segunda-feira, 3 de abril de 2017

Que flexibilização curricular resultará do propalado perfil do aluno?

Como é sabido, um grupo de trabalho coordenado por Guilherme d’Oliveira Martins fez um trabalho sobre o perfil do aluno que se pretende construir ao longo dos 12 anos de escolaridade e com reflexos determinantes na disponibilidade para a aprendizagem ao longo da vida.
O predito perfil selecionou um complexo coerente de competências-chave de desenvolvimento cíclico e progressivo e cuja marca de eleição é a transversalidade e a interdisciplinaridade, bem como a recuperação da educação para a cidadania eclipsada pelos conteúdos que enformavam as metas curriculares de Nuno Crato, rígida e milimetricamente entendidas.
O aludido trabalho foi elogiado e apoiado por várias entidades de utilidade pública, tal como foi encarado com muitas reservas por outras, como a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática. Não confundir com a APM, Associação de Professores de Matemática) e Rodrigo Queiroz de Melo, Diretor Executivo da AEEP (Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo). E o CNE (Conselho Nacional de Educação) elaborou um estudo em que levanta várias questões sobre conceção curricular e sua operacionalização.  
Às asserções de que as escolas decidirão 25% do currículo e que poderão decidir como organizar matérias repetidas entre disciplinas o CNE avisa que o esforço pode ser em vão, se não se incluir uma reorganização dos horários. Porém, aos diretores dos agrupamentos agrada a possibilidade de aprofundar a autonomia, nesta matéria, talvez porque, na prática, não têm encontrado grande margem de manobra para planeamento, organização, gestão e avaliação fora do figurino imposto pela administração educativa central, que é fiscalizada, às vezes para lá das instruções, por uma inspeção deveras intrometediça.
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Seguem-se de perto, por comodidade, alguns passos de Andreia Lobo, em seu artigo no educare.pt a 31 de março pp.
A tendência informativa vem no sentido de, no 1.º ciclo do ensino básico, 5 das 25 horas letivas passarem a ser atribuídas às Expressões, sendo que a Educação Física deixa de integrar o grupo das Expressões na matriz curricular, ganhando um tempo próprio. A disciplina de Inglês passou a integrar o currículo, no 3.º ano e no 4.º – o que já vem sendo praticado. Já no 2.º ciclo, a Educação Cívica será integrada nos tempos das Ciências Sociais e Humanas, bem como as Tecnologias para a Informação e Comunicação. No ensino secundário, os alunos vão poder inscrever-se em opções de outros cursos, inclusivamente de vias profissionais. 
Porém, a grande novidade será a autonomia dada às escolas para decidirem sobre a fusão de disciplinas, realização de semanas temáticas, projetos interdisciplinares ou disciplinas semestrais. Ora, a grande objeção é que, apesar das mudanças, os tempos e os programas das disciplinas não vão ser alterados, segundo o que garante o ME (Ministério da Educação). Sendo assim, a flexibilização curricular será a redefinição das “aprendizagens essenciais”. 
Como é de ver, já de si é difícil definir as aprendizagens essenciais e, por outro lado, pergunto-me como se compatibiliza isso com a bateria de exames que se verifica no 11.º e no 12.º ano ou, no caso de Português e de Matemática, no 9.º ano.
As escolas podem intervir nos conteúdos que se repetem em várias disciplinas, como acontece, por exemplo, entre História e Geografia ou entre Biologia e Física e Química. Neste caso, a flexibilização curricular poderá passar pela melhor organização do tempo dispensado em cada disciplina a tratar o mesmo tema. Isto é o que defende Manuel Pereira, presidente da ANDE (Associação Nacional de Dirigentes Escolares), quando diz ao JN que, “se os conselhos de turma conseguirem racionalizar em termos de tempo e matérias, poder-se-á ganhar tempo”. No entanto, ele próprio levanta a questão de a instabilidade do corpo docente poder causar entraves ao processo, ao interrogar-se como poderá garantir a continuidade do projeto se no ano seguinte tiver metade de professores novos na escola. Sendo essa uma hipótese residual nos tempos que correm, talvez o professor Pereira esteja esquecido de outra realidade diferente: a importância da abordagem multidisciplinar de determinados conteúdos.
Por sua vez, Filinto Lima, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores), vê na flexibilização um passo para mais autonomia nas escolas, dizendo que foi boa notícia a confirmação de que o processo avançará no 1.º ano de cada ciclo – 1.°, 5.°, 7.° e 10.° anos –, embora  apenas em algumas escolas. E porque não avança já em todas? – pergunto-me.
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No estudo “Organização Escolar: O Tempo”, o CNE adverte que a flexibilização curricular pode ser um esforço sem resultado, caso não haja uma nova organização de horários e atividades escolares. No documento cuja introdução é assinada pelo seu Presidente, o ex-Ministro da Educação David Justino, pode ler-se que, “se hoje existe uma maior preocupação com a ‘flexibilização’ e a ‘diferenciação’ curricular e pedagógica, seria positivo que se atendesse à forma como se organiza o tempo escolar”. E explicita:
“Flexibilizar e diferenciar o desenvolvimento curricular, sem que exista capacidade de inovação e organização dos horários e do planeamento das atividades letivas e não letivas ao longo do ano, poderá ser um esforço cujos efeitos esperados poderão ser anulados pela forma como se afeta a multiplicidade dos tempos às aprendizagens”. 
Os autores do supracitado estudo acautelam que mais tempo na escola não significa melhor tempo. E, do mesmo modo, um curriculum mais denso de conteúdos poderá não significar uma melhor aprendizagem. Depois, com razão põem o dedo na ferida, quando sustentam:
“Cargas horárias concentradas em alguns dias da semana, blocos extensos da mesma disciplina, má afetação ou limitação dos tempos de recreio, poderão ter incidência relevante no comportamento dos alunos, na sua capacidade de concentração, na disponibilidade para aprender ou mesmo na sua saturação pelo cansaço”.
Por outro lado, o estudo faz um levantamento de dados recolhidos pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), que evidenciam que o tempo mínimo obrigatório nos primeiros anos de escolaridade coloca o país acima da média da OCDE (4932 horas, contra as 4621 horas da OCDE), ao passo que nos ciclos seguintes o país (com 2675 horas) fica aquém da média da OCDE (2919 horas). É verificação que leva a sugerir a existência de “algum desequilíbrio na distribuição dos tempos letivos com uma carga horária excessiva em comparação com os restantes países, nos primeiros ciclos de escolaridade, e deficitária, nos ciclos seguintes”. Parece que tal desequilíbrio se deve à carga horária de ensino não obrigatório no 1.º ciclo (1303 horas) que nos coloca entre os países com maior número total de horas neste ciclo de ensino. 
Também o predito estudo identifica “algum desequilíbrio” entre disciplinas que exigem maior ou menor esforço cognitivo e de concentração, ou seja: “à desejável alternância entre estes dois tipos de disciplinas, opõe-se a recorrente concentração em alguns períodos do dia ou em alguns dias da semana”. 
Já na introdução, David Justino adverte para os perigos da chamada “escola a tempo inteiro”:
“Mesmo que a ideia possa corresponder a uma necessidade social a que a escola não poderá ficar indiferente, tal não pode transformar-se em ‘sala de aula a tempo inteiro’, situação que poderá ter como consequência menos bem-estar, ambientes adversos à missão da escola, mais indisciplina, numa palavra, mais insucesso escolar”. 
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E, sobre a organização do tempo escolar, o estudo faz referências à extensão do calendário, à distribuição do tempo letivo pelas diversas disciplinas e à duração de cada tempo letivo.
Quanto à extensão do calendário escolar, o CNE diz que o número médio de dias de aulas ao longo do ano, no conjunto dos países da OCDE, é de 185 dias para os alunos do 1.º e 2.º ciclos e de 184 para os do 3.º ciclo – ao passo que os números relativos a Portugal são, respetivamente, 180 e 178, um pouco abaixo da média da OCDE. Mas, importa sobretudo o modo como esses dias são distribuídos ao longo do ano letivo, nomeadamente a duração das pausas e do período de férias de verão. Portugal está entre os países com maior duração das férias de verão, mas com pausas letivas em menor número e de duração mais diminuta. 
Uma das peculiaridades do caso português é a apresentação de maior número de dias de aulas nos primeiros ciclos de escolaridade e menor número nos ciclos seguintes. Esta peculiaridade contraria “o princípio generalizado de que o número de dias de aulas deverá aumentar à medida que se progride na idade e nos trajetos escolares”. Nem serve a putativa justificação de que os alunos mais adiantados estudam em casa. A escola deve organizar o estudo de forma que os alunos possam ser cada vez mais autónomos, mas sem os dispensar do acompanhamento escolar. O que parece estar a suceder é que as crianças de mais tenra idade tenham de ser mais guardadas na escola, dada a indisponibilidade dos pais. Mas então deveriam ser mobilizados mais técnicos superiores para acompanhar a estada dos alunos na escola em tempo não letivo. No atinente à distribuição do tempo letivo pelas diversas disciplinas, Portugal evidencia uma elevada concentração do tempo de ensino em domínios considerados estruturantes (leitura, escrita e literatura; matemática; e estudo do meio), integrando o terço de países considerados com maior concentração no 1.º e 2.º ciclo, mas aproxima-se da média da OCDE quando se falamos do ciclo seguinte (3.º ciclo). Como fator distintivo, Portugal é o único país que faz idêntica distribuição das cargas horárias da leitura, escrita e literatura e da matemática nos 1.º, 2.º e 3.º ciclos. 
No concernente à duração de cada tempo letivo, cerca de 73% das escolas e agrupamentos da rede escolar pública recorrem aos tempos letivos de 45 minutos, acoplando-os em blocos de 90 minutos. A média de tempo diário de permanência na escola varia entre 5 horas e 26 minutos e 6 horas e 19 minutos nas turmas do 5.º ano, e 4 horas e 55 minutos e 5 horas e 57 minutos nas turmas de 9.º ano, consoante os dias da semana. Em ambos os anos de escolaridade os alunos poderão permanecer na escola mais de oito horas num só dia, não contando com o tempo que os alunos passam na escola e que não faz parte do seu horário letivo. 
É de referir que o estudo se estriba numa amostra de 1264 horários do 5.º ano de escolaridade e de 1119 do 9.º ano, selecionados entre 231 unidades orgânicas públicas (escolas e agrupamentos).
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Só vejo como viável e eficaz a aprendizagem com base na definição do aludido perfil do aluno e subsequente flexibilização curricular – e a manterem-se os programas, mas sem as famigeradas metas curriculares – com a possibilidade de os grupos disciplinares e os conselhos de turma selecionarem os conteúdos das diversas disciplinas e desenvolverem a lecionação em termos da metodologia do trabalho de projeto, com as óbvias abordagens multidisciplinares, na dinâmica de interdisciplinaridade. E, a haver provas finais, que se façam a nível de escola. Mas não interessa ao ensino superior nem ao ensino privado. Só o saber académico, de exames…

2017.04.03 – Louro de Carvalho

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