Hoje está
patente como desafio para a Igreja a necessidade de, na linha da refontalização,
beber da sabedoria primitiva e rever, em serena reflexão e diálogo franco e
transparente, doutrinas e regras que podem ser reformuladas à luz dos sinais
dos tempos. Com efeito, as leis e tradições são estabelecidas como oferta, não
absoluta, de respostas de vida e de libertação aos apelos e confrontos da
realidade de cada tempo e lugar, sem que se caia no mero circunstancialismo.
Neste
aspeto, como assegura Frei Gustavo
Medella, o Papa Bergoglio, cujo pontificado vem marcado pela disponibilidade
e liberdade do Pastor, mostra a audácia de não se furtar a abrir os ouvidos e o
coração para escutar, acolher e discernir os apelos da humanidade que ressoam
no seio da Igreja. Obviamente o Pontífice não negoceia soluções, mas tenta, em
regime de abertura ao Espírito Santo, que guia e anima a Igreja, e de
sinodalidade, perscrutar os sinais dos tempos, sem prescindir do fundamental no
ensinamento de Cristo – tudo o que brota do preceito divino do Amor – e mostra
total desapego em relação a questões de mera formalidade, autorreferência e
manutenção de estruturas obsoletas de status
e poder.
Assim, ao
desejar ouvir as famílias, a juventude, os povos amazónicos, outras tradições
religiosas, ao expor-se sem intermediário ante perguntas e questionamentos
jornalísticos, de intelectuais e de agentes de diversos campos da sociedade,
tenta ouvir o Espírito e auscultar os tempos. E, ao exortar as paróquias a que não
funcionem como alfândegas pastorais, a que os templos mantenham as portas
abertas a todos, e a que a chaga do abuso sexual de jovens e crianças venha à
luz dia para ser eficazmente prevenida e curada, Francisco é o Papa sem medo.
***
A passagem
dos Atos dos Apóstolos tomada como 1.ª leitura a proclamar e a meditar no 6.º
domingo da Páscoa (At 15,1-2.22-29) patenteia como a Igreja Primitiva teve de resolver
um problema cujo cenário os apóstolos não tinham claramente depreendido dos
ensinamentos do Mestre: a obrigatoriedade ou não da circuncisão aquando do
acolhimento de membros não judeus na comunidade cristã. Reunidas em concílio,
as lideranças, atentas ao Espírito Santo e munidas do sensus Ecclesiae, concluíram, audaz e corajosamente, que, apesar de
aquele ritual ter sido relevante na cultura semita, não deveria ser atrelado ao
seguimento de Jesus. A porta e dato de entrada na comunidade dos “santos” é o
Batismo, que nos incorpora em Cristo.
Como refere
Dom António Couto, Venerando Bispo de Lamego, a lição desta passagem bíblica leva-nos ao Concílio
de Jerusalém, em que os Apóstolos, nomeadamente Pedro e Paulo e Tiago se deram
as mãos, em sinal de comunhão, para que o Evangelho fosse levado a todos os
corações, pois “o que importa é o Evangelho, e não as nossas maneiras
diferentes de pensar”.
Por seu turno, Frei Ludovico Garmus salienta, no episódio, o
facto de a paz e a alegria da comunidade terem sido perturbadas por alguns judeo-cristãos
(os judaizantes), que pretendiam obrigar os gregos
convertidos a circuncidarem-se, pois, como sustentavam, sem a observância da
Lei de Moisés, ninguém poderia ser salvo. Paulo e Barnabé, contudo, defendiam
que os pagãos não precisavam de se tornar judeus para serem cristãos. Por isso,
a comunidade antioquena formou uma comissão liderada por Paulo e Barnabé contra
a obrigação da lei de Moisés, que levou questão a Jerusalém para ser resolvida
pelos apóstolos e anciãos. Foram ouvidas ambas as partes e a questão foi
discutida perante os anciãos e os apóstolos. E foi o Espírito Santo que os
levou a tomar a decisão. Na verdade, a carta onde ficou exarada a deliberação
refere: “Decidimos o Espírito Santo e nós”. Este “nós” inclui os apóstolos, os
anciãos e os cristãos, as lideranças dos judeo-cristãos e dos cristãos gregos. Superando as diferenças étnicas e culturais,
o Espírito guia o diálogo e une todos na mesma comunhão de fé e amor. Assim, os pagãos convertidos não foram obrigados à
circuncisão (cortou-se o
cordão umbilical com o judaísmo). Pediu-se-lhes (28-29), por deferência para com os judeo-cristãos,
a abstenção de carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais
sufocados e das uniões matrimoniais ilegítimas (cf 1Cor 10,23-33): princípios de convivência nas diferenças culturais ao
tempo. E ficou assente que a Boa Nova não se acorrenta a uma cultura,
mas encarna-se
nas mais diferentes culturas, pois é Cristo encarnado, como manifestação suprema do amor
de Deus, que nos une (já
a escolha dos diáconos surgiu para criar a equidade nas mesas das viúvas dos dois
grupos).
