sábado, 8 de abril de 2017

Do conflito à Comunhão – Comemoração Católico-Luterana da Reforma

O ano de 2017 ficará marcado pela 1.ª celebração ecuménica da Reforma. Depois de 5 séculos de caminhada diferente – muitas vezes, de desconfianças e ataques recíprocos – da parte da Igreja Católica e das demais Igrejas cristãs reformadas, e a assinalar o percurso de mútuo diálogo, estudo conjunto e cooperação com vista à realização de desígnios comuns nos últimos 50 anos, foi editado um informe ou manual para a celebração ecuménica da Reforma e que serve de base à reflexão, à oração, às celebrações e aos eventos a corporizar. Trata-se dum documento histórico, doutrinal e de exortação à vivência comum, que foi apresentado, a 10 de fevereiro de 2014, pela Comissão Luterana-Católico-Romana para a Unidade, por carta às Conferências Episcopais Católicas, Bispos, Bispas, Presidentes e Presidentas das Igrejas membro da Federação Luterana Mundial.
Nos termos da referida carta, o informe ecuménico “Do Conflito à Comunhão – Comemoração Conjunta Luterano-Católico-Romana da Reforma em 2017” configura “o mais recente fruto do trabalho da Comissão Luterano-Católico-Romana sobre a unidade. Na verdade, desde 1967, a Comissão, nomeada pelo PCPUC (Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos) e pela FLM (Federação Luterana Mundial), tem sido o maior fórum internacional da discussão ecuménica das duas Confissões. Como diálogo teológico bilateral, vem contribuindo para “a busca da unidade visível do Corpo de Cristo”. E “Do Conflito à Comunhão” oferece “a católicos e luteranos um enfoque conjunto para a comemoração dos 500 anos da Reforma, em 2017”. Trata-se da “primeira tentativa histórica, no âmbito internacional, de descrever a história da Reforma conjuntamente, de analisar os argumentos teológicos que estavam em jogo, de traçar os desenvolvimentos ecuménicos entre as nossas comunhões, de identificar a convergência alcançada e as diferenças ainda persistentes”.
Por outro lado, com base neste documento, um grupo de trabalho litúrgico da PCPUC e da FLM tem vindo a preparar sugestões de celebração a nível local, nacional e internacional para a comemoração da Reforma, nos anos de 2016 e 2017. Assim, o informe da Comissão e as preditas sugestões celebrativas permitem acalentar a esperança de que já conseguimos “um ponto de partida para avançar para lá de uma história marcada pelo conflito, em direção a um presente e futuro que nos conduza a uma comunhão maior.”
Com efeito, “o estudo conjunto entre luteranos e católicos” foi elaborado segundo os respetivos “contextos e realidades ecuménicas”. Por isso, a carta convida os destinatários a envolverem-se no processo “conforme o espírito da Comissão Conjunta”, em “espírito de abertura e de crítica” e a empreenderem “o caminho em direção à unidade plena e visível da Igreja”.
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O manual está organizado em cinco capítulos, cuja matéria se especifica a seguir.
O primeiro, sob o título “Comemoração da Reforma numa era ecuménica e global”, passa em revista os seguintes aspetos: o caráter das comemorações anteriores; a primeira comemoração ecuménica; comemoração num novo contexto global e secular; novos desafios para a comemoração de 2017.
O segundo capítulo, abordando o tema “Novas perspetivas sobre Martinho Lutero e a Reforma”, desenvolve os itens seguintes: contribuições da pesquisa a respeito da Idade Média; pesquisa católica sobre Lutero no século XX; projetos ecuménicos preparando o caminho para o consenso; desenvolvimentos católicos; desenvolvimentos luteranos; a importância dos diálogos ecuménicos.
O capítulo terceiro apresentando “Um esboço histórico da Reforma Luterana e a Resposta Católica”, glosa os seguintes temas: “o que significa a Reforma?”; “o estopim da Reforma: a controvérsia das indulgências”; o processo contra Lutero; encontros falidos; a condenação de Martinho Lutero; a autoridade da Escritura; Lutero em Worms; o início do movimento da Reforma; necessidade de uma supervisão; colocando a Escritura ao alcance do povo; catecismos e hinos; ministros para as paróquias; tentativas teológicas para superar o conflito religioso; as guerras religiosas e a paz de Augsburgo; o Concílio de Trento.
O quarto capítulo, sob a epígrafe “Temas básicos da teologia de Lutero à luz dos diálogos Luterano-Católico-Romanos”, refere “a estrutura deste capítulo; a herança medieval de Martinho Lutero; Teologia monástica e mística; justificação; Eucaristia; Ministério; Diálogo luterano-católico sobre o ministério; Escritura e Tradição; “olhando para frente: o Evangelho e a Igreja”; em direção a um consenso.
