes o excedente orçamental também seria menor que o previsto pelo Governo, mas ainda com resultados robustos. Em 2021 seria de menos uma décima (0,8%), em 2022 menos duas décimas (0,5%) e, em 2023 (quando a medida se reflete na totalidade), menos 3 décimas (0,4%). Por outro lado, o impacto estrutural desta despesa não comprometeria o cumprimento das regras orçamentais europeias, visto que se continua a prever que o Objetivo de Médio Prazo estabelecido para Portugal (o valor do saldo estrutural anual para o qual o país tem de caminhar anualmente), de 0%, será atingido já em 2019. E, de 2020 em diante, a UTAO prevê que, mesmo com este acréscimo de despesa, Portugal teria saldos estruturais positivos, ainda que perto do equilíbrio.
Assim, a não aceitação da medida de recuperação integral do tempo de serviço nas carreiras especiais não tem a ver com as contas, mas com a ideologia reinante na União Europeia neoliberal do menosprezo pelo valor do trabalho. No caso dos docentes, inscreve-se também no ataque cerrado da opinião pública publicada aos professores, que alegadamente sob a égide dum proeminente quadro do PCP, sepultariam a sociedade no casos, pelo que é conveniente domesticá-los e sobrecarregá-los, acentuando o matetocentrismo, a patroarquia e a burocracia.    
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À posição técnica da UTAO, o Ministro do Trabalho reagiu deixando clara a indisponibilidade do Governo para alinhar em propostas feitas “sem a devida avaliação”. Frisou que avançar com a recuperação integral do tempo perdido pelos professores  era condenar o setor a uma “espécie de montanha russa em que se dá e depois se tira, congela e depois se descongela”. Disse o governante, em declarações aos jornalistas, esta manhã, em jeito de justificação:
O Governo não está disponível para alinhar em propostas que são feitas sem a devida avaliação, porque fazê-lo seria condenar esses setores profissionais a uma espécie de montanha russa em que se dá e depois se tira, congela e depois descongela. Nós o que definimos foi aquilo que é possível ser feito.”.
O Ministro referiu que, ao invés do que dizem os sindicatos, o Governo não está a pôr os portugueses contra os professores, mas a aplicar o mesmo racional que foi adotado para as restantes carreiras da Administração Pública: os 70% do módulo padrão. Lembrou que há outros profissionais que não trabalham para o Estado e que sofreram com a crise, esquecendo que o Governo tem uma palavra a dirigir aos responsáveis pelo dito sofrimento e não a projetá-lo em dobro nos próprios funcionários. E reforçou que o Executivo “não tem condições para aceitar alterações tão profundas”, como a implicada na proposta que foi aprovada na especialidade a 2 de maio. E nisso está respaldado no largo elogio formulado pela Comissão Europeia.
É sabido que, face a esta decisão dos deputados, o Primeiro-Ministro comunicou ao país que se demitiria, caso a lei avançasse, já que, na sua ótica, tal afetaria consideravelmente as contas públicas e a governação. A esquerda manteve-se firme perante o que entendeu como ultimato, ao passo que a direita cedeu e fez regressar as condicionantes financeiras, ou seja, PSD e CDS garantiram que só votarão a favor da contabilização integral se for aprovada uma salvaguarda que faça depender essa recuperação de critérios económicos e financeiros. E, apesar do apelo sindical, PCP e BE confirmaram que irão chumbar esse travão, sendo então expectável que PSD e CDS votem desfavoravelmente a recuperação integral do tempo “perdido” pelos docentes. O texto final da proposta está pronto, devendo a votação global final ser marcada para o dia 10.
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Também, em comunicado, o Ministério das Finanças – cujo titular parece preferir a sanidade da governança do Eurogrupo à justa governação do país (dizem que terá posto a “hipótese” de demissão quando emergiu a generosidade do Governo para com as carreiras especiais) – reagiu de pronto ao cálculo do custo líquido feito pela UTAO, dizendo que “este cálculo é totalmente arbitrário”, mas não avança valores líquidos. O gabinete de Centeno insiste nos chavões terríficos elegendo este como o maior aumento de despesa permanente desde que Portugal aderiu ao euro, em 1999, tanto em termos brutos como em termos líquidos (disse-o João Leão, Secretário de Estado do Orçamento).
O Governo entende que “este cálculo é totalmente arbitrário” por duas razões fundamentais.