Assim
se compreende que, se tudo o que é novo provoca crises e divisões, também traz a alegria da
salvação. E é urgente voltar ao dinamismo dos alvores do cristianismo, assim
descrito:
No termo da
primeira viagem missionária, Paulo e Barnabé relataram o êxito da mensagem do
Evangelho, sobretudo, entre os pagãos. A comunidade de antioquena da Síria,
formada por judeus e pagãos convertidos alegrou-se com o sucesso da missão. Era
florescente aquela primeira comunidade fundada fora da Judeia por cristãos que
fugiram da perseguição após o martírio do diácono Estêvão e que começaram a
pregar o Evangelho apenas para os judeus, mas passando outros a pregar
diretamente também aos gregos (cf At 11,19-26).
Sabendo da novidade, a Igreja de Jerusalém enviou Barnabé a Antioquia para
aferir essa pregação do Evangelho diretamente aos pagãos. Barnabé, “homem bom,
cheio de Espírito Santo e de fé” (At 11,24), ficou encantado com a nova Igreja de judeus e pagãos convertidos e
animava-os a perseverarem firmes na fé. Depois, chamou Saulo de Tarso e os dois
permaneceram em Antioquia um ano, instruindo “muita gente” na fé. Vendo as
qualidades e o entusiasmo de Barnabé e Saulo e o sucesso da pregação do
Evangelho entre os gregos, por inspiração do Espírito Santo, a Igreja de
Antioquia enviou-os em missão para a Ásia Menor. Entretanto, a par da expansão
missionária, o número de cristãos em Antioquia aumentava a cada dia, tal como
nos primórdios em Jerusalém.
***
A passagem do Apocalipse (Ap 21,10-14.22-23), assumida como 2.ª leitura na
liturgia deste domingo, reitera, segundo Dom António Couto, “a imagem da Igreja
bela, vestida por Deus, alumiada por Deus, tu a tu com Deus, sem a mediação de
um templo material”.
Frei Ludovico Garmus recorda a visão do 5.º domingo que anuncia o
“novo céu e a nova terra”, e a Jerusalém celeste a descer de Deus, bela como a
noiva que vai ao encontro de seu noivo. E Cristo, o Cordeiro imolado, dizia: “Eis que faço novas todas as coisas”.
É o quadro de beleza e renovação. Desta feita, um dos sete anjos convida o
vidente a conhecer a noiva: “Vem! Vou
mostrar-te a esposa do Cordeiro” (21,9).
E, recorrendo ao texto do profeta Ezequiel (Ez 40 – 48), descreve o esplendor da cidade santa. Os fundamentos das muralhas são
os doze apóstolos que testemunharam a fé no Cordeiro (o esposo), morto por nós e ressuscitado. Na Jerusalém
terrestre Deus morava no templo. Porém, a cidade santa não haverá templo, porque o próprio Deus será o Templo. Nela se abrigarão todos os que
deram testemunho da sua fé, mesmo com a própria vida, milhões e milhões de
fiéis resgatados pelo sangue do Cordeiro (Ap 7,1-17). Deus veio morar entre nós e em cada um de nós. Encarnou-se no seio da
Virgem Maria e armou a sua tenda para habitar no meio de nós (cf Jo 1,14) e nos introduzir no Templo celeste,
que é o próprio Deus.