O capítulo quinto, sob o título “Chamados à comemoração comum”, aborda com pertinência, os seguintes pontos: “o Batismo: a base para a unidade e a comemoração comum”; preparando a comemoração conjunta; partilhando a alegria no Evangelho; razões para arrependimento e lamento; oração pela unidade; avaliando o passado; reconhecimento católico dos pecados contra a unidade; reconhecimento luterano dos pecados contra a unidade.
Por fim, o sexto capítulo enuncia e explica os “Cinco imperativos ecuménicos”.
Nesta reflexão, será oportuno determo-nos no tema “A primeira comemoração ecuménica”, do capítulo I, e nos “Cinco imperativos ecuménicos”, do capítulo VI.
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A primeira comemoração ecuménica
“A primeira comemoração ecuménica” é abordada nos números 7 a 12 do documento.
Na verdade, em 2017, celebrar-se-á, pela primeira vez, um centenário da Reforma em ambiente ecuménico e o cinquentenário do diálogo luterano-católico. Como parte do movimento ecuménico, salientam-se, nos últimos 50 anos, “a oração conjunta, o culto conjunto e o serviço conjunto às suas comunidades”, que enriqueceram católicos e luteranos, levando a que juntos hajam enfrentado “desafios políticos, sociais e económicos”. Além disso, a evidência da espiritualidade espelhada nos casamentos interconfessionais induziu “novas percepções e questões” e luteranos e católicos passaram a ser “capazes de reinterpretar as suas tradições teológicas e as suas práticas, reconhecendo as influências que tiveram uns sobre os outros”.
Neste novo contexto, impõe-se uma nova abordagem, pelo que não são de repetir “antigos relatos da Reforma”, com “perspetivas luteranas e católicas” separadas e até opostas.
Há que selecionar da grande abundância de momentos históricos os elementos que permitam construir um todo com sentido, minorando a síndrome de conflito entre as Confissões e, sobretudo, anulando a hostilidade aberta que chegou a existir.
E, porque “a lembrança histórica teve consequências materiais para as relações das Confissões cristãs entre si”, torna-se a recordação ecuménica comum da Reforma “tão importante e difícil”. Se muitos católicos associam a palavra “Reforma” principalmente à divisão da Igreja, muitos luteranos associam-na preferencialmente à “descoberta do Evangelho”, à “certeza da fé e da liberdade”. Será, pois, necessário ter em boa consideração ambos os pontos de partida, de modo a relacionar as duas perspetivas e pô-las em diálogo.  
O Cristianismo tornou-se cada vez mais global no último século. De facto, hoje existem cristãos de várias confissões por todo o mundo; cresce o número de cristãos no Sul, enquanto no Norte diminui. As Igrejas do Sul, assumindo importância cada vez maior no cristianismo mundial, não percebem facilmente os conflitos confessionais do século XVI como seus próprios conflitos. E, em países de Cristianismo secular, muitos deixaram as Igrejas ou esqueceram as respetivas tradições eclesiais. Nessas tradições, as Igrejas confiaram às sucessivas gerações “o que receberam do seu encontro com a Sagrada Escritura”, ou seja:
“Uma compreensão de Deus, da humanidade e do mundo em resposta à revelação de Deus em Jesus Cristo; a sabedoria desenvolvida ao longo de gerações de experiência de vida inteira de compromisso de cristãos com Deus; e o tesouro de formas litúrgicas, hinos e orações, práticas catequéticas e serviços diaconais”.
O esquecimento das preditas tradições levou a que muito do que dividiu no passado a Igreja esteja hoje virtualmente esquecido. Todavia, o Ecumenismo não pode estribar-se nesse esquecimento. Tem, antes, de recordar a história da Reforma em 2017 para fazer a sua sublimação, percebendo o que deve ser preservado do “que foi motivo de luta das duas confissões no século XVI”. Com efeito, os nossos antepassados estavam convictos de que “havia algo pelo que valia a pena lutar”, como “necessário para a vida com Deus”. Depois, tem de se colocar a tradição esquecida ao alcance dos contemporâneos, para que os seus dados não permaneçam apenas como objetos de interesse de antiquário ou de museu, mas “apoiem uma existência cristã vibrante”, “sem abrir novas divisões entre os cristãos de diferentes confissões” e fazendo esbater as que historicamente foram estabelecidas.
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Os cinco imperativos ecuménicos
São enunciados e explicados nos números 238 a 245. Católicos e Luteranos têm consciência de que eles e as suas comunidades de fé pertencem ao corpo único de Cristo, vindo a crescer “a consciência de que as lutas do século XVI estão superadas” e foram ultrapassadas “as razões para condenar mutuamente a fé do outro. Sentem-se “convidados a pensar a partir da perspetiva da unidade do Corpo de Cristo” e a “buscar o que possa trazer essa unidade à expressão e servir à comunidade do Corpo de Cristo”, pois, no Batismo reconhecem-se uns aos outros como cristãos. É esta uma orientação que “requer uma contínua conversão do coração”. Neste sentido, luteranos e católicos identificam 5 imperativos para comemorarem juntos no ano de 2017.
