sábado, 15 de abril de 2017

Mesmo depois da morte O quiseram calar e impedir de andar

Sábado Santo parece a muitos cristãos o dia da desolação. Cristo está morto, está escondido no túmulo. Porém, outros esquecem a meditação, distraídos nos preparativos dos bolos e folares, nas viagens ou nas refeições. E o silêncio eloquente de Cristo no sepulcro merece a nossa reflexão e o nosso compromisso com o Mistério Pascal
Em termos operativos, a jornada pascal, iniciada com a entrada régia e messiânica do Senhor na sua Cidade no primeiro dia da semana maior, terminou ontem, sexta-feira, o sexto dia. Ora, se os Padres da Igreja entendem, na profundidade do seu sentido, a Páscoa de Cristo como uma nova Criação, bem mais importante que a primeira, então o auge desta criação acontece em sexta-feira, quando o Senhor exclama: “Tudo está consumado” (Jo 19,30).
Com efeito, a morte na Cruz constitui a efetiva entrega do Corpo e Sangue de Jesus pelo perdão dos pecados oferecido a todas as pessoas que O acolherem, a mesma entrega feira em comunhão eucarística e humana no mistério do pão e do vinho consagrados e distribuídos em quinta-feira – aliança firmada já não no sangue de animais, mas no precioso sangue de Cristo e cujo conteúdo é o mandamento novo do amor por todos, mesmo inimigos, perseguidores e algozes, sendo que ao serviço desta nova e definitiva aliança está o ministério do sacerdócio, sem esquecermos o sacerdócio comum a todos os discípulos, recebido no Batismo, que nos incorpora em Cristo.
Mas a tarde de sexta-feira tem mais elementos de testamento d’ Aquele que ia morrer: a explicitação do Reino que chegou para os arrependidos, para todos os que aceitam a lição da Cruz: “Hoje (e não só amanhã) estarás comigo no Paraíso” (Lc 22,43); a entrega do discípulo amado à Mãe de Jesus e a entrega da Mãe de Jesus ao discípulo amado, que A recebe em sua casa, o protótipo da entrega de Maria a todos nós para nos dizer que “eles não têm vinho” ou que façamos “tudo o que Ele disser” (cf Jo 2,3.5); e a abertura do lado do Cristo morto, de que jorrou a água do Batismo que gera a Igreja e o sangue da Eucaristia que, unido à água do batismo, a nutre e fortifica.
Assim, estando tudo feito, o Senhor descansou da sua obra, tal como o Criador do Livro do Génesis descansou ao sétimo dia, o sábado. Na verdade, o sepulcro do Senhor significa, em termos da Criação, o dia do repouso, a antecipar o repouso eterno do Senhor de que estão excluídos os que fecharam os ouvidos à voz do Senhor e foram tecendo duros murmúrios de insensatez e maldade sobre a obra divina e as promessas de Deus (cf Sl 95/94,7-11). Porém, nós, os que acreditamos na Boa Nova, entraremos no repouso do Senhor (cf Heb 4,3). E esse repouso aparentemente tem a forma do túmulo a que desceremos, em que entraremos ou nos cremarão, mas, na realidade, é a morada eterna no Reino preparado para nós desde o princípio do mundo (cf Mt 25,34). Com efeito, para os que creem no Senhor, “a vida não acaba, apenas se transforma e, desfeita a morada deste exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna” (do Prefácio dos Defuntos I).  
Além disso, o aparente repouso tumular do Senhor esconde a enorme ação que Ele desenvolve mercê da morte redentora que sofreu por nós, pelos homens de todos os tempos. Na verdade, os justos do Antigo Testamento, conduzidos pela Lei de Deus como que por um pedagogo, foram justificados pela fé, esperando os dias que haviam de vir. O sangue dos animais, que era aspergido sobre o povo em sinal da aliança estabelecida com Deus, só valia enquanto símbolo prefigurante do Sangue de Cristo que seria derramado nos últimos tempos (A própria Virgem Maria foi imaculada na sua conceção graças aos méritos do Filho). É toda esta ação que é sintetizada na fórmula do Símbolo dos Apóstolos: “desceu à mansão dos mortos”. Tudo isto, porque os seres humanos não entendem os mistérios a não ser que sejam enquadrados nas categorias de tempo, lugar e modo – categorias que Deus ultrapassa.
