terça-feira, 11 de abril de 2017

Do complexo estado da Justiça em Portugal

Todos os que se pronunciam sobre as questões de justiça no país querem que a justiça seja administrada de forma célere, imparcial e equitativa e, por mais berrantes que sejam os casos que vêm à tona, insistem que temos de confiar na justiça e que ela é igual para todos, não estando ninguém acima da lei.
No entanto, os caos mediáticos (e não só) arrastam-se no tempo e criam-se e expectativas sobre processos de eventuais criminosos que acabam por não dar em nada alegadamente por falta de provas, insuficiência de provas ou recolha ilegal das mesmas. E, se pensarmos em processos cíveis, os casos de demora supina no tempo ainda serão mais frequentes e arrepiantes.
Por mais que se fale de um pacto de regime para a justiça, os partidos políticos não encontram forma de se entenderem no quadro de uma plataforma comum que ultrapasse as malhas de uma legislatura. E menos viável se torna a hipótese de o pacto de justiça ser construído pelos seus operadores (como chegou a sugerir publicamente o Presidente da República): juízes, procuradores, advogados e funcionários judiciais. Neste caso, estaríamos a inverter o quadro de competências constitucionais, sendo que o múnus legislativo cabe ao Parlamento, constituído por deputados eleitos por proposta de partidos, bem como ao Governo (nalguns casos), que necessariamente emana do Parlamento. Não obstante, a 13 de março, o Presidente lembrou o seu apelo, em setembro de 2016, na abertura do ano judicial, aos parceiros judiciários para a criação de “plataformas de entendimento” abrindo caminho a um “pacto de justiça” entre partidos. E, segundo Marcelo, “o apelo foi ouvido e algumas convergências se foram desde logo esboçando, como a relativa às custas judiciais”. E especificou:
“Quatro grupos de trabalho, integrados por juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e funcionários da justiça, encontram-se concentrados nas áreas do acesso ao direito, da organização judiciária, da justiça económica e do ataque à corrupção, preparando propostas a apresentar ao Governo e depois à Assembleia da República”.
E disse que o estatuto das magistraturas é um tema prioritário a merecer a atenção governativa.
Questionado pelos jornalistas se pensa ser possível haver convergências neste setor, respondeu:
“Eu acho que sim, eu acho que sim. Os parceiros da justiça estão a trabalhar nisso, têm grupos de trabalho, têm propostas concretas: já entregaram as custas judiciais, vão entregar outras ao Governo. O Governo está a estudar o estatuto das magistraturas.”.
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Marcou a comunicação social a notícia do arquivamento, pelo Ministério Publico, dum processo relacionado com o BPN em que eram arguidos Oliveira e Costa e Dias Loureiro, tendo o segundo mostrado desconforto pelo teor do despacho da procuradora. O advogado (que foi Governador Civil de Coimbra, Secretário-Geral do PSD, Ministro dos Assuntos Parlamentares e Ministro da Administração Interna) pondera levar o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já que a magistrada que proferiu o despacho declarou ter de o fazer por falta de prova, mas tê-lo-á carregado de insinuações denotantes de que, apesar da falta de prova sobre os crimes de que o arguido era indiciado, mantinha a convicção de que este os praticara. Depois, a meu ver, injusta e descabidamente, acusa o ex-Presidente Cavaco Silva de não o ter protegido (em razão da amizade) e o atual Presidente por ter opinião sobre tudo, menos quanto aos direitos humanos.
Ora, sem pôr o pescoço no cepo pelo zelo da manutenção das amizades da parte de Cavaco Silva ou sem desdizer do facto de Marcelo ter opinião sobre tudo e sobre todos, tenho de dizer que Loureiro não tem razão de queixa nesta matéria. Tê-la-á no tempo (8 anos) em que o processo se arrastou.
Quanto ao teor do despacho de arquivamento, é possível que a magistrada tenha ultrapassado a fronteira ténue entre a fundamentação do arquivamento e a presunção de inocência do arguido no quadro do princípio de que todo o cidadão se presume inocente até sentença condenatória (ou acórdão) transitada em julgado. Porém, o despacho de arquivamento – e aqui não entendo como razoável o clamor de que a magistrada julgou quando o não podia fazer, contrariando o Estado de direito – deve, tal como o despacho de acusação, referir, embora sinteticamente, os ilícitos ou os crimes de que o arguido é indiciado e a razão por que se procede ao arquivamento: se por falta de prova ou se por insuficiência de prova. No segundo caso, o arquivamento pode ser feito à espera de melhor prova. Mas parece estarmos a esquecer que o despacho de arquivamento referente a José Sócrates no âmbito do Freeport referia que os procuradores deixaram de lhe fazer umas dezenas de perguntas por falta de tempo. E esta, hein?!  
