sábado, 11 de maio de 2019

Grandes devedores explicam à CPI as perdas milionárias da CGD



Ouvidos que foram pela 2.ª CPI (comissão parlamentar de inquérito) à recapitalização da CGD (Caixa Geral de Depósitos) os supervisores, os antigos diretores e presidentes e a consultora EY, passam a fazer os seus depoimentos os grandes devedores: Joe Berardo, Diogo Gaspar Ferreira, Manuel Matos Gil, Manuel Fino, entre outros.
Nesta semana, foi a vez de Diogo Gaspar Ferreira (Vale do Lobo) e de Joe Berardo irem ao Parlamento explicar as perdas milionárias que provocaram ao banco. Seguir-se-ão Manuel Matos Gil (La Seda), Manuel Fino (Investifino) e Joaquim Barroca (grupo Lena). São estes alguns dos nomes ligados à lista dos 25 maiores créditos em incumprimento e que originaram perdas por imparidade na ordem dos 1.200 milhões de euros. Mas cada negócio tem a sua uma história.
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A CGD perdeu 294 milhões de euros com o negócio de Vale do Lobo, pelo que Diogo Gaspar Ferreira foi ao Parlamento contar a sua versão e responder às perguntas dos deputados.
Foi o então administrador Armando Vara quem levou um “dossiê preparado” sobre o projeto do empreendimento turístico de Vale do Lobo a Alexandre Santos, então diretor de Empresas Sul, que disse, há 3 semanas, no Parlamento ter sido caso único no tempo que lá esteve. Em junho de 2006, Vara enviou um e-mail àquele diretor para estudar o projeto com celeridade. E, em outubro, a CGD aprovou um financiamento a Vale do Lobo no valor de 170 milhões de euros, mais suprimentos de 50 milhões, para lá de ter entrado com 30 milhões na sociedade Wolfpart que serviu para compor a parte dos capitais próprios exigidos na estrutura de financiamento do projeto (substituindo-se ao aval pessoal pedido aos promotores, incluindo Diogo Gaspar Ferreira, Rui Horta e Costa e um grupo de Hélder Bataglia). Segundo a EY, o financiamento a este resort de luxo redundou em perdas de 75 milhões de euros à CGD, enquanto a Wolfpart gerou uma menos-valia de 219 milhões – o que, para Vara, constituiu um momento não bom e, para Carlos Santos Ferreira (antigo presidente da CGD), um mau negócio e com maus resultados.
O negócio com Joe Berardo (Metalgest e Fundação Berardo) redundou em perdas para a CGD no valor de 152 milhões de euros. Segundo Mariana Mortágua, a proposta de financiamento de 50 milhões de euros à Metalgest teve como base a “aparente mais-valia” da empresa e notícias sobre os “resultados aceitáveis” do comendador na bolsa. E, mais tarde, foi aberta uma conta corrente onde o empresário se podia financiar até 350 milhões, através da Fundação Joe Berardo. A EY quantifica as perdas por imparidade na ordem dos 150 milhões de euros, mas a CGD não é o único banco que ficou a perder com o empresário. Também o BCP e o Novo Banco avançaram para tribunal para tentar executar a coleção de arte de Joe Berardo. E vários responsáveis do banco estatal foram confrontados pelos deputados com as condições que foram dadas ao empresário madeirense para financiar a batalha na guerra dos acionistas do BCP há cerca de uma década: ausência de aval pessoal, taxas de financiamento mais favoráveis. 
Na sua audição, Carlos Santos Ferreira tentou contrariar a teoria do assalto ao BCP, dizendo que “é bucha para encher discursos”. E, em declarações à imprensa, o comendador sugeriu outro cenário ao dizer que foram os bancos a abordá-lo para comprar ações do BCP numa altura em que os acionistas lutavam pelo controlo do banco. E já depôs no Parlamento.
Do financiamento a Manuel Matos Gil (Imatosgil, acionista de referência da La Seda) resultaram perdas para a CGD no valor de 264 milhões de euros. Em 2006, a CGD entrou no capital da La Seda (onde já estava a Imatosgil) para influenciar as decisões de investimento do grupo catalão. A ideia era trazer uma fábrica de produção da PTA (plástico utilizado no fabrico de vestuário, garrafas plásticas e peças para automóveis) para Sines, a Artlant. Porém, com a crise financeira global, o acionista que deveria ficar com a produção da Artlant faliu e o negócio veio a dar perdas de 264 milhões de euros, respeitantes a menos-valias da participação na La Seda e a imparidades sob crédito. A este respeito, Faria de Oliveira (antigo presidente da CGD) revelou, na semana passada, que foi o grupo Imatosgil quem apresentou o projeto junto da CGD e que o banco público “foi instado várias vezes” pelo Governo de Sócrates a envolver-se no investimento, considerado PIN (Potencial Interesse Nacional). E mencionou uma reunião em que esteve presente o Ministro da Economia da altura, quando a La Seda já se encontrava em reestruturação.
A audição Matos Gil ficou adiada para as próximas semanas por se encontrar no México.
