O
ano de 2017 ficará marcado pela 1.ª celebração ecuménica da Reforma. Depois de 5
séculos de caminhada diferente – muitas vezes, de desconfianças e ataques
recíprocos – da parte da Igreja Católica e das demais Igrejas cristãs
reformadas, e a assinalar o percurso de mútuo diálogo, estudo conjunto e
cooperação com vista à realização de desígnios comuns nos últimos 50 anos, foi
editado um informe ou manual para a
celebração ecuménica da Reforma e que serve de base à reflexão, à oração, às
celebrações e aos eventos a corporizar. Trata-se dum documento histórico,
doutrinal e de exortação à vivência comum, que foi apresentado, a 10 de
fevereiro de 2014, pela Comissão Luterana-Católico-Romana para a Unidade, por
carta às Conferências Episcopais Católicas, Bispos, Bispas, Presidentes e
Presidentas das Igrejas membro da Federação Luterana Mundial.
Nos
termos da referida carta, o informe ecuménico “Do Conflito à Comunhão – Comemoração Conjunta Luterano-Católico-Romana
da Reforma em 2017” configura “o mais recente fruto do trabalho da Comissão
Luterano-Católico-Romana sobre a unidade. Na verdade, desde 1967, a Comissão,
nomeada pelo PCPUC (Pontifício Conselho para a Promoção da
Unidade dos Cristãos)
e pela FLM (Federação Luterana Mundial), tem sido o maior fórum internacional
da discussão ecuménica das duas Confissões. Como diálogo teológico bilateral,
vem contribuindo para “a busca da unidade visível do Corpo de Cristo”. E “Do Conflito à Comunhão” oferece “a
católicos e luteranos um enfoque conjunto para a comemoração dos 500 anos da
Reforma, em 2017”. Trata-se da “primeira tentativa histórica, no âmbito
internacional, de descrever a história da Reforma conjuntamente, de analisar os
argumentos teológicos que estavam em jogo, de traçar os desenvolvimentos ecuménicos
entre as nossas comunhões, de identificar a convergência alcançada e as
diferenças ainda persistentes”.
Por
outro lado, com base neste documento, um grupo de trabalho litúrgico da PCPUC e
da FLM tem vindo a preparar sugestões de celebração a nível local, nacional e
internacional para a comemoração da Reforma, nos anos de 2016 e 2017. Assim, o
informe da Comissão e as preditas sugestões celebrativas permitem acalentar a
esperança de que já conseguimos “um ponto de partida para avançar para lá de
uma história marcada pelo conflito, em direção a um presente e futuro que nos
conduza a uma comunhão maior.”
Com
efeito, “o estudo conjunto entre luteranos e católicos” foi elaborado segundo os
respetivos “contextos e realidades ecuménicas”. Por isso, a carta convida os
destinatários a envolverem-se no processo “conforme o espírito da Comissão
Conjunta”, em “espírito de abertura e de crítica” e a empreenderem “o caminho
em direção à unidade plena e visível da Igreja”.
***
O
manual está organizado em cinco capítulos, cuja matéria se especifica a seguir.
O
primeiro, sob o título “Comemoração da Reforma numa era ecuménica e global”,
passa em revista os seguintes aspetos: o caráter
das comemorações anteriores; a primeira
comemoração ecuménica; comemoração
num novo contexto global e secular; novos
desafios para a comemoração de 2017.
O
segundo capítulo, abordando o tema “Novas perspetivas sobre Martinho Lutero e a
Reforma”, desenvolve os itens seguintes: contribuições
da pesquisa a respeito da Idade Média; pesquisa
católica sobre Lutero no século XX; projetos
ecuménicos preparando o caminho para o consenso; desenvolvimentos católicos; desenvolvimentos
luteranos; a importância dos diálogos
ecuménicos.
O
capítulo terceiro apresentando “Um esboço histórico da Reforma Luterana e a
Resposta Católica”, glosa os seguintes temas: “o que significa a Reforma?”; “o
estopim da Reforma: a controvérsia das indulgências”; o processo contra Lutero; encontros
falidos; a condenação de Martinho
Lutero; a autoridade da Escritura;
Lutero em Worms; o início do movimento da Reforma; necessidade de uma supervisão; colocando
a Escritura ao alcance do povo; catecismos
e hinos; ministros para as paróquias;
tentativas teológicas para superar o
conflito religioso; as guerras
religiosas e a paz de Augsburgo; o
Concílio de Trento.
O
quarto capítulo, sob a epígrafe “Temas básicos da teologia de Lutero à luz dos
diálogos Luterano-Católico-Romanos”, refere “a estrutura deste capítulo; a
herança medieval de Martinho Lutero; Teologia
monástica e mística; justificação;
Eucaristia; Ministério; Diálogo
luterano-católico sobre o ministério; Escritura
e Tradição; “olhando para frente: o
Evangelho e a Igreja”; em direção a
um consenso.
