domingo, 19 de maio de 2019

Teologia para fazer uma justa interpretação da história da humanidade


Em 17 de maio de 2019, dia da Faculdade de Teologia (FT) da UCP (Universidade Católica Portuguesa) e auge da celebração do seu cinquentenário, o Padre Alexandre Palma, vice-diretor da FT, em entrevista à Rádio Renascença e à agência Ecclesia, analisou a relevância do saber teológico e o trabalho desta escola fundada há 50 anos, afirmou que a “inquietação intelectual” leva cada vez mais gente ao curso de Teologia (que não se destina só a futuros sacerdotes), falou da aposta na internacionalização, da necessidade de se fomentar o diálogo científico e cultural, da salutar tensão entre progressistas e conservadores  e disse encarar como natural que a FT seja liderada por uma mulher leiga, porque a FT “não é deste ou daqueles”, mas de toda a Igreja.
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Considerando que, na abertura das comemorações dos 50 anos, a direção da FT frisou a necessidade de “redescobrir” e “reforçar” o papel central da Teologia no concerto dos saberes, o entrevistado, chama a atenção para o duplo lugar da Teologia, que é “trazer o pensar académico para o interior da vida da Igreja” e “trazer o pensar teológico, crente, para o seio da comunidade académica no geral”. Assim, a FT está nesta charneira “trazendo a voz do pensamento académico para o seio da Igreja e trazendo o que é a problemática da fé, do pensar teológico, para o espaço público”. E, sobre o que está a ser feito, o Padre Palma, assinala:
A primeira coisa é aquilo que uma faculdade tem de fazer todos os dias, que é formar novas gerações, responder às solicitações dos alunos, formá-los, esse é o primeiro serviço, que é pessoa a pessoa, aluno a aluno, onde se constrói esse lugar, essa voz da Teologia no espaço público e na vida da Igreja. Mas, depois existem outras dimensões, o trabalho de investigação, a publicação, a presença nos média, como é aqui o caso…  Ou seja: trazer também a vitalidade da Faculdade de Teologia para o espaço público, é estar seguramente ao serviço disso.”.
Em relação ao universo da população estudante que frequenta a FT, sublinha que é constituída por “todos aqueles que nos batem à porta”. E especifica:
Existe um número significativo de candidatos a ministérios na Igreja, de vária índole, provenientes de dioceses, congregações, masculinas e femininas. Temos também um público de leigos, em termos de alunos, que procuram formação nesta área, seja por curiosidade, procura de um certo perfil profissional ou por formação ao longo da vida, gente que tem outras graduações noutras áreas e quer enriquecer-se sob este ponto de vista. Estes são os nossos públicos, diversificados na geografia em que a Faculdade está presente – Lisboa, Porto e Braga.”.
Não obstante, a FT procura abrir as portas a outros públicos e o facto de ser uma unidade dentro duma Universidade permite e estimula “esta inter e transdisciplinaridade”, que necessariamente estabelece “contacto com outros saberes, com outras ciências, com outras disciplinas e com outros públicos” – o que acontece não só em relação à comunidade nacional, mas também à escala do mundo, no quadro da internacionalização como sucede tendencialmente com quase tudo. Ora, a FT, segundo o ilustre académico, é, neste aspeto, “precocemente internacional”, pois, “estando em parte suportada numa certa dinâmica eclesial”, com uma grande circulação de estudantes estrangeiros que estudam em Portugal, de portugueses que são missionários, há “uma tradição de internacionalização relativamente precoce ao nível do corpo discente”.
