Todos
os que se pronunciam sobre as questões de justiça no país querem que a justiça
seja administrada de forma célere, imparcial e equitativa e, por mais berrantes
que sejam os casos que vêm à tona, insistem que temos de confiar na justiça e
que ela é igual para todos, não estando ninguém acima da lei.
No
entanto, os caos mediáticos (e
não só) arrastam-se no tempo e criam-se e expectativas sobre processos de
eventuais criminosos que acabam por não dar em nada alegadamente por falta de
provas, insuficiência de provas ou recolha ilegal das mesmas. E, se pensarmos
em processos cíveis, os casos de demora supina no tempo ainda serão mais
frequentes e arrepiantes.
Por
mais que se fale de um pacto de regime para a justiça, os partidos políticos
não encontram forma de se entenderem no quadro de uma plataforma comum que
ultrapasse as malhas de uma legislatura. E menos viável se torna a hipótese de
o pacto de justiça ser construído pelos seus operadores (como chegou a sugerir publicamente o Presidente
da República): juízes, procuradores, advogados e funcionários
judiciais. Neste caso, estaríamos a inverter o quadro de competências
constitucionais, sendo que o múnus legislativo cabe ao Parlamento, constituído
por deputados eleitos por proposta de partidos, bem como ao Governo (nalguns casos), que necessariamente
emana do Parlamento. Não obstante, a 13 de março, o Presidente lembrou o seu apelo,
em setembro de 2016, na abertura do ano judicial, aos parceiros judiciários
para a criação de “plataformas de entendimento” abrindo caminho a um “pacto de
justiça” entre partidos. E, segundo Marcelo, “o apelo foi ouvido e algumas convergências se foram
desde logo esboçando, como a relativa às custas judiciais”. E especificou:
“Quatro grupos de
trabalho, integrados por juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e
funcionários da justiça, encontram-se concentrados nas áreas do acesso ao
direito, da organização judiciária, da justiça económica e do ataque à
corrupção, preparando propostas a apresentar ao Governo e depois à Assembleia
da República”.
E
disse que o estatuto das magistraturas é um tema prioritário a merecer a
atenção governativa.
Questionado
pelos jornalistas se pensa ser possível haver convergências neste setor,
respondeu:
“Eu acho que sim, eu acho
que sim. Os parceiros da justiça estão a trabalhar nisso, têm grupos de
trabalho, têm propostas concretas: já entregaram as custas judiciais, vão
entregar outras ao Governo. O Governo está a estudar o estatuto das
magistraturas.”.
***
Marcou
a comunicação social a notícia do arquivamento, pelo Ministério Publico, dum
processo relacionado com o BPN em que eram arguidos Oliveira e Costa e Dias
Loureiro, tendo o segundo mostrado desconforto pelo teor do despacho da
procuradora. O advogado (que
foi Governador Civil de Coimbra, Secretário-Geral do
PSD, Ministro dos Assuntos Parlamentares e Ministro da Administração Interna)
pondera levar o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já que a
magistrada que proferiu o despacho declarou ter de o fazer por falta de prova,
mas tê-lo-á carregado de insinuações denotantes de que, apesar da falta de
prova sobre os crimes de que o arguido era indiciado, mantinha a convicção de
que este os praticara. Depois, a meu ver, injusta e descabidamente, acusa o
ex-Presidente Cavaco Silva de não o ter protegido (em razão da amizade) e o atual
Presidente por ter opinião sobre tudo, menos quanto aos direitos humanos.
Ora,
sem pôr o pescoço no cepo pelo zelo da manutenção das amizades da parte de
Cavaco Silva ou sem desdizer do facto de Marcelo ter opinião sobre tudo e sobre
todos, tenho de dizer que Loureiro não tem razão de queixa nesta matéria.
Tê-la-á no tempo (8
anos) em que o processo se arrastou.
Quanto
ao teor do despacho de arquivamento, é possível que a magistrada tenha
ultrapassado a fronteira ténue entre a fundamentação do arquivamento e a
presunção de inocência do arguido no quadro do princípio de que todo o cidadão
se presume inocente até sentença condenatória (ou acórdão) transitada em julgado. Porém, o despacho de
arquivamento – e aqui não entendo como razoável o clamor de que a magistrada
julgou quando o não podia fazer, contrariando o Estado de direito – deve, tal
como o despacho de acusação, referir, embora sinteticamente, os ilícitos ou os
crimes de que o arguido é indiciado e a razão por que se procede ao
arquivamento: se por falta de prova ou se por insuficiência de prova. No
segundo caso, o arquivamento pode ser feito à espera de melhor prova. Mas
parece estarmos a esquecer que o despacho de arquivamento referente a José Sócrates
no âmbito do Freeport referia que os procuradores deixaram de lhe fazer umas
dezenas de perguntas por falta de tempo. E esta, hein?!