O
capítulo quinto, sob o título “Chamados à comemoração comum”, aborda com
pertinência, os seguintes pontos: “o Batismo:
a base para a unidade e a comemoração comum”; preparando a comemoração conjunta; partilhando a alegria no Evangelho; razões para arrependimento e lamento; oração pela unidade; avaliando
o passado; reconhecimento católico
dos pecados contra a unidade; reconhecimento
luterano dos pecados contra a unidade.
Por
fim, o sexto capítulo enuncia e explica os “Cinco imperativos ecuménicos”.
Nesta
reflexão, será oportuno determo-nos no tema “A primeira comemoração ecuménica”,
do capítulo I, e nos “Cinco imperativos ecuménicos”, do capítulo VI.
***
A
primeira comemoração ecuménica
“A
primeira comemoração ecuménica” é abordada nos números 7 a 12 do documento.
Na
verdade, em 2017, celebrar-se-á, pela primeira vez, um centenário da Reforma em
ambiente ecuménico e o cinquentenário do diálogo luterano-católico. Como parte
do movimento ecuménico, salientam-se, nos últimos 50 anos, “a oração conjunta,
o culto conjunto e o serviço conjunto às suas comunidades”, que enriqueceram
católicos e luteranos, levando a que juntos hajam enfrentado “desafios
políticos, sociais e económicos”. Além disso, a evidência da espiritualidade
espelhada nos casamentos interconfessionais induziu “novas percepções e
questões” e luteranos e católicos passaram a ser “capazes de reinterpretar as suas
tradições teológicas e as suas práticas, reconhecendo as influências que
tiveram uns sobre os outros”.
Neste
novo contexto, impõe-se uma nova abordagem, pelo que não são de repetir “antigos
relatos da Reforma”, com “perspetivas luteranas e católicas” separadas e até
opostas.
Há
que selecionar da grande abundância de momentos históricos os elementos que
permitam construir um todo com sentido, minorando a síndrome de conflito entre
as Confissões e, sobretudo, anulando a hostilidade aberta que chegou a existir.
E,
porque “a lembrança histórica teve consequências materiais para as relações das
Confissões cristãs entre si”, torna-se a recordação ecuménica comum da Reforma “tão
importante e difícil”. Se muitos católicos associam a palavra “Reforma” principalmente
à divisão da Igreja, muitos luteranos associam-na preferencialmente à “descoberta
do Evangelho”, à “certeza da fé e da liberdade”. Será, pois, necessário ter em boa
consideração ambos os pontos de partida, de modo a relacionar as duas perspetivas
e pô-las em diálogo.
O
Cristianismo tornou-se cada vez mais global no último século. De facto, hoje existem
cristãos de várias confissões por todo o mundo; cresce o número de cristãos no
Sul, enquanto no Norte diminui. As Igrejas do Sul, assumindo importância cada
vez maior no cristianismo mundial, não percebem facilmente os conflitos confessionais
do século XVI como seus próprios conflitos. E, em países de Cristianismo
secular, muitos deixaram as Igrejas ou esqueceram as respetivas tradições
eclesiais. Nessas tradições, as Igrejas confiaram às sucessivas gerações “o que
receberam do seu encontro com a Sagrada Escritura”, ou seja:
“Uma
compreensão de Deus, da humanidade e do mundo em resposta à revelação de Deus
em Jesus Cristo; a sabedoria desenvolvida ao longo de gerações de experiência
de vida inteira de compromisso de cristãos com Deus; e o tesouro de formas
litúrgicas, hinos e orações, práticas catequéticas e serviços diaconais”.
O
esquecimento das preditas tradições levou a que muito do que dividiu no passado
a Igreja esteja hoje virtualmente esquecido. Todavia, o Ecumenismo não pode
estribar-se nesse esquecimento. Tem, antes, de recordar a história da Reforma
em 2017 para fazer a sua sublimação, percebendo o que deve ser preservado do “que
foi motivo de luta das duas confissões no século XVI”. Com efeito, os nossos
antepassados estavam convictos de que “havia algo pelo que valia a pena lutar”,
como “necessário para a vida com Deus”. Depois, tem de se colocar a tradição esquecida
ao alcance dos contemporâneos, para que os seus dados não permaneçam apenas como
objetos de interesse de antiquário ou de museu, mas “apoiem uma existência
cristã vibrante”, “sem abrir novas divisões entre os cristãos de diferentes
confissões” e fazendo esbater as que historicamente foram estabelecidas.
***
Os
cinco imperativos ecuménicos
São
enunciados e explicados nos números 238 a 245. Católicos e Luteranos têm
consciência de que eles e as suas comunidades de fé pertencem ao corpo único de
Cristo, vindo a crescer “a consciência de que as lutas do século XVI estão
superadas” e foram ultrapassadas “as razões para condenar mutuamente a fé do
outro. Sentem-se “convidados a pensar a partir da perspetiva da unidade do
Corpo de Cristo” e a “buscar o que possa trazer essa unidade à expressão e
servir à comunidade do Corpo de Cristo”, pois, no Batismo reconhecem-se uns aos
outros como cristãos. É esta uma orientação que “requer uma contínua conversão
do coração”. Neste sentido, luteranos e católicos identificam 5 imperativos
para comemorarem juntos no ano de 2017.