Quem vai ser ouvido, da parte de Manuel Fino, são José Manuel Fino e Francisco Manuel Fino (filhos de Manuel Fino, Investifino) por um financiamento que redundou em perdas para o banco público no valor de 138 milhões de euros, como consta no relatório preliminar da EY. Em 2005 e 2007, a Investifino obteve dois financiamentos de 180 milhões de euros da CGD: a primeira operação serviu para comprar ações da Cimpor, que tinha acabado de desblindar estatutos; a segunda serviu para o empresário participar no denominado assalto ao BCP. A EY identificou situações de exceção ou de não cumprimento das regras internas, nomeadamente quanto às garantias reais para cobrir pelo menos 120% dos custos totais do empréstimo. Dois anos depois, no auge da crise financeira, Manuel Fino e o banco do Estado acordaram uma reestruturação de vários contratos (eram 6 na altura), num processo através do qual a Investifino vendeu 9,5% da cimenteira à CGD, abatendo parte da dívida que, na altura, ascendia a 306 milhões. Em 2015, a CGD tinha uma exposição creditícia de 138,5 milhões que dava por quase totalmente perdida.
Santos Ferreira disse, a este propósito, que a crise financeira não explica tudo e admite alguma culpa nos negócios, referindo que podiam ter sido mais prudentes”.
O financiamento a Joaquim Barroca (Grupo Lena) resultou em perdas de 67 milhões de euros. Embora pouco se tenha falado do grupo Lena na CPI, a EY identifica duas entidades ligadas à construtora de Barroca, acusada de ter corrompido José Sócrates (antigo primeiro-ministro): Lena Construções e Always Special. Segundo a auditora, a CGD detinha, no final de 2015, exposições de crédito de 48,7 milhões de euros, em relação à primeira e de 44,3 milhões em relação à segunda. Estão entre os financiamentos que mais perdas deram ao banco estatal.
Confrontado com o assunto, Santos Ferreira disse que o conselho de crédito da CGD aprovou a primeira operação contrariando o parecer desfavorável da direção de risco mercê da “exposição muito grande à construtora Abrantina” que o grupo havia adquirido em 2007 e da concorrência do mercado. Na altura, a operação foi sugerida pelo banco de investimento da CGD, presidido por Santos Ferreira, como lembrou a deputada do PS Constança Urbano de Sousa. Mas Santos Ferreira, querendo desfazer qualquer dúvida à deputada quanto ao seu envolvimento na operação, revelou que o gestor da parte operacional do banco de investimento era Jorge Tomé, “um grande profissional da banca”.
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Resta saber se a audição dos grandes devedores pela CPI se reveste de alguma utilidade.
Se alguns administradores e supervisores se apresentaram à CPI com amnésias, memórias lacunares e memórias genéricas ou invocaram a praxe corrente, as pressões e a crise, o exemplo de Berardo, que até invocou o segredo bancário para não falar das dívidas das entidades coletivas que gere, é ilustrativo da inutilidade da audição dos grandes devedores. O comendador não tem bens em seu nome, nem dívidas pessoais. Só as suas empresas é que são devedoras. E assegurou que o BCP foi o seu maior desastre.
Sobre a audição que suscitou grandes expectativas, havia dúvidas quanto à estratégia a seguir pelo homem que publicamente exibe fortuna e que deve centenas de milhões de euros à CGD, que serviram para comprar ações do BCP, banco a quem também deve.   
Joe Berardo (nome artístico de José Manuel Rodrigues Berardo) esteve cinco horas a responder a perguntas e deixou várias frases que, passando pelo riso e pela exasperação, quase levaram os deputados ao desespero. Por exemplo, disse que a Caixa só perdeu dinheiro com os seus créditos porque quis; assumiu que dobrou as regras para evitar que os bancos pudessem ficar com as obras de arte da Coleção Berardo; jurou que não tem dívidas, pois os créditos da CGD foram concedidos à Fundação que tem o seu nome e à empresa Metalgest, não pessoalmente a si; e referiu que “não tem nada”: nem a herdade e os vinhos da Bacalhoa, nem as obras de arte da Coleção Berardo, pois está tudo penhorado ou em nome de outras entidades.
Pediu, invocando o direito à imagem, que a audição não fosse transmitida no canal Parlamento. Mas, negando-lhe o pedido, os deputados recordaram que não se preocupou com a imagem quando convidou Manuel Luís Goucha para visitar um dos seus palacetes e exibir a sua fortuna.
Garantiu que tem boa memória, mas em inúmeras ocasiões recorreu ao “não me lembro” (síndrome do bavismo), sobretudo ao ser questionado sobre negócios de muitos milhões ou pessoas que lhe abriram as portas aos mesmos, avisando que era disléxico, pelo que tinha dificuldade em pronunciar corretamente as palavras. Contudo pronunciou bem a maioria das palavras.
Afirmou que, se a Caixa perdeu dinheiro, é porque não acionou as cláusulas no seu contrato de concessão de crédito. A CGD poderia, por exemplo, ter vendido as ações logo e evitaria as perdas que veio a ter, mas ninguém adivinhava que as cotações do BCP iam descer tanto.