Primeiro: Mesmo que as diferenças sejam mais facilmente visíveis e experienciadas, a fim de reforçar o que existe de comum, devem partir sempre da perspetiva da unidade e não da perspetiva da divisão.
No curso da história, as Confissões definiram-se uma contra a outra levando a unilateralidades persistentes, “quando se trata dalguns problemas como o da autoridade”. Porque os problemas originados pelos conflitos só podem ser resolvidos (ou, ao menos, encaminhados com esforços comuns) para aprofundar e reforçar a comunhão, é precisa a experiência, encorajamento e crítica mútua.
Segundo: Luteranos e católicos precisam de se deixar transformar continuamente pelo encontro com o outro e pelo testemunho mútuo da fé.
Na verdade, através do diálogo, aprenderam muito e apreciaram o facto de a comunhão entre eles poder ter “diferentes formas e graus”. No atinente a 2017, devem
“Renovar os seus esforços com gratidão por tudo o que se alcançou, com paciência e perseverança, pois o caminho pode ser mais longo do que o esperado; com zelo, que não permite dar-se por satisfeito com a situação atual; com amor uns pelos outros em tempos de discordância e conflito; com fé no Espírito Santo; com esperança de que o Espírito Santo vai realizar a oração de Jesus ao Pai; e com oração sincera de que isso vá acontecer.”.
Terceiro: Católicos e luteranos devem comprometer-se outra vez na busca da unidade visível, para compreenderem o seu significado em concreto e buscar sempre de novo esse objetivo.
Tendo a tarefa de manifestar sempre de novo aos seus membros a compreensão do Evangelho e da fé cristã bem como da Tradição da Igreja, o desafio consiste em “evitar uma retomada da tradição para cair nas antigas oposições confessionais”.
Quarto: Luteranos e católicos devem procurar juntos redescobrir a força do Evangelho de Jesus Cristo para o nosso tempo.
O compromisso ecuménico com a unidade da Igreja não pode servir só Igreja, mas também o mundo, “de tal modo que o mundo creia”. Assim, a tarefa missionária do ecumenismo tornar-se-á tanto maior quanto mais a nossa sociedade se tornar mais pluralista em termos religiosos – o que requer “mudança de pensamento e metanoia (conversão)”.
Quinto: Católicos e luteranos, na sua pregação e serviço ao mundo, devem testemunhar juntos a graça de Deus.
O caminho ecuménico possibilita a luteranos e católicos a apreciação conjunta das visões de Lutero sobre “a sua experiência espiritual no Evangelho da justiça de Deus, que é também a sua misericórdia”. No prefácio das suas obras latinas (1545), Lutero confessava que “pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite”, alcançara uma nova compreensão de Rm 1,17:
“Aqui senti que eu nasci de novo e entrei no próprio paraíso pelos portões abertos. Em seguida, uma nova face de toda Escritura se me mostrou (...). Mais tarde li O Espírito e a Letra, de Agostinho e, contra a minha expectativa, descobri que ele também interpretava a justiça de Deus de maneira semelhante, como a justiça com a qual Deus nos reveste quando nos justifica.”.
Em consonância com estes 5 imperativos ecuménicos, a memória dos alvores da Reforma será adequada, se luteranos e católicos se dispuserem a ouvir juntos o Evangelho de Jesus Cristo e se “se deixarem chamar outra vez para a comunidade com o Senhor”. Então estarão unidos na missão comum que o n.º 18 da DCDJ (Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação) descreve:
“Luteranos e Católicos compartilham o objetivo comum de confessar em tudo a Cristo, no qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas, como único mediador (cf 1Tm 2,5s) pelo qual Deus, no Espírito Santo, se dá a si mesmo e derrama os seus dons renovadores”.
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Chamados à comemoração comum da Reforma e dos demais eventos históricos em Igreja, não podemos olvidar que é o Batismo a base da unidade e, por consequência, desta comemoração comum. Depois, há que vincar que “a Igreja é o corpo de Cristo” redivivo. E, “assim como existe apenas um Cristo, assim também ele tem apenas um corpo” e, “pelo Batismo, homens e mulheres tornam-se membros desse corpo” e testemunham a Ressurreição.
Ora, se católicos e luteranos estão vinculados uns ao outros no corpo de Cristo como seus membros, então é verdadeiro o que Paulo diz a respeito deles em 1Cor 12,26:
“Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele”.
E, recordando em conjunto a Reforma, estão a levar a sério o Batismo e edificam a metanoia.

2017.04.08 – Louro de Carvalho

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