Segundo
notícia veiculada pelo JN, de 1 de
abril, o Delegado Regional de Educação do Norte, Dr. José Mesquita decidiu
“proibir a realização de uma missa da Páscoa em instalações do Agrupamento de
Escolas de Alfândega da Fé” e entende que “o ensaio de cânticos religiosos nas
aulas de Educação Musical, tendo em vista os alunos naquela missa, também devia
ter sido evitado”.
Do ponto de
vista administrativo e até pedagógico, percebo a determinação. No entanto, as
justificações dadas e os contornos que a informação ganhou no DN depois levam-me a um comentário tão
esclarecedor quanto reiterante do que tenho pensado e exposto.
O Delegado
Regional argumenta com “o princípio da laicidade a que deve obedecer qualquer
organismo público”. Alegadamente a decisão do hierarca vem dar resposta “a uma
mãe que não gostou de saber que a filha, de oito anos, passava as aulas de
Educação Musical (EM) a ensaiar
cânticos religiosos” (sic).
É claro que
a mãe está a mentir, dado que a aula de Educação Musical não consta do
currículo do 1.º ciclo do ensino básico e não creio que uma criança de 8 anos
frequente o 2.º ciclo. O Dr. José Mesquita deve saber isto, mesmo que a mãe o não
saiba.
Quanto ao
princípio da laicidade que dizem que o Estado professa, gostaria de que fosse mesmo
verdade o Estado sentir-se “leigo” ou “laico” enquanto membro e provedor do
povo (do laós grego), em certa medida como o Dr. Mário Soares. Aqui, peço aos digníssimos
mentores da opinião pública que mudem de tática ou que alterem o vocabulário
grego. Vamos lá a ver se pedem uma ajudinha ao professor Frederico Lourenço,
que tanto admiram (E eu também!). O que o
nosso Estado é – atente-se nisto – é aconfessional. Nestes termos, o Estado
professa uma neutralidade confessional e
proíbe toda e qualquer identificação ou preferência religiosa, bem como qualquer
ingerência religiosa na organização ou governo do Estado ou dos poderes
públicos, não podendo estes assumir ou desempenhar quaisquer funções ou
encargos religiosos. Por outro lado, garante o estatuto das igrejas e
confissões religiosas, bem como a não ingerência do Estado na organização das
igrejas e no exercício das suas funções e do culto, não podendo os poderes
públicos intervir nessas áreas.
Assim,
o art.º 41.º da CRP estabelece, no seu n.º 4, que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e
são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”. É
um princípio republicano que só beneficia as Igrejas, mas não impede a coexistência,
a interação e a cooperação.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (1984) consideram que este preceito dá expressão ao princípio da
separação entre o Estado e as igrejas, inerente à dimensão republicana do
Estado. Como corolários imediatos deste princípio vêm o princípio da aconfessionalidade do Estado e o da liberdade de organização e independência das
igrejas e confissões religiosas. No entanto, frisam que a não confessionalidade
do ensino público é corolário óbvio e direto dos princípios da não
confessionalidade da educação e da cultura (“o
ensino é apenas uma expressão particular da educação e, ainda mais da cultura”) e da não confessionalidade
do Estado.
No atinente à educação e à cultura, que é o que está
diretamente em causa na escola, o n.º 2 do art.º 43.º da CRP preceitua que “o Estado não pode
programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas”. E o
n.º 3 do mesmo artigo estabelece que “o
ensino público não será confessional”.
O
Dr. Mesquita só viu o adjetivo “religiosas”. E, como tal, talhou o
politicamente correto, não podendo haver missa no polivalente da escola. Esquece
que toda a programação curricular e disciplinar é feita pelo ME (Ministério
da Educação),
organismo do Estado e manda o art.º 43.º às malvas. E, que eu saiba, ninguém
contesta, por exemplo, a corrente neomalthusiana que enforma alguns programas. Quando
muito, esquerda e direita acusam-se mútua e vagamente de porfiarem a inoculação
de teses neoliberais ou teses marxistas em alguns programas, mas nada em
concreto. Já o programa de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) obviamente tem um fortemente
cariz religioso e católico, mas não é elaborado pelo Estado e, sim, pelos
serviços da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) e revela-se bem mais arejado e
aberto que o de algumas disciplinas programadas pelo ME.
Se
continuarmos a citar Gomes Canotilho e Vital
Moreira, diremos que o Estado deve “proibir o ensino de religião como elemento
integrante do ensino público”, mas “sem prejuízo de o Estado poder facultar às
igrejas em pé de igualdade, a possibilidade de estas ministrarem ensino da
religião nas escolas públicas”. E aqui temos a concordata de 2004, que o Estado
celebrou com a Santa Sé e que foi devidamente ratificada, bem como a Lei da
Liberdade Religiosa, que garante às confissões não católicas direito semelhante
ao da Igreja Católica.
***
No caso em apreço, o Delegado Regional foi informado de que o
evento constava do plano de atividades da disciplina, que integra o do
Agrupamento com a aprovação dos competentes órgãos. Obviamente que o hierarca
terá infringido o princípio da autonomia do Agrupamento, pois, por mais que lhe
custe, são instrumentos da autonomia, entre outros, os:
“Planos anual e plurianual de atividades – os
documentos de planeamento, que definem, em função do projeto educativo, os
objetivos, as formas de organização e de programação das atividades e que
procedem à identificação dos recursos necessários à sua execução” – vd alínea
c) do n.º 1 do art.º 9.º do DL n.º 75/2008, de 22 de abril, na atual redação.