A primeira tem a ver com a vertente não bruta do valor indicado. Com efeito, o Governo diz que sempre apresentou os valores brutos das medidas de despesa, “no cumprimento da Lei de Enquadramento Orçamental”, e que o Governo “é responsável pela orçamentação de todas as despesas, neste caso das despesas com pessoal”, pelo que o seu valor será acrescido pela totalidade do impacto bruto que são responsabilidade do Estado enquanto empregador”. Na verdade, a lei mencionada pelo Governo aplica-se à elaboração do Orçamento do Estado, mas a lei do Orçamento do Estado - e o relatório explicativo que a acompanha – não faz referência à contagem do tempo de serviço, nem ao valor já acordado pelo Governo (e que foi aprovado num decreto-lei autónomo, o DL n.º 36/2019, de 15 de março), nem ao tempo. A norma que existe na Lei do Orçamento de 2019 é a replicação da norma que obriga o Governo à negociação. Ora, os 40 milhões de euros a gastar em 2019 com a contagem dos 2 anos, 9 meses e 18 dias de tempo de serviço relativos às carreiras especiais sairão da dotação provisional, a dotação para despesas imprevistas e inadiáveis – onde Centeno reservou este dinheiro.
A outra razão da arbitrariedade apontada pelas Finanças é o facto de as contribuições sociais serem para financiar a despesa com pensões e prestações da Segurança Social e este “acréscimo de contribuições gera responsabilidades e despesa adicional, quer no curto quer no longo prazo, de montante igual ou superior”, o que a UTAO não considerara. Ora, segundo o Governo, “descontar este valor ao custo da medida tem o mesmo efeito de querer gastar duas vezes o mesmo euro” e “seria de uma clara irresponsabilidade orçamental”, pois apenas geraria a necessidade de emitir dívida num montante idêntico ou aumentar os impostos para o financiar”. O mesmo se deve dizer das receitas de IRS. A este respeito, esclarece o gabinete de Centeno:
A consignação das receitas de IRS ao pagamento da reposição do tempo subjacente ao cálculo do valor líquido é contrário às regras de generalidade da receita fiscal. A receita de IRS associada a esta despesa com pessoal não é diferente de qualquer outra receita de IRS obtida com o rendimento de todos os outros portugueses.”.
Desde o início deste debate que o Governo tem usado os valores brutos e argumentado que as receitas acrescidas não deveriam ser usadas para pagar estas progressões. Porém, quando apresentou em 2017 o descongelamento de carreiras dos funcionários públicos, que ninguém pediu em termos do passado, referiu-se sempre ao custo total da medida como sendo de cerca de 600 milhões de euros. E, ao invés do que agora sustenta, este era o valor líquido da medida, não o seu valor bruto, já que este (não descontando o custo com contribuições para a Segurança Social e os descontos com IRS) superava, segundo o Governo, os mil milhões de euros quando acabasse o faseamento previsto na lei. Lê-se, a este respeito, no comunicado do Ministério das Finanças enviado a 21 de setembro de 2017 aos jornalistas após a reunião com os sindicatos:
Os dados demonstram que o descongelamento das carreiras é um processo complexo, pois incide sobre uma enorme diversidade de situações. O processo de congelamento teve a duração de sete anos e o impacto orçamental do descongelamento estima-se superior a 600 milhões de euros.”.
Fátima Fonseca, Secretária de Estado da Administração Pública, disse, em entrevista à RTP, usando os valores líquidos para estimar o custo do descongelamento das carreiras.
O descongelamento das carreiras custa ao Estado português mais de 600 milhões de euros ao longo de três exercícios orçamentais”.
O Ministério das Finanças diz também que os 800 milhões de euros que custaria “a reposição dos 9 anos, 4 meses e 2 dias seria a medida com maior impacto na despesa permanente desde que Portugal entrou no euro (considerando sempre valores brutos)”. No entanto, na mesma medida de comparação usada pelo Governo, o custo do descongelamento de carreiras iniciado em 2018 (que também beneficia os professores), tem um custo estimado pelo próprio Executivo no Programa de Estabilidade de 1.039,5 milhões de euros, mais 234,5 milhões de euros do que custa a reposição integral do tempo de serviço das carreiras especiais. E, apesar de contestar este cálculo da UTAO, o Governo usa outros cálculos destes técnicos – desta feita os relativos ao impacto estrutural – para vincar os efeitos negativos que a aprovação desta medida teria para as contas públicas e para o cumprimento das regras orçamentais. Assim, o Ministério das Finanças frisa:
Refira-se que a UTAO menciona o impacto adicional no défice estrutural de 0,17 pontos percentuais, o que levaria o efeito total da reposição dos nove anos e quatro meses a 0,24 pontos percentuais do PIB. De acordo com a UTAO agravaria a probabilidade de incumprimento das regras do saldo estrutural e do esforço de convergência para o objetivo de médio prazo. Sem mais medidas de mitigação da despesa a ‘regra da despesa’ do Pacto de Estabilidade e Crescimento seria impossível de cumprir no contexto do Programa de Estabilidade 2019-2023 apresentado no final de abril na Assembleia da República.”.
