Como é sabido, um grupo de trabalho
coordenado por Guilherme d’Oliveira Martins fez um trabalho sobre o perfil do
aluno que se pretende construir ao longo dos 12 anos de escolaridade e com reflexos
determinantes na disponibilidade para a aprendizagem ao longo da vida.
O predito perfil selecionou um
complexo coerente de competências-chave de desenvolvimento cíclico e
progressivo e cuja marca de eleição é a transversalidade e a interdisciplinaridade,
bem como a recuperação da educação para a cidadania eclipsada pelos conteúdos
que enformavam as metas curriculares de Nuno Crato, rígida e milimetricamente
entendidas.
O aludido trabalho foi elogiado e
apoiado por várias entidades de utilidade pública, tal como foi encarado com
muitas reservas por outras, como a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática.
Não confundir com a APM, Associação de Professores de Matemática) e Rodrigo Queiroz de Melo, Diretor
Executivo da AEEP (Associação de
Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo). E o CNE (Conselho Nacional de Educação) elaborou um estudo em que levanta várias questões
sobre conceção curricular e sua operacionalização.
Às asserções de que as escolas decidirão
25% do currículo e que poderão decidir como organizar matérias repetidas entre
disciplinas o CNE avisa que o esforço pode ser em vão, se não se incluir uma
reorganização dos horários. Porém, aos diretores dos agrupamentos agrada a
possibilidade de aprofundar a autonomia, nesta matéria, talvez porque, na
prática, não têm encontrado grande margem de manobra para planeamento,
organização, gestão e avaliação fora do figurino imposto pela administração
educativa central, que é fiscalizada, às vezes para lá das instruções, por uma
inspeção deveras intrometediça.
***
Seguem-se
de perto, por comodidade, alguns passos de Andreia Lobo, em seu artigo no
educare.pt a 31 de março pp.
A
tendência informativa vem no sentido de, no 1.º ciclo do ensino básico, 5 das
25 horas letivas passarem a ser atribuídas às Expressões, sendo que a Educação Física deixa de integrar o grupo das Expressões
na matriz curricular, ganhando um tempo próprio. A disciplina de Inglês passou
a integrar o currículo, no 3.º ano e no 4.º – o que já vem sendo praticado. Já
no 2.º ciclo, a Educação Cívica será
integrada nos tempos das Ciências Sociais
e Humanas, bem como as Tecnologias
para a Informação e Comunicação. No ensino secundário, os alunos vão poder
inscrever-se em opções de outros cursos, inclusivamente de vias
profissionais.
Porém, a grande novidade será a autonomia dada às
escolas para decidirem sobre a fusão de disciplinas, realização de semanas
temáticas, projetos interdisciplinares ou disciplinas semestrais. Ora, a grande
objeção é que, apesar das mudanças, os tempos e os programas das disciplinas
não vão ser alterados, segundo o que garante o ME (Ministério
da Educação). Sendo
assim, a flexibilização curricular será a redefinição das “aprendizagens
essenciais”.
Como é de ver, já de si é difícil definir as
aprendizagens essenciais e, por outro lado, pergunto-me como se compatibiliza
isso com a bateria de exames que se verifica no 11.º e no 12.º ano ou, no caso
de Português e de Matemática, no 9.º ano.
As escolas podem intervir nos conteúdos que se repetem
em várias disciplinas, como acontece, por exemplo, entre História e Geografia
ou entre Biologia e Física e Química. Neste caso, a flexibilização curricular
poderá passar pela melhor organização do tempo dispensado em cada disciplina a
tratar o mesmo tema. Isto é o que defende Manuel Pereira, presidente da ANDE (Associação
Nacional de Dirigentes Escolares), quando
diz ao JN que, “se os conselhos de
turma conseguirem racionalizar em termos de tempo e matérias, poder-se-á ganhar
tempo”. No entanto, ele próprio levanta a questão de a instabilidade do corpo
docente poder causar entraves ao processo, ao interrogar-se como poderá
garantir a continuidade do projeto se no ano seguinte tiver metade de
professores novos na escola. Sendo essa uma hipótese residual nos tempos
que correm, talvez o professor Pereira esteja esquecido de outra realidade
diferente: a importância da abordagem multidisciplinar de determinados
conteúdos.
Por sua vez, Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação
Nacional de Diretores), vê na
flexibilização um passo para mais autonomia nas escolas, dizendo que foi boa
notícia a confirmação de que o processo avançará no 1.º ano de cada ciclo –
1.°, 5.°, 7.° e 10.° anos –, embora apenas
em algumas escolas. E porque não avança já em todas? – pergunto-me.
***
No estudo “Organização
Escolar: O Tempo”, o CNE adverte que a flexibilização curricular pode ser
um esforço sem resultado, caso não haja uma nova organização de horários e
atividades escolares. No documento cuja introdução é assinada pelo seu
Presidente, o ex-Ministro da Educação David Justino, pode ler-se que, “se hoje existe uma maior preocupação com a
‘flexibilização’ e a ‘diferenciação’ curricular e pedagógica, seria positivo
que se atendesse à forma como se organiza o tempo escolar”. E explicita:
“Flexibilizar e diferenciar o
desenvolvimento curricular, sem que exista capacidade de inovação e organização
dos horários e do planeamento das atividades letivas e não letivas ao longo do
ano, poderá ser um esforço cujos efeitos esperados poderão ser anulados pela
forma como se afeta a multiplicidade dos tempos às aprendizagens”.