O Agrupamento só estaria a agir mal se tivesse imposto o
evento a todos os alunos ou mandasse inquirir sobre a opção religiosa e de
prática de culto de alguém, caso em que iria contra o preceito constitucional
plasmado no n.º 3 do art.º 41.º da CRP, que prescreve:
“Ninguém pode ser
perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados
estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder”.
De resto, deveria anotar alguma reclamação de quem
eventualmente não concordasse, respeitar a opção inicial de declaração de
matrícula na EMRC (Para quê uma nova
autorização expressa?) e garantir ocupação dos alunos que não participassem no
evento religioso.
O Agrupamento acatou e transferiu a celebração para a igreja
matriz de Alfândega da Fé. A missa, no dizer do hierarca, só podia ocorrer em
lugar exterior. Olha se o Presidente da Câmara, invocando a laicidade, a proibia
na rua! E, se fosse em Santa Maria da Feira, mandar os alunos para a igreja
matriz era bem incómodo.
Esquecemos que a aconfessionalidade atualmente se
compatibiliza com o princípio da mútua cooperação. E, no atinente à escola,
para que se estabelecem parcerias com todo o tipo de entidades públicas e
privadas? Vão lá os fotógrafos, os artistas, os escritores… Porque fazem
peditórios à porta das igrejas e põem bombeiros e GNR a falar nas missas sobre
incêndios florestais? Não está em causa o bem comum? Laicos, laicos e laicos,
mas visitam bispos em campanha eleitoral; pedem o favor de avisos aos padres; ocuparam
igrejas e conventos instalando lá militares e serviços do Estado. E, contra a
concordata, tentam cobrar IMI às igrejas e ao património dos pobres (um imposto municipal) … E querem igrejas para espetáculo com peças dramáticas e
composições musicais religiosas… Reúnem em S. Bento, vão para S.ta Engrácia!
Digo tudo isto, mas por uma razão de estética, prefiro a
missa na igreja matriz ou noutra similar!
***
Por seu
turno, o DN informa que os alunos duma
escola básica do Alentejo andaram a ensaiar o hino do PCP para uma celebração
dos 100 anos da revolução russa que deveria realizar-se na escola em pleno
horário letivo. E dizem que o caso, que já mereceu críticas dos pais, pode não
ser único. O presidente da associação de diretores terá admitido tratar-se
situações pontuais. Porém, segundo os pais duma aluna – que denunciaram o caso –
(outra vez só
uma aluna), os encarregados de educação não
autorizaram a prática partidária. Questionado, o ME terá dito que
“A participação de alunos em
cerimónias partidárias – mesmo aquelas que eventualmente decorram em período
escolar – é permitida e gerida no quadro de autonomia de cada escola”.
E terá acrescentado
que
“Obviamente, nenhuma criança ou
jovem pode ser obrigada a participar nessas cerimónias, sendo obrigatório o
consentimento expresso dos pais ou encarregados de educação”.
Por mais
estranho que pareça, e eu não sou do PCP, não é irrelevante para a História a
celebração do centenário da revolução russa como não o é a celebração do
centenário de Fátima, o tricentenário da Aparecida ou os 500 anos da Reforma
cristã. Se estes centenários se devem celebrar com o hino do PCP ou o do
Vaticano, é outra cantiga. Mas os alunos de História não ficam por isso
vinculados nem à religião católica, à luterana e calvinista ou ao marxismo, como os
alunos que ensaiam cânticos religiosos em aulas de EM, os atores de teatro religioso
ou os arquitetos, os pintores e os escultores de arte sacra não estão por isso
vinculados ao catolicismo. A revolução russa nem começou por ser principalmente
bolchevique.
Quem acusa o
Estado ou as Igrejas de agora querem impor o pensamento único e o uniformismo à
moda da Coreia do Norte está a ser mais único e monomorfo. E, com o devido respeito,
nem a ARL (Associação República e Laicidade) nem a AAP (Associação Ateísta
Portuguesa) têm o direito de impor a sua linha
ideológica às maiorias.
Quanto ao Delegado
Regional, gostaria que assestasse as baterias para os estabelecimentos escolares
por que é responsável e visse o que por lá anda e respeitasse a verdadeira
autonomia deles, que não carece de tanto tutelarismo.
Mas
compreendo que, depois que Nuno Crato esvaziou os conteúdos das antigas DRE,
fazendo daqueles Diretores Regionais (que tinham funções de Diretor-Geral) simples delegados regionais da DGEstE (Direção-Geral
dos Estabelecimentos Escolares), os
poderes destes hierarcas sejam residuais e delegados. Assim, fazem valer os
seus galões em coisas de pouca monta. E, tratando-se de coisas espampanantes que
os façam sobressair perante a opinião pública acolhedora da mediocridade que se
quer impor como o mais ortodoxo possível, tanto melhor.
Sugiro,
pois, que, em nome da aconfessionalidade do Estado, mudem o nome de Alfândega
da Fé, por exemplo, para Delegação de Lisboa. E não venham com a história do
Estado de Direito Democrático ao quererem que esse apenas seja do direito de
alguns ou do pensamento único. O Estado de Direito Democrático não é o que sente
o pulsar das populações, cuida do seu bem-estar, faz valer os direitos das
minorias sem iludir as maiorias e administra a justiça imparcial, célere e
eficaz? Não nos tapem o sol com a peneira!
2017.04.04 – Louro de Carvalho
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