Por
outro lado, o princípio da presunção de inocência atinge os operadores judiciais
(que não os observadores) e
sobretudo o tribunal. Não é lícito tolerar-se a abundância de condenatórias fugas
de informação para a praça pública (por descuido, protagonismo ou negócio) ou o espetáculo duma
detenção ou busca domiciliária com transmissão pela TV e, depois, exigir-se aos
cidadãos que tenham o arguido como inocente. É brincar com a justiça, com os
arguidos e com os cidadãos. E o facto de não haver condenação não significa que
não tenha havido a real prática dos crimes indiciados. O tribunal condena só à
face de provas, não dando lições de verdade à opinião pública. E não inocenta
ninguém: apenas declara que não há provas que levem à condenação.
***
Ora
porque a sanidade da justiça não é um dado fácil e não complexo, têm-se
multiplicado as iniciativas sobre a sua prática. Neste aspeto, queria referir
um seminário sob o título “Justiça igual
para todos”, iniciativa da Associação 25 de Abril, realizado no passado dia
13 de março na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com o objetivo de
analisar “O direito constitucional a uma
Justiça Igual para Todos continua por cumprir”.
Os temas
abordados foram: funcionamento e asfixia
dos tribunais; privatização da
justiça e tribunais arbitrais; processo
penal; e acesso e custos da justiça.
Participaram: o
Presidente da República, o Presidente
da Fundação Calouste Gulbenkian, o Presidente da Direção da Associação 25 de
Abril, a Ministra da Justiça, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a
Procuradora-Geral da República, o Bastonário da Ordem dos Advogados, o Diretor
de “O Referencial” (órgão de comunicação social da Associação 25 de Abril) e o Presidente
da Assembleia da República, além de juristas, advogados, jornalistas e
sociólogos.
***
No predito seminário,
o Presidente da República considerou
que há um sentimento generalizado de “desconforto” com a Justiça, que para os
mais críticos se compara à “punição eterna de Sísifo”, apesar de “muitos e bons
passos” terem sido dados. E declarou:
“Tudo somado, sentimos todos um desconforto, que não é
o de Sísifo, mas que existe. Por cada centímetro de avanço há meio, dirão os
otimistas, há dois ou três, garantirão os pessimistas, perdidos”.
Marcelo, sobre a evolução e a atual situação do sistema de Justiça,
reiterou a necessidade de convergências neste setor que envolvam os operadores
judiciários, considerando:
“Teremos assim, ainda que de modo incompleto e, por
conseguinte, imperfeito, um quadro que faz recordar aos mais críticos uma das
obras marcantes da adolescência de alguns de nós, como foi o meu caso. ‘O Mito de Sísifo’, de Albert Camus”.
Referiu que essa obra se inspira:
“Na punição eterna de Sísifo de acordo com a mitologia
grega: a condenação a empurrar um pedregulho de mármore até ao cume da
montanha, vivendo o desespero de ver o penedo no momento decisivo rolar
montanha abaixo, fazendo-o recomeçar do início o exaustivo labor. […] Assim
seria, para muitos, a Justiça hoje, em Portugal, como por muitas outras
latitudes e longitudes”.
Abordou o ponto de vista dos legisladores, que louvam os seus diplomas, dos
magistrados, que nos contam o denodo com que investigam ou julgam, com
escassíssimos meios, os resultados animadores a que chegam, e da comunicação
social, que acede quase em tempo real ao que pode e deve ser conhecido e
escrutinado no sistema. E disse que nenhum legislador assume “o odioso de
tornar formalmente acessível” o segredo de justiça, invocando os direitos
fundamentais ou os valores da investigação – sendo certo que, por regra, a
violação dessas interdições nunca levará ninguém a qualquer condenação. E, no
final, concluiu:
“A verdade manda que se diga que muitos e bons passos
foram dados, têm sido dados nas leis, nas estruturas e nas vias disponíveis
para um melhor sistema de Justiça. E, no entanto, tudo somado, sentimos todos
um desconforto.”.
***
A
Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, salientou que um “enorme volume das
execuções e insolvências inundam o sistema”, admitindo que há uma “má relação”
entre os cidadãos e a justiça e que a asfixia dos tribunais está em vias de
perder a atualidade.
Falava
no painel “O funcionamento e a asfixia
dos tribunais”, onde destacou a celeridade e eficiência da justiça,
sobretudo na resposta à pequena e média criminalidade, enquanto o volume das
insolvências e ações executivas/cobranças de dívidas são os maiores
responsáveis pela asfixia dos tribunais. Com efeito, “o enorme volume das
execuções e insolvências inunda o sistema” e, depois da crise de 2008, “as
insolvências dispararam para níveis perturbadores”.
Sublinhando
que os “tribunais foram abalados pelo colapso económico”, apontou o papel nefasto
da crise económica e duma década de crédito descontrolado e de endividamento
das famílias, que fez disparar as pendências. E, sobre a perceção dos cidadãos
sobre a justiça, disse que os processos mediáticos não são “estatisticamente
relevantes”, apesar de ser a partir das notícias destes que, muitas vezes, é
formada a opinião dos cidadãos sobre o sistema judiciário.
A
Ministra enumerou algumas reformas
legislativas e programas lançados pelo seu Ministério, como a Justiça + Próxima e o Capitalizar, pensados no sentido de
descongestionar os tribunais.