Por outro lado, o princípio da presunção de inocência atinge os operadores judiciais (que não os observadores) e sobretudo o tribunal. Não é lícito tolerar-se a abundância de condenatórias fugas de informação para a praça pública (por descuido, protagonismo ou negócio) ou o espetáculo duma detenção ou busca domiciliária com transmissão pela TV e, depois, exigir-se aos cidadãos que tenham o arguido como inocente. É brincar com a justiça, com os arguidos e com os cidadãos. E o facto de não haver condenação não significa que não tenha havido a real prática dos crimes indiciados. O tribunal condena só à face de provas, não dando lições de verdade à opinião pública. E não inocenta ninguém: apenas declara que não há provas que levem à condenação.
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Ora porque a sanidade da justiça não é um dado fácil e não complexo, têm-se multiplicado as iniciativas sobre a sua prática. Neste aspeto, queria referir um seminário sob o título “Justiça igual para todos”, iniciativa da Associação 25 de Abril, realizado no passado dia 13 de março na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com o objetivo de analisar “O direito constitucional a uma Justiça Igual para Todos continua por cumprir”.
Os temas abordados foram: funcionamento e asfixia dos tribunais; privatização da justiça e tribunais arbitrais; processo penal; e acesso e custos da justiça.
Participaram: o Presidente da República, o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, o Presidente da Direção da Associação 25 de Abril, a Ministra da Justiça, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a Procuradora-Geral da República, o Bastonário da Ordem dos Advogados, o Diretor de “O Referencial” (órgão de comunicação social da Associação 25 de Abril) e o Presidente da Assembleia da República, além de juristas, advogados, jornalistas e sociólogos. 
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No predito seminário, o Presidente da República considerou que há um sentimento generalizado de “desconforto” com a Justiça, que para os mais críticos se compara à “punição eterna de Sísifo”, apesar de “muitos e bons passos” terem sido dados. E declarou:
“Tudo somado, sentimos todos um desconforto, que não é o de Sísifo, mas que existe. Por cada centímetro de avanço há meio, dirão os otimistas, há dois ou três, garantirão os pessimistas, perdidos”.
Marcelo, sobre a evolução e a atual situação do sistema de Justiça, reiterou a necessidade de convergências neste setor que envolvam os operadores judiciários, considerando:
“Teremos assim, ainda que de modo incompleto e, por conseguinte, imperfeito, um quadro que faz recordar aos mais críticos uma das obras marcantes da adolescência de alguns de nós, como foi o meu caso. ‘O Mito de Sísifo’, de Albert Camus”.
Referiu que essa obra se inspira:
“Na punição eterna de Sísifo de acordo com a mitologia grega: a condenação a empurrar um pedregulho de mármore até ao cume da montanha, vivendo o desespero de ver o penedo no momento decisivo rolar montanha abaixo, fazendo-o recomeçar do início o exaustivo labor. […] Assim seria, para muitos, a Justiça hoje, em Portugal, como por muitas outras latitudes e longitudes”.
Abordou o ponto de vista dos legisladores, que louvam os seus diplomas, dos magistrados, que nos contam o denodo com que investigam ou julgam, com escassíssimos meios, os resultados animadores a que chegam, e da comunicação social, que acede quase em tempo real ao que pode e deve ser conhecido e escrutinado no sistema. E disse que nenhum legislador assume “o odioso de tornar formalmente acessível” o segredo de justiça, invocando os direitos fundamentais ou os valores da investigação – sendo certo que, por regra, a violação dessas interdições nunca levará ninguém a qualquer condenação. E, no final, concluiu:
“A verdade manda que se diga que muitos e bons passos foram dados, têm sido dados nas leis, nas estruturas e nas vias disponíveis para um melhor sistema de Justiça. E, no entanto, tudo somado, sentimos todos um desconforto.”.

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A Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, salientou que um “enorme volume das execuções e insolvências inundam o sistema”, admitindo que há uma “má relação” entre os cidadãos e a justiça e que a asfixia dos tribunais está em vias de perder a atualidade.
Falava no painel “O funcionamento e a asfixia dos tribunais”, onde destacou a celeridade e eficiência da justiça, sobretudo na resposta à pequena e média criminalidade, enquanto o volume das insolvências e ações executivas/cobranças de dívidas são os maiores responsáveis pela asfixia dos tribunais. Com efeito, “o enorme volume das execuções e insolvências inunda o sistema” e, depois da crise de 2008, “as insolvências dispararam para níveis perturbadores”.
Sublinhando que os “tribunais foram abalados pelo colapso económico”, apontou o papel nefasto da crise económica e duma década de crédito descontrolado e de endividamento das famílias, que fez disparar as pendências. E, sobre a perceção dos cidadãos sobre a justiça, disse que os processos mediáticos não são “estatisticamente relevantes”, apesar de ser a partir das notícias destes que, muitas vezes, é formada a opinião dos cidadãos sobre o sistema judiciário.
A Ministra  enumerou algumas reformas legislativas e programas lançados pelo seu Ministério, como a Justiça + Próxima e o Capitalizar, pensados no sentido de descongestionar os tribunais.