A UTAO adverte que podem ser necessárias mais medidas para cumprir a trajetória de ajustamento estrutural, mas nos cálculos sobre a evolução do saldo estrutural entre 2020 e 2023 prevê sempre um saldo positivo, o que significa que Portugal cumpriria as metas orçamentais europeias. O Objetivo de Médio Prazo estabelecido por Bruxelas que Portugal tem de atingir é de um saldo estrutural neutro, ou seja, 0%. A previsão da UTAO é que seja sempre superior.
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O Bloco de Esquerda proclama, alto e bom som, que a “UTAO desmente o Governo, demonstra que os valores estão inflacionados”. Como vincou o bloquista Pedro Filipe Soares, no plenário desta tarde, os números divulgados hoje, dia 8 de maio, pela UTAO sobre a reposição integral do tempo de serviço dos professores e das restantes carreiras especiais “desmentem” os cálculos feitos pelo Executivo e demonstram que os valores estão inflacionados, incluem despesas que já estavam previstas para outros fins e confundem deliberadamente valores líquidos e brutos. O deputado acusou o Governo de criar uma “crise artificial” baseada na “ambição de uma maioria absoluta eleitoral”. E Joana Mortágua acrescentou  que os dados da UTAO retiram “qualquer argumento” ao PSD e ao CDS “para recuarem”.
Pedro Filipe Soares deixou críticas à direita, defendendo que esse lado do hemiciclo deu uma cambalhota para manter o Governo em funções, aduzindo que “o amor do CDS aos professores era conjuntural, oportunista”. E tem razão, pois Assunção Cristas já veio à liça falar da necessidade de rever a carreira docente, obviamente para a constranger.
Nuno Magalhães, do CDS, reforçou que o Governo procedeu a uma “farsa política” e disse que o PS tem uma “posição hipócrita” e a esquerda uma posição “irresponsável de dar tudo a todos”.
Maria Germana Rocha, do PSD, argumentou que os portugueses “não se deixam enganar” pelos argumentos financeiros, quando o PS, o BE e o PCP se preparam para chumbar as normas de salvaguarda financeira. E o também socialdemocrata Adão Silva deixou claro que, se o PS não votar a favor desse travão financeiro, ficará clara a farsa do Governo e a sua “incoerência”. 
Adão Silva insistiu, por outro lado, que o PSD não procedeu a qualquer recuo e não tem duas caras, pois sempre previu normas de salvaguarda financeira na sua proposta de alteração. 
Em resposta, Joana Mortágua sublinhou que as contas avançadas pela UTAO retiram “qualquer argumento” ao PSD e ao CDS para “dar a palavra dada aos professores por não dada”, ficando reféns dos números de Mário Centeno. Da mesma posição partilhou António Filipe, que disse que os socialdemocratas não querem mesmo a reposição integral do tempo perdido.
Já o socialista Porfírio Silva frisou que o PSD tinha um “duplo objetivo” neste debate: iludir os professores e lançar um novo ataque à escola pública”, vindo a acusá-la de despesismo. E insistiu que a recuperação do tempo congelado não estava no programa eleitoral de nenhum partido e deixou críticas aos sindicatos, que “escolheram o Governo como inimigo e serviram mal os professores”. E, sobre a atitude de António Costa, vincou que foi “leal aos portugueses” ao alertar para a “irresponsabilidade” da medida que estava em cima da mesa.
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É de anotar que o Governo fala só de 7 anos de tempo congelado e não de 9, dando a impressão de que só há tempo congelado nos governos passistas, quando o segundo congelamento foi estipulado pelo segundo governo de Sócrates (obviamente repercutido em Passos e Costa).
E, assim, números de anos e de milhões de euros para todos os gostos enredam na onda neoliberal o direito ao trabalho! Que dirá a isto o Conselho de Finanças Públicas?
2019.05.08 – Louro de Carvalho

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