É o quadro da
“Jerusalém messiânica”, em que domina o número “doze”: na base da muralha há 12
reforços salientes com os 12 nomes dos Apóstolos do Cordeiro; a cidade tem 12
portas (cada porta é uma pérola), 12 pérolas (três a nascente, três ao norte, três
ao sul e três a poente),
em que estão gravados os nomes das 12 tribos de Israel; há 12 anjos junto das
portas. O número “doze” indica a totalidade do Povo de Deus (12 tribos + 12 Apóstolos): ela está fundada sobre os 12
Apóstolos-testemunhas do “cordeiro” (cada um dos 12 alicerces está incrustado numa pedra preciosa,
ao todo 12) – mas
integra a totalidade do Povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento, conduzido
à vida plena pela ação libertadora de Cristo. As portas, viradas para os quatro
pontos cardeais, indicam que todos os povos (vindos do norte, do sul, de este e do oeste) podem entrar e encontrar lugar nesse
lugar de felicidade plena. E, no desenvolvimento que o texto desta dominga
omite (vv 15-17) – mas espelhado na reflexão dos dehonianos –,
apresentam-se as dimensões desta cidade:
144 côvados (12 x 12), formando quadrado perfeito, o que
mostra que a cidade (perfeita,
harmoniosa) está traçada
segundo o modelo bíblico do “santo dos santos” (cf 1 Rs 6,19-20): a cidade inteira aparece, assim,
como um Templo dedicado a Deus, onde Deus reside de forma permanente no meio do
Povo. Ao referir que toda a cidade está banhada de luz, o Apocalipse testemunha
presença de Deus, já que a luz indica a presença divina (cf Is 2,5; 24,23; 60,19): Deus e o “Cordeiro” serão a luz que ilumina esta comunidade
de vida plena. É por isso que os vv 22-23 asseguram que a cidade não tem
Templo. Com efeito, nesse lugar de vida plena, o homem não tem necessidade de
mediações, pois verá Deus face a face e viverá sempre na sua presença.
***
Por fim,
o texto o Evangelho do 6.º domingo da Páscoa (Jo
14,23-29)
situa-se no que Dom António Couto designa por “monumental Testamento” que
“Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos” (Jo
13,12-17,26). Numa
tessitura, cujas linhas temático-construtivas, no dizer poético do prelado
lamecense “vêm e refluem e voltam a vir, à maneira das ondas do mar que vêm
sobre a praia, refluem e voltam”, emerge a segunda das cinco referências de
Jesus à Vinda do Espírito Santo, Paráclito (paráklêtos),
o Defensor, Consolador, Intercessor e Intérprete (as
cinco referências de Jesus ao envio do Espírito Santo, sempre feitas no futuro,
são: Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15). E refere Dom António:
“Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos
rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas
Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte
permanente de comunicação, compreensão e comunhão”.
De facto
“cada um os ouvia falar na sua própria língua” (At 2,6).
E o prelado conclui:
“O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes entre nós
uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, que destrói todos
os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões.”.
Por sua vez, Ludovico Garmus insiste em que Jesus continua a falar do amor, que nos
une a Cristo, ao Pai e ao Espírito Santo, ou seja, que nos mergulha no mistério da Trindade –
amor fiel e gratuito da parte de Deus e que postula da nossa parte a guarda da sua palavra. Quando observamos o preceito do
amor a exemplo de Jesus, somos introduzidos na família divina. Após a última ceia, ia cumprir-se
a exaltação de Jesus na sua morte, ressurreição e ascensão aos céus. Por isso,
Jesus fala do Espírito Santo, “que o Pai
enviará em meu nome” e através de quem Jesus continua a ensinar-nos: “Ele vos ensinará e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”.
Recordará e ensinará sempre o mandamento do amor, dado por Jesus. A paz que
Jesus nos deixa vem da fé e do amor (não é igual à que o mundo tem e dá), pois, quando vivemos o amor a
exemplo de Jesus, tornamo-nos a morada da Santíssima
Trindade: “Se alguém me ama – diz Jesus –, guarda minha palavra; meu Pai o amará,
viremos a ele e nele faremos nossa morada” (14,23). Deus veio morar connosco: “A Palavra Se fez carne”, isto é, “armou a sua
tenda entre nós” (Jo 1,14). De futuro, não haverá templo, o
próprio Deus será o Templo e acolherá todos os que vivem no seu amor, para que
vivamos para sempre em sua companhia (2.ª leitura, v. 22). A escuta e a prática do mandamento do amor colocam-nos em
comunhão com Deus.