Porém, ressalvou não se poder “andar de reforma em reforma sem as deixar respirar”.
No mesmo painel, o antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça acentuou o facto de a crise da justiça ser assunto muito comentado, durante décadas, mesmo antes do 25 de abril.
Para Noronha do Nascimento, “a concessão de crédito descontrolado” após entrada de Portugal na UE, reflete-se ainda hoje no número de ações de execução nos tribunais, representando mais de 65% das ações totais nos tribunais.
O advogado João Correia, antigo secretário de Estado da Justiça, assumiu-se no painel como provocador e destacou a falta de vontade do poder político em discutir as questões da justiça, apontando o dedo aos órgãos de soberania:
“O poder está desfasado é indiferente a tudo isto da justiça. Recuso que recaia sobre os magistrados e juízes a culpa da crise da justiça.”.
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Os magistrados querem mais juízes de execução nos tribunais. Caso contrário, as cobranças poderão ter de sair dos tribunais. E sustentam que as taxas de justiça devem ser cobradas em função dos rendimentos de quem acede aos tribunais (como as taxas moderadoras) – não segundo o valor da ação – e que o sistema informático deve ser renovado e acessível a todos. Estas são duas das propostas que juízes, Ministério Público, agentes de execução e advogados levarão à Ministra da Justiça e que serão apresentadas até junho – nos que serão os primeiros passos dos operadores judiciários em direção a um pacto de Justiça, como sugeriu Marcelo.
O que reúne mais consenso – já demonstrado pelos vários grupos parlamentares – é a redução das taxas de justiça e a revisão do modelo do apoio judiciário.
Aliás, a hipótese de redução das custas foi um trabalho inicial do bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Guilherme de Figueiredo. Mesmo antes da sua tomada de posse (em janeiro deste ano), já o líder dos 29 mil advogados se tinha reunido com os grupos parlamentares e avançava essa intenção à comunicação social como prioridade nas primeiras entrevistas que deu e partilhou tal intenção com a Ministra da Justiça e o Presidente da República.
Ana Barona, vogal do Conselho Geral da OA, assume a urgência de levar à Ministra uma proposta “semelhante ao que existe em Espanha em que as taxas são gratuitas para as pessoas singulares”, bem como “a atualização da tabela de honorários dos advogados oficiosos que não são revistas desde 2004”.
Por seu turno, Guilherme de Figueiredo admite que é preciso trilhar caminho “para a criação de um sistema informático único para todos os tribunais, já que o Citius está sobredimensionado”.
Segundo João Paulo Raposo, Secretário-Geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, esse sistema esse será “acessível a todos os operadores judiciários, mas não numa perspetiva de “big brother”. E o bastonário da OA adianta que serão apresentadas “propostas para melhor gerir os tribunais e no caminho da especialização”.
O “buraco negro” dos tribunais (cerca de 70% do total de ações pendentes) são as ações executivas (de cobrança de dívidas). Em tribunais como os de Sintra, Almada, Lisboa, Loures, Porto ou Maia, cada juiz tem em média 20 mil execuções. João Paulo Raposo assegura que os juízes estão cientes de que “agora tem mesmo de se pôr a mão na massa” e, por isso, é que pedem com urgência mais juízes de execução”. Caso isso não aconteça, sustenta que se opte por um regime semelhante ao da Suécia, ou seja, atribuir a responsabilidade da execução a uma entidade administrativa autónoma – privada ou pública – “que funcione como regulador da atividade dos agentes de execução”. Não concordando necessariamente com a solução, explica que algo tem mesmo de mudar, “em vez de se pôr constantemente nos tribunais o ónus dos atrasos” (como, penso eu, deve deixar de se pôr a culpa nas leis ou nos ditos políticos). E admite que tem de haver uma garantia dada aos investidores: “dizermos se as dívidas vão ser mesmo cobradas e quando”.
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E os partidos já deram o primeiro passo para um pacto na Justiça. PS e PSD concordam que têm de ser reduzidas as taxas de Justiça e alterado o sistema de apoio judiciário. O Bloco de Esquerda já entregou no Parlamento um projeto de resolução nesse sentido e o CDS/PP sugere a existência de taxa moderadora para a Justiça. Já o PCP propõe que seja criada uma unidade de missão. E Francisca Van Dunem disse no Parlamento que está a ser preparada “a análise do sistema de acesso ao direito, que envolve as questões do financiamento e do apoio judiciário, no quadro de um grupo de trabalho”.
Oxalá que o pacto tenha agora melhor sorte que o “Pacto para a Justiça” celebrado, em 2006, entre PS e PSD, que não sobreviveu às táticas políticas e ao imediatismo que marca as atuações dos dois partidos do, até há pouco tempo, eixo governativo, no atinente às políticas de Justiça.
2017.04.11 – Louro de Carvalho

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