sábado, 25 de maio de 2019

As palavras de ordem são coragem e audácia, pois Ele venceu o mundo


Hoje está patente como desafio para a Igreja a necessidade de, na linha da refontalização, beber da sabedoria primitiva e rever, em serena reflexão e diálogo franco e transparente, doutrinas e regras que podem ser reformuladas à luz dos sinais dos tempos. Com efeito, as leis e tradições são estabelecidas como oferta, não absoluta, de respostas de vida e de libertação aos apelos e confrontos da realidade de cada tempo e lugar, sem que se caia no mero circunstancialismo.
Neste aspeto, como assegura Frei Gustavo Medella, o Papa Bergoglio, cujo pontificado vem marcado pela disponibilidade e liberdade do Pastor, mostra a audácia de não se furtar a abrir os ouvidos e o coração para escutar, acolher e discernir os apelos da humanidade que ressoam no seio da Igreja. Obviamente o Pontífice não negoceia soluções, mas tenta, em regime de abertura ao Espírito Santo, que guia e anima a Igreja, e de sinodalidade, perscrutar os sinais dos tempos, sem prescindir do fundamental no ensinamento de Cristo – tudo o que brota do preceito divino do Amor – e mostra total desapego em relação a questões de mera formalidade, autorreferência e manutenção de estruturas obsoletas de status e poder.
Assim, ao desejar ouvir as famílias, a juventude, os povos amazónicos, outras tradições religiosas, ao expor-se sem intermediário ante perguntas e questionamentos jornalísticos, de intelectuais e de agentes de diversos campos da sociedade, tenta ouvir o Espírito e auscultar os tempos. E, ao exortar as paróquias a que não funcionem como alfândegas pastorais, a que os templos mantenham as portas abertas a todos, e a que a chaga do abuso sexual de jovens e crianças venha à luz dia para ser eficazmente prevenida e curada, Francisco é o Papa sem medo.
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A passagem dos Atos dos Apóstolos tomada como 1.ª leitura a proclamar e a meditar no 6.º domingo da Páscoa (At 15,1-2.22-29) patenteia como a Igreja Primitiva teve de resolver um problema cujo cenário os apóstolos não tinham claramente depreendido dos ensinamentos do Mestre: a obrigatoriedade ou não da circuncisão aquando do acolhimento de membros não judeus na comunidade cristã. Reunidas em concílio, as lideranças, atentas ao Espírito Santo e munidas do sensus Ecclesiae, concluíram, audaz e corajosamente, que, apesar de aquele ritual ter sido relevante na cultura semita, não deveria ser atrelado ao seguimento de Jesus. A porta e dato de entrada na comunidade dos “santos” é o Batismo, que nos incorpora em Cristo.
Como refere Dom António Couto, Venerando Bispo de Lamego, a lição desta passagem bíblica leva-nos ao Concílio de Jerusalém, em que os Apóstolos, nomeadamente Pedro e Paulo e Tiago se deram as mãos, em sinal de comunhão, para que o Evangelho fosse levado a todos os corações, pois “o que importa é o Evangelho, e não as nossas maneiras diferentes de pensar”.
Por seu turno, Frei Ludovico Garmus salienta, no episódio, o facto de a paz e a alegria da comunidade terem sido perturbadas por alguns judeo-cristãos (os judaizantes), que pretendiam obrigar os gregos convertidos a circuncidarem-se, pois, como sustentavam, sem a observância da Lei de Moisés, ninguém poderia ser salvo. Paulo e Barnabé, contudo, defendiam que os pagãos não precisavam de se tornar judeus para serem cristãos. Por isso, a comunidade antioquena formou uma comissão liderada por Paulo e Barnabé contra a obrigação da lei de Moisés, que levou questão a Jerusalém para ser resolvida pelos apóstolos e anciãos. Foram ouvidas ambas as partes e a questão foi discutida perante os anciãos e os apóstolos. E foi o Espírito Santo que os levou a tomar a decisão. Na verdade, a carta onde ficou exarada a deliberação refere: “Decidimos o Espírito Santo e nós”. Este “nós” inclui os apóstolos, os anciãos e os cristãos, as lideranças dos judeo-cristãos e dos cristãos gregos. Superando as diferenças étnicas e culturais, o Espírito guia o diálogo e une todos na mesma comunhão de fé e amor. Assim, os pagãos convertidos não foram obrigados à circuncisão (cortou-se o cordão umbilical com o judaísmo). Pediu-se-lhes (28-29), por deferência para com os judeo-cristãos, a abstenção de carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões matrimoniais ilegítimas (cf 1Cor 10,23-33): princípios de convivência nas diferenças culturais ao tempo. E ficou assente que a Boa Nova não se acorrenta a uma cultura, mas encarna-se nas mais diferentes culturas, pois é Cristo encarnado, como manifestação suprema do amor de Deus, que nos une (já a escolha dos diáconos surgiu para criar a equidade nas mesas das viúvas dos dois grupos).  