Dom António
Couto considera que “o primeiro enviado do Pai é o Filho Jesus, que cumpre e
revela o conteúdo da própria missão” e que “o segundo enviado é o Paráclito”.
Assim, o Pai é “o enviante”, ao passo que “o Filho e o Espírito são, em relação
ao Pai, ambos “enviados”, ‘as duas mãos do Pai’, no belo dizer de Ireneu”. Além
disso, o prelado ressalta a semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com
a relação entre o Pai e o Filho: “ambas são expressas pelo mesmo verbo enviar” (pémpô). A par disso, salienta diferenças,
referindo que a primeira está no facto de que, em relação ao Filho, o verbo “enviar”
está no passado, ao passo que se encontra no futuro em relação ao Paráclito. E
explica:
“O envio de Jesus pelo Pai já se realizou [“o Pai que me enviou”: João 5,23.37;
6,44; 8,16.18; 12,49; 14,24; “Aquele que me enviou”: João 4,34; 5,24.30;
6,38.39.40; 7,16.28.33; 8,26.29; 9,4; 12,44-45; 13,20; 15,21; 16,5], enquanto o
envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se [“o Pai enviá-lo-á
no meu nome”: João 14,26], do mesmo modo que a sua tarefa de ensinar e de
recordar aparece igualmente enunciada no futuro”.
Depois,
vê a segunda diferença no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo
Pai, sem intermediários, enquanto o envio do Paráclito é feito pelo Pai
mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão ‘no meu nome’. E parte para a explicação sobre o que se passa com o
verbo ‘dar’ (dídômi), por analogia com o que se passa com o verbo ‘enviar’:
“Deus
(…) deu o seu Filho unigénito” (João 3,16), e ‘dará a vós outro Paráclito’ a
pedido de Jesus (João 14,16). Mas em relação ao Paráclito, o próprio Jesus é por
duas vezes sujeito do verbo “enviar”: “Eu enviá-lo-ei de junto do Pai” (João
15,26); “Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós” (João 16,7).
Mas
sublinha António Couto que, ao dizer que “o Pai enviará o Paráclito, o Espírito
Santo, em seu nome (cf
Jo
14,26), isto é,
mediante a sua intervenção, Jesus afirma igualmente que não diz senão a Palavra
do Pai” (cf
Jo 14,24) e que “o Espírito
Santo também não falará de Si mesmo, mas apenas o que tiver ouvido” (Jo
16,13). Nestes
termos, “o Espírito Santo, que será enviado, ensinará todas as coisas e recordará
tudo o que disse Jesus” (cf Jo 14,26), ou seja, em palavras de Jesus:
“Receberá do que é meu e vos anunciará”
(Jo
16,14). E, neste
texto do Evangelho, Jesus fala ainda do amor, da escuta qualificada da Palavra,
da habitação de Deus em nós, no meio de nós, da paz por Ele dada – diferente da
paz que o mundo dá e como o mundo a dá. Na verdade, diz o prelado lamecense, o
Espírito Santo faz nascer em nós esta transparência luminosa e maravilhosa. Luz
que alumia, e não engana, Amor, só Amor, nada mais que Amor.
Por tudo
isto, virá a propósito a oração de bênção em forma peticionária do Salmo 67 (66), que o Bispo de Lamego
considera, em termos técnicos equivalente a uma epíclese: não “eu te bendigo”, mas “Deus nos bendiga”. E, neste sentido,
explica:
“O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26,
como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o
singular, por assim dizer, ‘democratizando’ a bênção, agora dirigida a todos,
onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel. Diz,
de forma absolutamente maravilhosa, o velho comentário rabínico aos Salmos,
dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no
Sinai para fazer aliança com Deus, ‘o ventre das mulheres grávidas se tornou
transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com
Ele’.”.
***
A visão
da cidade celeste, a lição dos Atos dos Apóstolos e o amor de Deus desenvolvido
e matizado em João poderão servir de inspiração para o estudo audaz e corajoso de
matérias como a ordenação diaconal e presbiteral de mulheres, a ordenação
presbiteral de homens casados, o sínodo para os povos amazónicos, a
generalização da comunidades de base, entre outras.
2019.05.25 –
Louro de Carvalho
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