Assim, é preciso responder, de acordo com o Plano Estratégico para 2015-2010, “a solicitações neste campo discente” e “no campo dos professores, da investigação, da colaboração”. A FT tem aproximado muito as suas “relações com várias escolas, várias academias, várias faculdades no Brasil” e tem – e quer ter cada vez mais – “uma atenção muito particular ao mundo africano de língua oficial portuguesa”. Por outro lado, assume “uma linha estratégica de serviço à comunidade, à sociedade, à universidade”; e estimula as parcerias com escolas e faculdades na Europa. E o entrevistado acrescenta que não se trata apenas de parcerias “com instituições académicas, que isso é o nosso core business, é o mais natural”, mas que há “uma panóplia bastante considerável de parcerias com outras entidades da sociedade civil, desde a Cáritas a fundações, ao CNE (Corpo Nacional de Escutas), pedidos de dioceses”. Enfim, a FT procura, “de alguma maneira, interagir com a sociedade civil, não só na sua presença académica”.
No respeitante a interação e parcerias com outras instituições académicas a nível internacional, diz que “é um esforço grande”. A FT tem feito “um caminho nesse sentido”: os portugueses vão lecionar fora, são acolhidos cá professores estrangeiros, há “trânsito de docentes, trânsito de discentes”. A nível interno, é possível interagir, desde logo, dentro da própria UCP. E o Padre Palma reconhece “o lugar das outras Faculdades no interior da UCP”, com quem a FT tem “laços de grande proximidade e de serviço recíproco”, dando como exemplo a existência duma unidade letiva transversal a todos os cursos da UCP lecionada na maioria deles, chamada ‘Cristianismo e Cultura’, lecionada a partir da Faculdade de Teologia nas outras unidades e vice-versa. E conta com “as competências dos docentes da área de Estudos de Cultura, da Gestão, para trazerem, em alguns pontos, formação aos estudantes de Teologia”.
Releva as relações pontuais com outras universidades portuguesas, nomeadamente com a Faculdade de Letras da universidade de Lisboa, “ao nível de estudos e de investigação”. E diz:
Podemos partilhar trabalho conjunto com investigadores de outras faculdades. Ou seja, nós não estamos fadados a uma certa insularidade e é isso que tentamos combater.”.
Não esconde a singular exclusividade da Faculdade de Teologia da UCP na investigação teológica em Portugal, ou seja, “como unidade de ensino e investigação especificamente da teologia”, é “caso singular no cenário português”.
Depois, a FT ministra o curso de Ciências Religiosas, um curso, de algum modo, associado à Teologia. Porém, a FT tem desenvolvido nos últimos anos  (é também uma linha do Plano Estratégico) a área de Estudos de Religião, que possibilita a cooperação com muitos investigadores de várias áreas e de várias academias.
Quanto ao Instituto de Estudos de Religião, releva o “arranque com um conjunto de seminários e de propostas de estudos avançados em alguns tópicos particulares”, exemplificando com a “relação entre a religião e a secularidade, entre a fé e a secularidade, neste dinamismo da secularização”. Considera que o Instituto “está num certo reajuste da sua própria estrutura”, mas “que o balanço é positivo. E contextualiza:
Os Estudos de Religião estão também desenvolvidos no âmbito do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER), que também foi criado para estimular a relação entre Teologia e Estudos da Religião e também o Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), que é um centro de estudos da Faculdade de Teologia, com créditos firmados e já com um grande historial de serviço à academia e à sociedade civil”.
Questionado sobre o contributo da FT para o diálogo científico e cultural integrado nos ‘cinco passos em cinco anos’, definidos no Plano Estratégico, mormente no âmbito da intervenção sociopolítica na sociedade, a partir do património que investiga, em especial a Doutrina Social da Igreja (DSI), recusou “afunilar” o aludido contributo na DSI. Salienta que, sendo “ainda um pouco contraintuitivo” perceber que “o religioso não se extingue nas sociedades pós-seculares, tem a FT feito o esforço de o mostrar, baseada “até em estudos empíricos” que foram desenvolvidos por docentes e investigadores seus, “que têm procurado evidenciar a presença do religioso, disseminada, menos institucional com certeza, com muitas dinâmicas e em transformação, seguramente”. Refere que “é um serviço que tem tido algum impacto público”, como se vê pelos exemplos: um estudo recente no âmbito do CITER (Centro de Investigação em Teologia e Estudos da Religião) em parceria com outras entidades, como a FFMS (Fundação Francisco Manuel dos Santos), “sobre o perfil da dinâmica religiosa na área metropolitana de Lisboa” (com eco público em programas de televisão, publicações e debate académico em entre pares); e um projeto que “teve a ver com uma releitura a partir do centenário de Fátima”, desenvolvido no CITER, que “foi uma espécie de laboratório para procurar perceber algumas dinâmicas do religioso”. E adverte:
Creio que este é um serviço que a Faculdade não vai prestar, já vem prestando, e continuará obviamente a prestar. Com a sua voz, porventura com um impacto que não será de grande escala, de média escala. Mas também estes exercícios académicos, de investigação, não têm logo um impacto imediato.”.