Neste sentido, uma antiga homilia de Sábado Santo (PG 43, 439.451.462-463), do século IV, refere:
Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos. Deus morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos.”.
E prossegue:
“Entrou o Salvador onde eles estavam, levando em suas mãos a arma vitoriosa da cruz. Quando Adão, nosso primeiro pai, O viu, batendo no peito, cheio de admiração, exclamou para todos os demais: ‘O meu Senhor esteja com todos’. E Cristo respondeu a Adão: ‘E com o teu espírito’. E, tomando-o pela mão, levantou-o dizendo: ‘Desperta, tu que dormes; levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará’.”.
Obviamente, Adão é o protótipo de todo o homem que foi criado por Deus e precisa de redenção. Por isso, o que se diz de Adão diz-se do homem de todos os tempos. E a predita homilia termina com palavras similares das dos Salmo 8 e 82 e do Evangelho de São João:
“O inimigo expulsou-te da terra do paraíso; Eu, porém, já não te coloco no paraíso, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore, símbolo da vida; mas Eu, que sou a vida, estou agora junto de ti. Ordenei aos querubins que te guardassem como servo; agora ordeno aos querubins que te adorem como a Deus, embora não sejas Deus. ‘Está preparado o trono dos querubins, prontos os mensageiros, construído o tálamo, preparado o banquete, adornadas as moradas e os tabernáculos eternos, abertos os tesouros, preparado para ti desde toda a eternidade o reino dos Céus’.”
Na verdade, o salmista canta:
“Que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares? Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste.” (Sl 8, 5-6).
E também:
“Eu disse: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo” (Sl 82/81,6).
E o Evangelho de São João tem a seguinte passagem:
“Jesus respondeu-lhes: ‘Não está escrito na vossa Lei: ‘Eu disse: vós sois deuses’? Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus – e a Escritura não se pode pôr em dúvida – a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é que dizeis: ‘Tu blasfemas’, por Eu ter dito: ‘Sou Filho de Deus’? Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; mas se as faço, embora não queirais acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.” (Jo 10,34-38).
A palavra “Elohim” refere-se usualmente ao único Deus, mas também tem outros usos. Chamar “deus” a um ser humano indica 4 coisas: que ele tem autoridade sobre os outros homens; que o poder que ele exerce deve ser acatado; que o poder e a autoridade que detém lhe vêm de Deus, o qual é retratado como julgando toda a terra; e que, por graça de Deus, participa da vida de Deus.
***
Sendo assim, talvez a Virgem Santa Maria, Mãe de Jesus e nossa Mãe, no seu maternal instinto e desvelo, Ela que guardava em seu coração atento todas aquelas coisas que via e ouvia (cf Lc 2, 19.51), nos possa conduzir no clima de silêncio eloquente do túmulo de Cristo e nos ajude a preparar a mente e o coração para a festa da Ressurreição e para a participação na vida divina através do festim do “banquete – adornadas as moradas e os tabernáculos eternos, abertos os tesouros – preparado para nós desde toda a eternidade, o reino dos Céus”.
Maria é, pois, o amor que preenche o vazio da ausência, é a certeza da Ressurreição do Filho.
A este propósito, a Rádio Vaticano publicou uma oportuna reflexão sobre a incidência mariana do Mistério Pascal no dia de hoje, de cujas linhas-força se faz aqui ressonância, embora com a introdução de segmentos discursivos de ordem pessoal.