Assim se compreende que, se tudo o que é novo provoca crises e divisões, também traz a alegria da salvação. E é urgente voltar ao dinamismo dos alvores do cristianismo, assim descrito:
No termo da primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé relataram o êxito da mensagem do Evangelho, sobretudo, entre os pagãos. A comunidade de antioquena da Síria, formada por judeus e pagãos convertidos alegrou-se com o sucesso da missão. Era florescente aquela primeira comunidade fundada fora da Judeia por cristãos que fugiram da perseguição após o martírio do diácono Estêvão e que começaram a pregar o Evangelho apenas para os judeus, mas passando outros a pregar diretamente também aos gregos (cf At 11,19-26). Sabendo da novidade, a Igreja de Jerusalém enviou Barnabé a Antioquia para aferir essa pregação do Evangelho diretamente aos pagãos. Barnabé, “homem bom, cheio de Espírito Santo e de fé” (At 11,24), ficou encantado com a nova Igreja de judeus e pagãos convertidos e animava-os a perseverarem firmes na fé. Depois, chamou Saulo de Tarso e os dois permaneceram em Antioquia um ano, instruindo “muita gente” na fé. Vendo as qualidades e o entusiasmo de Barnabé e Saulo e o sucesso da pregação do Evangelho entre os gregos, por inspiração do Espírito Santo, a Igreja de Antioquia enviou-os em missão para a Ásia Menor. Entretanto, a par da expansão missionária, o número de cristãos em Antioquia aumentava a cada dia, tal como nos primórdios em Jerusalém.
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A passagem do Apocalipse (Ap 21,10-14.22-23), assumida como 2.ª leitura na liturgia deste domingo, reitera, segundo Dom António Couto, “a imagem da Igreja bela, vestida por Deus, alumiada por Deus, tu a tu com Deus, sem a mediação de um templo material”.
Frei Ludovico Garmus recorda a visão do 5.º domingo que anuncia o “novo céu e a nova terra”, e a Jerusalém celeste a descer de Deus, bela como a noiva que vai ao encontro de seu noivo. E Cristo, o Cordeiro imolado, dizia: “Eis que faço novas todas as coisas”. É o quadro de beleza e renovação. Desta feita, um dos sete anjos convida o vidente a conhecer a noiva: “Vem! Vou mostrar-te a esposa do Cordeiro” (21,9). E, recorrendo ao texto do profeta Ezequiel (Ez 40 – 48), descreve o esplendor da cidade santa. Os fundamentos das muralhas são os doze apóstolos que testemunharam a fé no Cordeiro (o esposo), morto por nós e ressuscitado. Na Jerusalém terrestre Deus morava no templo. Porém, a cidade santa não haverá templo, porque o próprio Deus será o Templo. Nela se abrigarão todos os que deram testemunho da sua fé, mesmo com a própria vida, milhões e milhões de fiéis resgatados pelo sangue do Cordeiro (Ap 7,1-17). Deus veio morar entre nós e em cada um de nós. Encarnou-se no seio da Virgem Maria e armou a sua tenda para habitar no meio de nós (cf Jo 1,14) e nos introduzir no Templo celeste, que é o próprio Deus.