No atinente ao crescente número de leigos que frequentam os cursos de Teologia sem a mira no sacerdócio ou na vida religiosa, discorre: 
A Teologia lida com a questão fundamental da condição humana, que é, no fundo, a questão de Deus, que é um lado da medalha da questão sobre nós próprios, quem somos. A Teologia não terá o monopólio destas questões fundamentais, bem entendido, mas é claramente um campo da reflexão humana que trabalha esta questão fundamental. Nós trabalhamo-la particularmente a partir do horizonte da experiência cristã, onde nos perguntamos, investigamos criticamente, hermeneuticamente, como é que a tradição cristã foi sendo pensada, vivida, absorvida, assumida, testemunhada, como é que ela foi evoluindo no tempo, como é que ela se coloca diante dos desafios do presente. E conhecer este elemento, este conjunto de realidades, parece-me um dado fundamental, seja para quem procura conhecer o cristianismo a fundo, seja para quem procura conhecer o impacto que o cristianismo, ou a dinâmica do religioso, teve, tem e terá nas sociedades modernas.”.
E confessa que não se pode fazer “uma justa interpretação da história da humanidade”, seja o seu passado, seja no presente ou perspetivando o futuro, ignorando este tópico, pelo que “um conjunto de competências inerentes à reflexão teológica” é absolutamente central “para perceber esta dimensão que não conseguimos eliminar do coração humano”. Depois, o diálogo cultural traz outra racionalidade, a “de trazer ao conjunto a harmonia dos saberes, das várias racionalidades que habitam no espaço universitário, mas [que] genericamente habitam nas sociedades”. E enfatiza este contributo osmótico da Teologia e para a Teologia:
Trazer a voz desta racionalidade, que arranca a partir duma experiência religiosa, enriquece o espaço público e, ao mesmo tempo, também enriquece a própria experiência religiosa, porque ela aí vê-se confrontada com a necessidade do diálogo, do confronto, de ajustar o seu diálogo, ajustar o seu próprio testemunho. Há aqui uma espécie de relação recíproca da bondade para a sociedade ter a Teologia no seu seio e da bondade para a Teologia de estar no espaço comum, no espaço público.”.
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Tendo-lhe sido solicitado um perfil do aluno de Teologia da FT, distribui este perfil diversificado por três setores: o do número significativo de alunos que estão orientados para o exercício de um ministério na Igreja (designadamente o presbiterado e o diaconado), dado tratar-se duma condição de acesso aos próprios ministérios que postula um percurso académico que culmina com o curso de Teologia; o do crescente conjunto de leigos e leigas (e religiosos/religiosas) “que procuram formação superior nestas áreas, por inquietações da sua própria vida crente, ou porque se orientam para a docência da disciplina de EMRC (Educação Moral e Religiosa Católica); e um conjunto significativo de gente madura, já sénior, que depois duma vida profissional, às vezes em etapas de reforma, descobre a inquietação espiritual e intelectual e, como tem o tempo e tem o interesse, vem frequentar na FT, às vezes como aluno-ouvinte, uma série de disciplinas que mais lhe interessem, pelas quais tem interesse.