Os autores do supracitado
estudo acautelam que mais tempo na escola
não significa melhor tempo. E, do mesmo modo, um curriculum mais denso de
conteúdos poderá não significar uma melhor aprendizagem. Depois, com razão põem
o dedo na ferida, quando sustentam:
“Cargas horárias concentradas em
alguns dias da semana, blocos extensos da mesma disciplina, má afetação ou
limitação dos tempos de recreio, poderão ter incidência relevante no
comportamento dos alunos, na sua capacidade de concentração, na disponibilidade
para aprender ou mesmo na sua saturação pelo cansaço”.
Por outro lado, o estudo faz um levantamento de dados
recolhidos pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico), que evidenciam que o tempo mínimo
obrigatório nos primeiros anos de escolaridade coloca o país acima da média da
OCDE (4932 horas,
contra as 4621 horas da OCDE), ao passo
que nos ciclos seguintes o país (com 2675 horas) fica aquém da média da OCDE (2919 horas). É verificação que leva a sugerir a existência
de “algum desequilíbrio na distribuição dos tempos letivos com uma carga
horária excessiva em comparação com os restantes países, nos primeiros ciclos
de escolaridade, e deficitária, nos ciclos seguintes”. Parece que tal
desequilíbrio se deve à carga horária de ensino não obrigatório no 1.º ciclo (1303 horas) que nos coloca entre os países com maior número
total de horas neste ciclo de ensino.
Também o predito estudo identifica “algum desequilíbrio”
entre disciplinas que exigem maior ou menor esforço cognitivo e de concentração,
ou seja: “à desejável alternância entre
estes dois tipos de disciplinas, opõe-se a recorrente concentração em alguns
períodos do dia ou em alguns dias da semana”.
Já na introdução, David Justino adverte para os
perigos da chamada “escola a tempo inteiro”:
“Mesmo que a ideia possa
corresponder a uma necessidade social a que a escola não poderá ficar
indiferente, tal não pode transformar-se em ‘sala de aula a tempo inteiro’,
situação que poderá ter como consequência menos bem-estar, ambientes adversos à
missão da escola, mais indisciplina, numa palavra, mais insucesso
escolar”.
***
E, sobre a organização do tempo escolar, o estudo faz
referências à extensão do calendário, à distribuição do tempo letivo pelas diversas
disciplinas e à duração de cada tempo letivo.
Quanto à extensão do
calendário escolar, o CNE diz que o número
médio de dias de aulas ao longo do ano, no conjunto dos países da OCDE, é de
185 dias para os alunos do 1.º e 2.º ciclos e de 184 para os do 3.º ciclo – ao
passo que os números relativos a Portugal são, respetivamente, 180 e 178, um
pouco abaixo da média da OCDE. Mas, importa sobretudo o modo como esses dias
são distribuídos ao longo do ano letivo, nomeadamente a duração das pausas e do
período de férias de verão. Portugal está entre os países com maior duração das
férias de verão, mas com pausas letivas em menor número e de duração mais
diminuta.
Uma das peculiaridades do caso português é a
apresentação de maior número de dias de aulas nos primeiros ciclos de
escolaridade e menor número nos ciclos seguintes. Esta peculiaridade contraria
“o princípio generalizado de que o número de dias de aulas deverá aumentar à
medida que se progride na idade e nos trajetos escolares”. Nem serve a putativa
justificação de que os alunos mais adiantados estudam em casa. A escola deve
organizar o estudo de forma que os alunos possam ser cada vez mais autónomos,
mas sem os dispensar do acompanhamento escolar. O que parece estar a suceder é
que as crianças de mais tenra idade tenham de ser mais guardadas na escola,
dada a indisponibilidade dos pais. Mas então deveriam ser mobilizados mais
técnicos superiores para acompanhar a estada dos alunos na escola em tempo não
letivo. No atinente à distribuição do tempo letivo pelas diversas disciplinas,
Portugal evidencia uma elevada concentração do tempo de ensino em domínios considerados
estruturantes (leitura, escrita e literatura; matemática; e estudo do meio), integrando o terço de países considerados com maior
concentração no 1.º e 2.º ciclo, mas aproxima-se da média da OCDE quando se
falamos do ciclo seguinte (3.º ciclo). Como
fator distintivo, Portugal é o único país que faz idêntica distribuição das
cargas horárias da leitura, escrita e literatura e da matemática nos 1.º, 2.º e
3.º ciclos.
No concernente à duração de
cada tempo letivo, cerca de 73% das
escolas e agrupamentos da rede escolar pública recorrem aos tempos letivos de
45 minutos, acoplando-os em blocos de 90 minutos. A média de tempo diário
de permanência na escola varia entre 5 horas e 26 minutos e 6 horas e 19
minutos nas turmas do 5.º ano, e 4 horas e 55 minutos e 5 horas e 57 minutos
nas turmas de 9.º ano, consoante os dias da semana. Em ambos os anos de
escolaridade os alunos poderão permanecer na escola mais de oito horas num só
dia, não contando com o tempo que os alunos passam na escola e que não faz
parte do seu horário letivo.
É de referir que o estudo se estriba numa amostra de 1264
horários do 5.º ano de escolaridade e de 1119 do 9.º ano, selecionados entre
231 unidades orgânicas públicas (escolas e agrupamentos).
***
Só vejo como viável e eficaz a aprendizagem com base
na definição do aludido perfil do aluno e subsequente flexibilização curricular
– e a manterem-se os programas, mas sem as famigeradas metas curriculares – com
a possibilidade de os grupos disciplinares e os conselhos de turma selecionarem
os conteúdos das diversas disciplinas e desenvolverem a lecionação em termos da
metodologia do trabalho de projeto, com as óbvias abordagens
multidisciplinares, na dinâmica de interdisciplinaridade. E, a haver provas
finais, que se façam a nível de escola. Mas não interessa ao ensino superior
nem ao ensino privado. Só o saber académico, de exames…
2017.04.03 – Louro de Carvalho
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