É o quadro da “Jerusalém messiânica”, em que domina o número “doze”: na base da muralha há 12 reforços salientes com os 12 nomes dos Apóstolos do Cordeiro; a cidade tem 12 portas (cada porta é uma pérola), 12 pérolas (três a nascente, três ao norte, três ao sul e três a poente), em que estão gravados os nomes das 12 tribos de Israel; há 12 anjos junto das portas. O número “doze” indica a totalidade do Povo de Deus (12 tribos + 12 Apóstolos): ela está fundada sobre os 12 Apóstolos-testemunhas do “cordeiro” (cada um dos 12 alicerces está incrustado numa pedra preciosa, ao todo 12) – mas integra a totalidade do Povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento, conduzido à vida plena pela ação libertadora de Cristo. As portas, viradas para os quatro pontos cardeais, indicam que todos os povos (vindos do norte, do sul, de este e do oeste) podem entrar e encontrar lugar nesse lugar de felicidade plena. E, no desenvolvimento que o texto desta dominga omite (vv 15-17) – mas espelhado na reflexão dos dehonianos –, apresentam-se as dimensões desta cidade: 144 côvados (12 x 12), formando quadrado perfeito, o que mostra que a cidade (perfeita, harmoniosa) está traçada segundo o modelo bíblico do “santo dos santos” (cf 1 Rs 6,19-20): a cidade inteira aparece, assim, como um Templo dedicado a Deus, onde Deus reside de forma permanente no meio do Povo. Ao referir que toda a cidade está banhada de luz, o Apocalipse testemunha presença de Deus, já que a luz indica a presença divina (cf Is 2,5; 24,23; 60,19): Deus e o “Cordeiro” serão a luz que ilumina esta comunidade de vida plena. É por isso que os vv 22-23 asseguram que a cidade não tem Templo. Com efeito, nesse lugar de vida plena, o homem não tem necessidade de mediações, pois verá Deus face a face e viverá sempre na sua presença.
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Por fim, o texto o Evangelho do 6.º domingo da Páscoa (Jo 14,23-29) situa-se no que Dom António Couto designa por “monumental Testamento” que “Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos” (Jo 13,12-17,26). Numa tessitura, cujas linhas temático-construtivas, no dizer poético do prelado lamecense “vêm e refluem e voltam a vir, à maneira das ondas do mar que vêm sobre a praia, refluem e voltam”, emerge a segunda das cinco referências de Jesus à Vinda do Espírito Santo, Paráclito (paráklêtos), o Defensor, Consolador, Intercessor e Intérprete (as cinco referências de Jesus ao envio do Espírito Santo, sempre feitas no futuro, são: Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15). E refere Dom António:
Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte permanente de comunicação, compreensão e comunhão”.
De facto “cada um os ouvia falar na sua própria língua” (At 2,6). E o prelado conclui:
O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes entre nós uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, que destrói todos os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões.”.
Por sua vez, Ludovico Garmus insiste em que Jesus continua a falar do amor, que nos une a Cristo, ao Pai e ao Espírito Santo, ou seja, que nos mergulha no mistério da Trindade – amor fiel e gratuito da parte de Deus e que postula da nossa parte a guarda da sua palavra. Quando observamos o preceito do amor a exemplo de Jesus, somos introduzidos na família divina. Após a última ceia, ia cumprir-se a exaltação de Jesus na sua morte, ressurreição e ascensão aos céus. Por isso, Jesus fala do Espírito Santo, “que o Pai enviará em meu nome” e através de quem Jesus continua a ensinar-nos: “Ele vos ensinará e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. Recordará e ensinará sempre o mandamento do amor, dado por Jesus. A paz que Jesus nos deixa vem da fé e do amor (não é igual à que o mundo tem e dá), pois, quando vivemos o amor a exemplo de Jesus, tornamo-nos a morada da Santíssima Trindade: “Se alguém me ama – diz Jesus –, guarda minha palavra; meu Pai o amará, viremos a ele e nele faremos nossa morada” (14,23). Deus veio morar connosco: “A Palavra Se fez carne”, isto é, “armou a sua tenda entre nós” (Jo 1,14). De futuro, não haverá templo, o próprio Deus será o Templo e acolherá todos os que vivem no seu amor, para que vivamos para sempre em sua companhia (2.ª leitura, v. 22). A escuta e a prática do mandamento do amor colocam-nos em comunhão com Deus.