Porém,
ressalvou não se poder “andar de reforma em reforma sem as deixar respirar”.
No
mesmo painel, o antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça acentuou o facto
de a crise da justiça ser assunto muito comentado, durante décadas, mesmo antes
do 25 de abril.
Para
Noronha do Nascimento, “a concessão de crédito descontrolado” após entrada de
Portugal na UE, reflete-se ainda hoje no número de ações de execução nos
tribunais, representando mais de 65% das ações totais nos tribunais.
O
advogado João Correia, antigo secretário de Estado da Justiça, assumiu-se no
painel como provocador e destacou a falta de vontade do poder político em discutir
as questões da justiça, apontando o dedo aos órgãos de soberania:
“O poder está desfasado é
indiferente a tudo isto da justiça. Recuso que recaia sobre os magistrados e
juízes a culpa da crise da justiça.”.
***
Os magistrados querem mais juízes de execução nos
tribunais. Caso contrário, as cobranças poderão ter de sair dos tribunais. E sustentam
que as taxas de justiça devem ser cobradas em função dos rendimentos de quem
acede aos tribunais (como
as taxas moderadoras) –
não segundo o valor da ação – e que o sistema informático deve ser renovado e
acessível a todos. Estas são duas das propostas que juízes, Ministério Público,
agentes de execução e advogados levarão à Ministra da Justiça e que serão
apresentadas até junho – nos que serão os primeiros passos dos operadores
judiciários em direção a um pacto de Justiça, como sugeriu Marcelo.
O que reúne mais consenso – já demonstrado pelos vários
grupos parlamentares – é a redução das taxas de justiça e a revisão do modelo
do apoio judiciário.
Aliás, a hipótese de redução das custas foi um trabalho
inicial do bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Guilherme de Figueiredo. Mesmo antes da sua tomada de posse (em janeiro deste ano), já o líder dos 29 mil advogados se
tinha reunido com os grupos parlamentares e avançava essa intenção à
comunicação social como prioridade nas primeiras entrevistas que deu e
partilhou tal intenção com a Ministra da Justiça e o Presidente da República.
Ana Barona, vogal do Conselho Geral da OA, assume a urgência
de levar à Ministra uma proposta “semelhante ao que existe em Espanha em que as
taxas são gratuitas para as pessoas singulares”, bem como “a atualização da
tabela de honorários dos advogados oficiosos que não são revistas desde 2004”.
Por seu turno, Guilherme de Figueiredo admite que é preciso
trilhar caminho “para a criação de um sistema informático único para todos os
tribunais, já que o Citius está
sobredimensionado”.
Segundo João Paulo Raposo, Secretário-Geral da Associação Sindical
dos Juízes Portugueses, esse sistema esse será “acessível a todos os operadores
judiciários, mas não numa perspetiva de “big brother”. E o bastonário da OA
adianta que serão apresentadas “propostas para melhor gerir os tribunais e no
caminho da especialização”.
O “buraco negro” dos tribunais (cerca de 70% do total de ações
pendentes) são as ações
executivas (de cobrança
de dívidas). Em
tribunais como os de Sintra, Almada, Lisboa, Loures, Porto ou Maia, cada juiz
tem em média 20 mil execuções. João Paulo Raposo assegura que os juízes estão
cientes de que “agora tem mesmo de se pôr a mão na massa” e, por isso, é que pedem
com urgência mais juízes de execução”. Caso isso não aconteça, sustenta que se opte
por um regime semelhante ao da Suécia, ou seja, atribuir a responsabilidade da execução
a uma entidade administrativa autónoma – privada ou pública – “que funcione
como regulador da atividade dos agentes de execução”. Não concordando
necessariamente com a solução, explica que algo tem mesmo de mudar, “em vez de
se pôr constantemente nos tribunais o ónus dos atrasos” (como, penso eu, deve deixar de se pôr
a culpa nas leis ou nos ditos políticos). E admite que tem de haver uma garantia dada aos
investidores: “dizermos se as dívidas vão ser mesmo cobradas e quando”.
***
E os partidos já deram o primeiro passo para um pacto na
Justiça. PS e PSD concordam que têm de ser reduzidas as taxas de Justiça e alterado
o sistema de apoio judiciário. O Bloco de Esquerda já entregou no Parlamento um
projeto de resolução nesse sentido e o CDS/PP sugere a existência de taxa
moderadora para a Justiça. Já o PCP propõe que seja criada uma unidade de
missão. E Francisca Van Dunem disse no Parlamento que está a ser preparada “a
análise do sistema de acesso ao direito, que envolve as questões do
financiamento e do apoio judiciário, no quadro de um grupo de trabalho”.
Oxalá que o pacto tenha agora melhor sorte que o “Pacto para a Justiça” celebrado, em 2006,
entre PS e PSD, que não sobreviveu às táticas políticas e ao imediatismo que marca
as atuações dos dois partidos do, até há pouco tempo, eixo governativo, no
atinente às políticas de Justiça.
2017.04.11 – Louro
de Carvalho
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