Reconhece, no quadro dos teólogos portugueses e no debate teológico, alguma tensão entre os denominados ‘conservadores’ e ‘progressistas’, que é salutar em certa medida, pois há “um determinado grau de intensidade da tensão” que pode ser desbloqueador, construtivo, que nos pode “fazer avançar, até um certo ponto”. Ao invés, “a ideia de uma espécie de paz perpétua, de puro acordo, pode ser bastante bloqueadora”. Mas adverte:
Na teologia, como aquilo que nós procuramos não é entrar na espuma dos debates, por mais atuais e candentes que eles sejam, mas é procurar ir aos fundamentos, às fontes, à história dos processos, isso ajuda muito a desconstruir alguns clichés, algumas ideias muito repetidas, mas que, às vezes, mereciam ser mais devidamente ponderadas”.
Sobre o contributo das redes sociais para o debate teológico, diz:
Eu sou pouco versado em redes sociais, tenho muito pouca competência para entrar nesse campo, mas, de facto, o estudo da teologia faz-se muito a partir da leitura de fontes, do confronto, ouvir vozes contrastantes, e perceber que de tudo isto se faz a teologia, e que de tudo isso se faz o cristianismo”.
Relativamente à existência de muitos teólogos e teólogas e ao facto de a FT ser dirigida por uma mulher, sublinha que, “ao contrário do que acontece noutros lugares, ela [a FT] não é – desde a sua génese, há 50 anos – deste ou daqueles”, mas “resulta da convergência de clero secular, dos seminários diocesanos, primeiro em Lisboa, e depois progressivamente outros que foram convergindo para a Faculdade”; e é “das comunidades religiosas, que tinham os seus percursos de formação e que também convergiram para a Faculdade”. E explana:
Temos clero secular, clero religioso e temos também, desde muito cedo, o contributo muito valioso de docentes leigos. Portanto, a nossa Faculdade de Teologia é verdadeiramente um ente eclesial, no seu sentido mais lato, porque não é destes ou daqueles, mas é, e quer continuar a ser, de toda a Igreja, nas suas múltiplas expressões diversificadas.”.
Considera que as mulheres têm tido sempre o seu papel e o seu lugar, mas é claro que “terão cada vez mais, como acontece genericamente na sociedade e na Igreja”. E o Padre Palma crê que a FT, “nesse aspeto, não está atrás, bem pelo contrário, de muitas outras congéneres”.
Quanto ao facto de a direção da FT estar a cargo duma mulher, refere que esta tem “muitos anos de casa” e mostrou “uma grande maturidade na gestão de escola, do Centro de História, que já dirigiu, etc., pelo que “era a pessoa indicada para aquele lugar nesta fase, independentemente de ser homem ou mulher”.
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Por fim, solicitada que lhe foi uma palavra sobre a revista ‘Ephata’, que resultou da fusão de três revistas, falou desta ferramenta conducente ao diálogo entre saberes, começando por dizer que “uma revista é sempre um lugar de expansão da investigação, do conhecimento que se vai produzindo numa unidade, como é uma Faculdade” e que as três revistas, correspondendo aos três núcleos da Faculdade – Lisboa, Porto e Braga – se fundiram pela convergência necessária para ganhar escala, aproveitando “o capital muito rico das três revistas dos três centros para uma só revista, para lhe dar uma escala maior e a projetar nos indexadores internacionais. E justifica:
Hoje as revistas científicas estão muito sujeitas a critérios de avaliação, de padronização; e podermos qualificar a nossa revista permite subir nos rankings desses indexadores e dar maior alcance ao trabalho que aqui vamos desenvolvendo e também àqueles que, de outras unidades, escrevem e publicam na nossa revista. Hoje este intercâmbio é muito comum no meio universitário.”.
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Oxalá que a Faculdade de Teologia prossiga com uma investigação cada vez mais profunda, a produção dum conhecimento cada vez mais vasto, plurímodo e aberto, um debate mais intenso, diversificado e intenso e uma divulgação mais alargada, um impacto cada vez mais acutilante na sociedade, que precisa de ser incomodada por quem sabe, se dedica, sente e age. Não bastam as repetições sábias e adaptadas. Precisamos de profundidade, abertura e audácia!
2019.05.19 – Louro de Carvalho    

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