Decorreu,
no Instituto de Maria SS.ma Bambina (Via Paolo VI, 21), em Roma, de 29 a 31 do passado
mês de março, o Simpósio Internacional de
Estudos “Lutero 500 anos depois. “Uma releitura
da Reforma luterana em seu contexto histórico eclesial” – iniciativa do Pontifício
Comité das Ciências Históricas. Pretendeu-se assinalar o V centenário da
Reforma Luterana (1517-2017), simbolicamente marcada com a difusão das “95
Teses”, e para favorecer uma renovada reflexão histórica sobre este complexo e
articulado tema.
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O
Simpósio
Na
sessão inaugural, no dia 29, após a abertura do Simpósio pelo Presidente do
Pontifício Comité das Ciências Históricas, Padre Bernard Ardura, duas comunicações
abordaram dois temas: “Em direção a
Lutero, o contexto teológico e eclesial”; e “Lutero, o homem e o teólogo”.
No
dia 30, na 2.ª sessão, sobre o “Contexto religioso”, foram abordados os temas
seguintes: “O conceito de ‘Reforma’ em
Joseph Lortz e Hubert Jedin”; “O
conceito de Reforma Católica”; “Figuras
de bispos reformadores e reforma das ordens religiosas”; “A doutrina da Devotio moderna”; “A influência de São Bernardo de Claraval no
tema da consciência em Lutero”; e “Para
uma história da indulgência”.
No mesmo
dia, a 3.ª sessão, sobre o “Contexto sociopolítico”, desenvolveu os temas: “As relações entre a França e a Santa Sé: a
Concordata de Bolonha de 1515”; “A
doutrina das relações Igreja-Estado segundo Lutero”; “Os grandes poderes do Império frente a Lutero”; “Os interesses financeiros e a secularização
dos bens eclesiásticos”.
No
dia 31, na 4.ª sessão, sobre “Lutero em discussão”, foram desenvolvidas as
seguintes rubricas: “A receção de Lutero
em Espanha”; “A política da Coroa
espanhola para bloquear a difusão da Reforma protestante durante o século XVI”;
“A receção de Lutero na Nova Espanha (atual México)”; “A receção de Lutero na França”; “A receção de Lutero na Itália”; “A evolução do pensamento teológico de Lutero”.
E,
no mesmo dia, a 5.ª e última sessão constou de uma mesa redonda ecuménica, sob o título “Perspetivas de encontro e cruzamento de duas vias separadas”, com a
participação de: Cardeal Walter Kasper, Presidente emérito do Pontifício
Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos; Prof. Dr. Heinrich
Bedford-Strohm, representante da Igreja Evangélica na Alemanha; Serge-Thomas
Bonino, O. P., da Comissão Teológica Internacional – Pontifícia Universidade
São Tomás d’Aquino”, Angelicum, Roma; Karl Gervin, da Catedral Luterana de
Oslo; Jörg Bremer, do Frankfurter
Allgemeine Zeitung, Roma; e Andrea Tornielli, do La Stampa, Roma.
Os participantes puderam desfrutar de um
evento cultural na tarde do dia 30: Ein feste Burg ist unser Gott, na Igreja de Santa Maria no
Campo Santo Teutónico, no Vaticano, com músicas da reforma de: Johann Sebastian Bach, Dietrich
Buxtehude e Heinrich Scheidemann – com o contratenor Vincenzo Scarafile e com
Gaetano Magarelli ao órgão. E, no dia 31, foram recebidos pelo Papa Francisco
na Sala Clementina do Palácio Apostólico.
***
Declarações
do Padre Ardura
A propósito do Simpósio Internacional, o Padre Bernard Ardura, Presidente do Pontifício Comité
das Ciências Históricas, fez oportunas e esclarecedoras declarações à Rádio
Vaticana.
Começou
por dizer que não sabe dizer se o Papa Francisco quer “reabilitar” a figura de
Lutero, mas que sabe que Lutero foi percebido nos séculos do passado como a
encarnação do diabo, o que rompeu a comunhão e assim por diante. E diz que
“hoje não se trata de dizer que aquilo que fez Lutero tenha sido uma
coisa boa, porém, podemos explicar os acontecimentos que levaram à Reforma e os
desdobramentos que se seguiram”.
Se as polémicas e “interpretações pessoais” vieram mais
tarde, o que interessa hoje é “a busca da verdade” dum contexto histórico,
económico e político, que motivou uma reforma marcada por “boas intenções”, mas
que acabou por provocar uma “rutura” de 5 séculos e que ainda se apresenta como
“uma ferida aberta”.
Por isso, torna-se imperativa “uma releitura histórica e eclesial dos
acontecimentos que levaram à reforma dentro da Igreja”, tentando perceber “o contexto histórico e
eclesial em que viveu Lutero, pois sem este conhecimento não se pode entender o
que veio a acontecer a seguir em todo o continente europeu”.