Chegou a gozar com os deputados dizendo que deviam era perguntar aos responsáveis pelos financiamentos, não a ele; E, quando perguntou aos deputados se pensavam que ele era o dono da CGD e eles reponderam que não, que é de todos os portugueses, que já meteram milhares de milhões de euros para a sua recapitalização e que está a custar uma “pipa de massa” aos contribuintes, reagiu, dizendo: “A mim não”.
Quis deixar a ideia de que os seus investimentos no BCP (comprando ações com 350 milhões de euros emprestados pela Caixa) foram uma tentativa de ajudar a banca, que o chamou “numa altura de crise”, ajuda que preferia não ter dado, pois (como disse) o BCP foi o maior desastre da sua vida.
Os empréstimos concedidos a Berardo para comprar ações do BCP tiveram como garantia só as próprias ações – um investimento como os outros que tinha feito até então. E Berardo disse:
O meu trabalho é pedir dinheiro para rentabilizar. Não deu certo. A vida é assim. Não sou o primeiro, nem serei o último.”.
À questão se a Caixa lhe pediu um aval pessoal na concessão do empréstimo, primeiro disse que não chegou a pedir esse aval, recomendado pela direção de risco do banco público. Porém, depois admitiu, que no maior financiamento, o de 2007, o pedido foi feito, mas que recusou. Mais tarde retificou: em 2006, no financiamento de 50 milhões de euros, a Caixa não pediu aval; no financiamento de 2007, até 350 milhões de euros, a Caixa pediu aval, mas Berardo recusou; e, em 2008, deu um aval pessoal a um financiamento de 38 milhões de euros da Caixa, mas isso foi para ajudar num aumento de capital do BCP.
Confrontado com os sinais exteriores de riqueza que mostrou ainda recentemente e face à pergunta “Porque não paga os seus empréstimos?”, respondeu:
Eu, pessoalmente, eu não tenho dívidas. Eu tenho tentado ajudar. Claro que não tenho dívidas.”.
E garantiu que não tem bens pessoais: nem a Quinta da Bacalhoa, nem as outras empresas que lhe são imputadas. Revelou, entretanto, que houve ações de empresas que foram dadas como penhora a outros bancos, como o BCP e o BES. Foram os casos da Quinta da Bacalhoa e da Empresa Madeirense de Tabaco e imóveis no Funchal.
Relativamente à coleção de arte moderna com o nome de Berardo, disse que é da Associação Coleção Berardo e quem manda na associação “sou eu” (disse). Já sobre quem são os outros detentores de títulos desta associação e sobre os direitos dos bancos credores a quem deu uma penhora sobre os títulos em 2010, as respostas foram mais complicadas.
Apesar de considerar que não faz sentido a informação de que só tem uma garagem no Funchal em seu nome, Berardo nunca assumiu, ao longo da audição, ser proprietário de mais nada.
Quando assinou o acordo de reestruturação da dívida bancária de Berardo de quase mil milhões de euros, comendador deu um penhor sobre 75% dos títulos da Associação Coleção Berardo, mas, segundo o próprio, não tem direitos sobre as obras de arte que são o ativo desta associação.
E perguntou:
E se os bancos tivessem pedido os títulos na associação para executar as garantias? Como é que eles poderiam executar as obras se elas estavam em exposição?”.
Apesar de o acordo assinado em 2012 prever que os bancos pudessem mandar avaliar as obras e participar em assembleias gerais da associação, esse direito não terá sido exercido.
Já no final da audição, Joe Berardo foi confrontado com a alteração que promoveu dos estatutos da Associação Coleção Berardo, que dificultou ainda mais a vida aos bancos – CGD, BCP e Novo Banco. O comendador terá aproveitado uma decisão judicial, segundo a qual os bancos credores não teriam direito a ser convocados para a assembleia geral. E a alteração avançou do modo seguinte: primeiro, houve um aumento de capital na Associação, que diluiu a posição dos bancos com a entrada de mais sócios; depois, em 2016, realizou-se uma assembleia geral na qual foi aprovada uma mudança de estatutos que limitou a venda dos títulos de participação que a banca pudesse vir a ter por via de uma execução do penhor, o que só poderia acontecer com o acordo da maioria dos sócios.
Não quis identificar os sócios que estão do seu lado e contra a banca e acabou por confessar que alterou os estatutos por haver o receio de que os bancos pudessem vender o penhor sobre os títulos a fundos “abutre” de reestruturação, mas acabou por admitir que mudou os estatutos “para defender os meus interesses”, corrigindo depois, para “os interesses da associação”.
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Perante esta amostra de negação de dívidas e de bens, o descaramento no seu pior e este espetáculo de dislates e ditos e contraditos no próprio depoimento, é de reconhecer a quase nula validade prática da audição dos grandes devedores. Terão os deputados o direito e o dever de os ouvirem? Terão eles o direito de ser ouvidos? Talvez. Mas rebaixarem-se os deputados a este ponto de terem de ouvir disparates como se fossem verdades como punhos… não é assim que garantem a dignidade e credibilidade do Parlamento e o genuíno serviço à democracia e ao povo.
2019.05.11 – Louro de Carvalho 

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