Primeiro:
Mesmo que as diferenças sejam mais
facilmente visíveis e experienciadas, a fim de reforçar o que existe de comum, devem
partir sempre da perspetiva da unidade e não da perspetiva da divisão.
No
curso da história, as Confissões definiram-se uma contra a outra levando a
unilateralidades persistentes, “quando se trata dalguns problemas como o da
autoridade”. Porque os problemas originados pelos conflitos só podem ser
resolvidos (ou, ao menos, encaminhados com esforços comuns) para aprofundar e reforçar a
comunhão, é precisa a experiência, encorajamento e crítica mútua.
Segundo:
Luteranos e católicos precisam de se
deixar transformar continuamente pelo encontro com o outro e pelo testemunho
mútuo da fé.
Na
verdade, através do diálogo, aprenderam muito e apreciaram o facto de a
comunhão entre eles poder ter “diferentes formas e graus”. No atinente a 2017,
devem
“Renovar
os seus esforços com gratidão por tudo o que se alcançou, com paciência e
perseverança, pois o caminho pode ser mais longo do que o esperado; com zelo,
que não permite dar-se por satisfeito com a situação atual; com amor uns pelos
outros em tempos de discordância e conflito; com fé no Espírito Santo; com esperança
de que o Espírito Santo vai realizar a oração de Jesus ao Pai; e com oração
sincera de que isso vá acontecer.”.
Terceiro:
Católicos e luteranos devem
comprometer-se outra vez na busca da unidade visível, para compreenderem o seu significado
em concreto e buscar sempre de novo esse objetivo.
Tendo
a tarefa de manifestar sempre de novo aos seus membros a compreensão do
Evangelho e da fé cristã bem como da Tradição da Igreja, o desafio consiste em “evitar
uma retomada da tradição para cair nas antigas oposições confessionais”.
Quarto:
Luteranos e católicos devem procurar
juntos redescobrir a força do Evangelho de Jesus Cristo para o nosso tempo.
O
compromisso ecuménico com a unidade da Igreja não pode servir só Igreja, mas também
o mundo, “de tal modo que o mundo creia”. Assim, a tarefa missionária do
ecumenismo tornar-se-á tanto maior quanto mais a nossa sociedade se tornar mais
pluralista em termos religiosos – o que requer “mudança de pensamento e
metanoia (conversão)”.
Quinto:
Católicos e luteranos, na sua pregação e
serviço ao mundo, devem testemunhar juntos a graça de Deus.
O
caminho ecuménico possibilita a luteranos e católicos a apreciação conjunta das
visões de Lutero sobre “a sua experiência espiritual no Evangelho da justiça de
Deus, que é também a sua misericórdia”. No prefácio das suas obras latinas (1545), Lutero confessava que “pela
misericórdia de Deus, meditando dia e noite”, alcançara uma nova compreensão de
Rm 1,17:
“Aqui
senti que eu nasci de novo e entrei no próprio paraíso pelos portões abertos.
Em seguida, uma nova face de toda Escritura se me mostrou (...). Mais tarde li O Espírito e a Letra, de Agostinho e,
contra a minha expectativa, descobri que ele também interpretava a justiça de
Deus de maneira semelhante, como a justiça com a qual Deus nos reveste quando
nos justifica.”.
Em
consonância com estes 5 imperativos ecuménicos, a memória dos alvores da
Reforma será adequada, se luteranos e católicos se dispuserem a ouvir juntos o
Evangelho de Jesus Cristo e se “se deixarem chamar outra vez para a comunidade
com o Senhor”. Então estarão unidos na missão comum que o n.º 18 da DCDJ (Declaração
Conjunta sobre a Doutrina da Justificação)
descreve:
“Luteranos
e Católicos compartilham o objetivo comum de confessar em tudo a Cristo, no
qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas, como único mediador
(cf 1Tm 2,5s) pelo qual Deus, no Espírito Santo, se dá a si mesmo e derrama os seus
dons renovadores”.
***
Chamados
à comemoração comum da Reforma e dos demais eventos históricos em Igreja, não podemos
olvidar que é o Batismo a base da unidade e, por consequência, desta
comemoração comum. Depois, há que vincar que “a Igreja é o corpo de Cristo” redivivo.
E, “assim como existe apenas um Cristo, assim também ele tem apenas um corpo” e,
“pelo Batismo, homens e mulheres tornam-se membros desse corpo” e testemunham a
Ressurreição.
Ora,
se católicos e luteranos estão vinculados uns ao outros no corpo de Cristo como
seus membros, então é verdadeiro o que Paulo diz a respeito deles em 1Cor
12,26:
“Se
um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se um membro é honrado, todos
os membros se regozijam com ele”.
E,
recordando em conjunto a Reforma, estão a levar a sério o Batismo e edificam a
metanoia.
2017.04.08 – Louro de Carvalho
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