Assim, o simpósio pretende “abrir perspetivas” e
esclarecer alguns aspetos que até agora permaneceram obscuros”. Com efeito, por
exemplo, Lutero “não surge numa Igreja a ser completamente transformada, mas numa
Igreja que já desde o final do século XV conhece elementos de reforma, não só
do ponto de vista teológico: havia, para exemplificar, reformas dentro das
Ordens religiosas, na Inglaterra, na Boémia, na Itália, na Espanha, onde estava
em curso a obra do Cardeal Francisco Jimenez de Cisneros, que de certo modo antecipou
a chamada Contrarreforma.
Por outro lado, este simpósio em Roma constitui a ocasião
para indagar sobre as “implicações psicológicas” do “drama” vivido por Lutero:
o de um homem que se considera “pecador” ou a “crise pessoal, interior” que “levou o monge alemão a romper com a
vida religiosa e com a Igreja em que se havia consagrado”.
Ora, por exemplo, o casamento de Lutero com uma religiosa não pôde acontecer
senão após uma crise profunda”, como evidencia o Padre Ardura.
Os elementos da postura de Lutero devem ser levados em linha
de conta, porque deram início à Reforma, que encontrou o seu ponto de difusão
entre os principados europeus, e porque a
sua história pessoal se tornou “um modelo que forjou a cultura protestante que se vê, por exemplo, hoje
nos Estados Unidos, onde os próprios católicos são um pouco contaminados por
este modo de conceber a vida cristã, o pecado nas áreas da vida, da sexualidade...”.
Obviamente, as intenções iniciais do frade teólogo não eram
de rutura. A reforma era principalmente “interna”, pois Lutero não queria a
cisão. O Padre Ardura esclarece:
“No
início, ele queria fazer uma reforma dentro da Igreja, algo que sempre ocorreu
no decorrer dos séculos. Ele cumpre um caminho espiritual. O ponto de partida, neste
sentido, é bom.
Depois, porém, houve pressões de todas as partes, elementos intervieram de fora
– historiadores, políticos e empresários – que influenciaram a involução da própria reforma,
desembocando posteriormente numa rutura.”.
Segundo Ardura, a “ferida ainda está aberta”, mas “o olhar já não é o mesmo”, pois, “temos um olhar de caridade, um olhar
recíproco, a ver no outro alguém que tem boa vontade e que procura responder à
sua profissão de fé”.
Chegou-se a este resultado certamente graças ao grande impulso
ecuménico do pontificado de Bergoglio, mas o caminho começou antes, sobretudo com João XXIII, o Vaticano II e Paulo VI:
“Os
resultados que vemos hoje são o fruto de um processo iniciado já com João
XXIII, primeiro Papa da história recente a querer dar estes passos. Recordemos
o seu encontro com o Primaz anglicano. Não se fala ainda de unidade ou
comunhão, mas inicia-se a ver o outro como um irmão. E este é o ponto de
partida, um bom ponto de partida.”.
O Padre Ardura recorda os passos dados com as Igrejas irmãs
Ortodoxas que tinham caído num processo de separação bem mais longo. Enquanto as
costas de católicos e protestantes arcam com 5 séculos de separações, durante
séculos e séculos as Igrejas Ortodoxas e a Católica andaram de candeias às
avessas. Desenvolveram-se seguindo dois caminhos diferentes – o que deve ser
ido em consideração. Porém, mesmo em
relação às Igrejas da Reforma, é de considerar que “Quinhentos anos de afastamento
não podem ser resolvidos em poucos anos”, mas podem ser dados
passos e aprofundar-se “as releituras que permitem redescobrir que
houve mal-entendidos”.
Em tal contexto, é essencial “o diálogo entre teólogos”, que é
diferente “do ecumenismo da vida quotidiana: o vivido por tantas comunidades”. Há, por
exemplo, em Moscovo, um centro cultural criado pela Igreja Católica em que os
trabalhadores são quase todos ortodoxos – um local de encontro em que não se
fala de teologia, mas se pratica o ecumenismo no respeito de um pelo outro.
Mesmo, não fazendo ecumenismo com os historiadores e os teólogos que pertencem
a diversas Igrejas, podemos fazer um pouco do caminho em conjunto. Com efeito, segundo Ardura, “fazer uma história absolutamente neutra” lhe “parece difícil, mas é necessário fazer uma história honesta,
alicerçada em documentos. E isto é importante.”.