Dom António Couto considera que “o primeiro enviado do Pai é o Filho Jesus, que cumpre e revela o conteúdo da própria missão” e que “o segundo enviado é o Paráclito”. Assim, o Pai é “o enviante”, ao passo que “o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos “enviados”, ‘as duas mãos do Pai’, no belo dizer de Ireneu”. Além disso, o prelado ressalta a semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o Filho: “ambas são expressas pelo mesmo verbo enviar” (pémpô). A par disso, salienta diferenças, referindo que a primeira está no facto de que, em relação ao Filho, o verbo “enviar” está no passado, ao passo que se encontra no futuro em relação ao Paráclito. E explica:
O envio de Jesus pelo Pai já se realizou [“o Pai que me enviou”: João 5,23.37; 6,44; 8,16.18; 12,49; 14,24; “Aquele que me enviou”: João 4,34; 5,24.30; 6,38.39.40; 7,16.28.33; 8,26.29; 9,4; 12,44-45; 13,20; 15,21; 16,5], enquanto o envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se [“o Pai enviá-lo-á no meu nome”: João 14,26], do mesmo modo que a sua tarefa de ensinar e de recordar aparece igualmente enunciada no futuro”.
Depois, vê a segunda diferença no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo Pai, sem intermediários, enquanto o envio do Paráclito é feito pelo Pai mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão ‘no meu nome’. E parte para a explicação sobre o que se passa com o verbo ‘dar’ (dídômi), por analogia com o que se passa com o verbo ‘enviar’:   
“Deus (…) deu o seu Filho unigénito” (João 3,16), e ‘dará a vós outro Paráclito’ a pedido de Jesus (João 14,16). Mas em relação ao Paráclito, o próprio Jesus é por duas vezes sujeito do verbo “enviar”: “Eu enviá-lo-ei de junto do Pai” (João 15,26); “Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós” (João 16,7).
Mas sublinha António Couto que, ao dizer que “o Pai enviará o Paráclito, o Espírito Santo, em seu nome (cf Jo 14,26), isto é, mediante a sua intervenção, Jesus afirma igualmente que não diz senão a Palavra do Pai” (cf Jo 14,24) e que “o Espírito Santo também não falará de Si mesmo, mas apenas o que tiver ouvido” (Jo 16,13). Nestes termos, “o Espírito Santo, que será enviado, ensinará todas as coisas e recordará tudo o que disse Jesus” (cf Jo 14,26), ou seja, em palavras de Jesus: “Receberá do que é meu e vos anunciará” (Jo 16,14). E, neste texto do Evangelho, Jesus fala ainda do amor, da escuta qualificada da Palavra, da habitação de Deus em nós, no meio de nós, da paz por Ele dada – diferente da paz que o mundo dá e como o mundo a dá. Na verdade, diz o prelado lamecense, o Espírito Santo faz nascer em nós esta transparência luminosa e maravilhosa. Luz que alumia, e não engana, Amor, só Amor, nada mais que Amor.
Por tudo isto, virá a propósito a oração de bênção em forma peticionária do Salmo 67 (66), que o Bispo de Lamego considera, em termos técnicos equivalente a uma epíclese: não “eu te bendigo”, mas “Deus nos bendiga”. E, neste sentido, explica:
O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, ‘democratizando’ a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel. Diz, de forma absolutamente maravilhosa, o velho comentário rabínico aos Salmos, dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no Sinai para fazer aliança com Deus, ‘o ventre das mulheres grávidas se tornou transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com Ele’.”.
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A visão da cidade celeste, a lição dos Atos dos Apóstolos e o amor de Deus desenvolvido e matizado em João poderão servir de inspiração para o estudo audaz e corajoso de matérias como a ordenação diaconal e presbiteral de mulheres, a ordenação presbiteral de homens casados, o sínodo para os povos amazónicos, a generalização da comunidades de base, entre outras.
2019.05.25 – Louro de Carvalho

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