Se ontem revivemos, na Paixão do Messias, os momentos em que o Verbo Se fez carne até ao ponto de assumir todo o destino humano, incluindo a morte, hoje quem nos guia neste itinerário de esperança gloriosa, na pressurosa espera da ressurreição do Senhor, é Maria, a Mãe do Salvador, a Mãe de toda a humanidade, a Nossa Mãe.
Como a generalidade das verdadeiras mulheres, Maria transporta no coração a abertura ao outro. E a Senhora da Boa Nova é a mulher que eleva esta abertura genuína do coração à sublimidade da perfeição. O seu amor faz que a transitória ausência de Jesus não seja o reino do vazio, mas a experiência da esperança certa, segura e confiante. Ela sabe que a Ressurreição está a chegar.
Maria reagrupa os amigos de Jesus, o grupo de sinceros amigos de Cristo que creem na sua Ressurreição. Apesar de a solidão de Maria ser diferente da solidão dos Apóstolos, também eles estão sós. Maria tem a certeza de que a morte não terá a palavra final e a que “a vida triunfará”.
Ora nós, os seguidores de Jesus, não temos a certeza fundada que Maria sente e testemunha. Mesmo crendo no Senhor, a nossa fé é frágil, vítima das provações quotidianas e de frequentes ciladas. Por isso, nós rezamos ao Senhor da Vida para que Ele nos aumente a fé e fortifique a esperança. Por vezes, a morte parece que vem fazer desabar os nossos sonhos e projetos, fazendo-nos esquecer a firme promessa de vida eterna. E haja quem tenha a generosidade de nos confortar em momentos desses.
Neste caso, Maria recebe os apóstolos um a um: João, que chora o amigo, o irmão em Maria; Pedro, o renegado, a quem ensina que deve confiar apenas em Jesus, que o conhece e o fortifica. E acaba por receber todos os outros Apóstolos, que acabam por se sentir reconfortados e animados na esperança. Ademais, não esquece as discípulas, que também são apóstolas: Maria Madalena; Marta; Maria de Betânia; Maria, mãe de Tiago e de José; Maria, mulher de Clopas; Salomé, a mulher dos filhos de Zebedeu… Maria comunica, de modo terno, a todos a sua paz, a sua fé, a sua esperança.
Convém tentar saber o que Ela nos quer dizer a cada um de nós e o que diria a cada mãe que, como ela, perca o filho na insciência da violência e injustiça humanas ou vítima do absurdo, da doença, do vício, do acidente, da catástrofe, do acaso. Importa perscrutar o que diria a Mãe “às mães dos filhos encarcerados, vítimas da droga, do jogo, do dinheiro fácil” ou às mães “dos filhos que perdem o emprego, que têm diante de si um futuro incerto, vacilante, preocupante”.
Para todos e cada um de nós e para cada uma das nossas angústias Maria tem a palavra de conforto, de consolo; e não só a palavra, mas também e sobretudo a postura acolhedora de quem permite que choremos no seu ombro. É o genuíno refúgio dos pecadores e a eficaz consoladora dos aflitos, a grande rainha dos apóstolos. E é depois da morte do Senhor que ela inaugura este papel junto dos apóstolos, dos pecadores (que negam, traem ou abandonam o Cristo) e dos aflitos.
Deixemo-nos, pois, envolver pela paz consoladora de Maria e que esta paz nos acompanhe sempre que a morte néscia se apresente a querer transtornar o nosso caminho. A ressurreição está próxima! E, assim, este é o dia do eloquente repouso tumular do Cristo Redentor, da sua descida à mansão do mortos e do silêncio fator da Ressurreição que irromperá amanhã.
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Porque é que Lhe puseram a pedra à frente do túmulo e guardas? Para o calarem e lhe tolherem os movimentos? Foi medida inútil. Ele fez na mesma o que tinha a fazer!
2017.04.15 – Louro de Carvalho


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