E ajuda também a prudência em manter sob controlo as
“interpretações pessoais”, um outro modo para definir as críticas. De facto, houve
críticas dirigidas ao Pontífice pela sua viagem a Lund, na Suécia, em novembro
de 2016, e ao Patriarca de Moscovo Alexis II, que durante uma viagem à França
celebrou as Vésperas ecuménicas na Catedral de Notre Dame e recitou o Pai Nosso
com os anglicanos. A este respeito, o Padre Ardura frisa:
“Alguns
bispos russos haviam pedido a deposição do Patriarca porque para eles era uma
heresia. Não nos devemos deixar levar pelas interpretações. Certamente, devemos
ser prudentes nas nossas palavras e permanecer sempre fiéis à própria fé.
Abrir-se é um risco, mas acredito que valha a pena sermos corajosos.”.
***
Do discurso
do Santo Padre
Confessou o
sentimento de gratidão a Deus perante esta louvável iniciativa,
acompanhado por uma certa admiração, ao pensar que não há muito
tempo um congresso deste tipo teria sido totalmente impensável. E aduz que falar
de Lutero, católicos e protestantes juntos, por iniciativa dum organismo da
Santa Sé faz sentir em concreto “os
frutos da ação do Espírito Santo, que ultrapassa qualquer barreira e transforma
os conflitos em oportunidades de crescimento na comunhão”. E, evocando
o documento Do conflito à comunhão, da
Comissão Luterana-Católica Romana em vista da comemoração comum do V centenário
do início da Reforma de Lutero, considerou:
“Alegrei-me quando tomei conhecimento de que esta comemoração ofereceu a estudiosos
provenientes de várias instituições a oportunidade de olhar juntos para
aqueles eventos. Aprofundamentos sérios sobre a figura de Lutero e a sua
crítica contra a Igreja do seu tempo e o papado contribuem sem dúvida para
superar aquele clima de desconfiança recíproca e de rivalidades que por
demasiado tempo no passado caraterizou as relações entre católicos e
protestantes. O estudo atento e rigoroso, livre de preconceitos e polémicas
ideológicas, permite que as Igrejas, hoje em diálogo, possam discernir e
assumir o que de positivo e legítimo houve na Reforma, e distanciar-se dos
erros, exageros e falências, reconhecendo os pecados que tinham levado à
divisão.”.
Embora na
convicção de que “o passado não pode ser mudado”, sustenta:
“Depois de 50 anos de diálogo ecuménico entre católicos e protestantes, é
possível efetuar uma purificação da memória, que não consiste em realizar uma
correção impraticável de quanto aconteceu há quinhentos anos, mas em narrar esta
história de forma diferente (Comissão Luterana-Católica Romana para a
unidade, Do conflito à comunhão, 17 de junho de 2013, 16), já sem
vestígios daquele rancor pelas feridas sofridas que deforma a visão que temos
uns dos outros”.
Assim,
prossegue a sua declaração:
“Hoje, como cristãos, somos todos chamados a libertar-nos dos preconceitos
em relação à fé que os outros professam com uma ênfase e uma linguagem
diferente e a conceder-nos reciprocamente o perdão pelas culpas cometidas pelos
nossos pais e a invocar juntos de Deus o dom da reconciliação e da unidade”.
***
Mostra itinerante sobre os 500 anos da Reforma
Como curiosidade positiva e no âmbito do V centenário
da Reforma, ressalta o périplo que está a fazer pelos países nórdicos, nestes
dias, a carreta azul que partiu, em 3 de novembro passado, de Genebra, na
Suíça, para fazer etapa em 67 cidades de 19 países europeus significativos para
a história da Reforma. O camião carrega uma mostra itinerante sobre os 500 anos
da Reforma e tem a tarefa de recolher, neste percurso, as histórias dessa
viagem: em cada paragem, que dura 36 horas, as pessoas e comunidades locais são
convidadas a falar sobre o significado da própria fé e da própria pertença a
uma Igreja.
Segundo a Agência Sir,
o camião já passou pela Suíça, Alemanha, e também por Veneza e Roma, na Itália,
em Liubliana, na Eslovénia, Sibiu, na Roménia, Dublin, na Irlanda, e depois em
Liverpool e Londres, na Inglaterra.
No início de março, passou pela Dinamarca e depois pela
Suécia. A seguir, parou na praça diante da catedral de Turku, na Finlândia, e viajou
em direção a Riga, na Letónia, onde chegou a 18 de março. E há de chegar a
Wittenberg, em 20 de maio, onde Martinho Lutero afixou suas 95 teses na porta
da igreja do castelo dessa cidade. Em Wittenberg, haverá a abertura da “Mostra
Internacional da Reforma” e serão apresentadas as histórias recolhidas durante
a viagem do camião pela Europa.
Quatro grupos de jovens voluntários fazem turnos para
acompanhar a carreta e um blog conta as suas deslocações.
***
Há que avivar a memória para evitar erros e divisões e
saber construir, na diversidade, a unidade da fé e a conjugação de esforços
pelo bem de todos e de cada um.
2017.04.06 – Louro de Carvalho
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