Foi
há 43 anos. O fim da tarde do dia 24 marcava o regresso do que atualmente se
designa por interrupção das atividades letivas em razão da quadra pascal. E o Seminário
Maior de Lamego inaugurava o 3.º período escolar com um retiro, orientado pelo
então Cónego Dr. António José Rafael (que iria ser o Bispo de
Bragança-Miranda),
que se prolongou até ao fim da tarde do dia 27, em cujo encerramento os alunos finalistas
do curso de Teologia (Não venha o Padre Portocarrero
perguntar: “Finalistas em quê?”)
foram instituídos no ministério de Leitor. E eu fui um deles.
Confesso
que, sobreavisado de que algo se poderia passar naquela noite, pouco dormi a
pesquisar estações de rádio num aparelho que trouxe de Estrasburgo no outono
anterior. Um pouco espantado ouvi à meia-noite “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, na Rádio Renascença, o que
me pareceu estranho. Fiquei esclarecido quando, várias vezes, na madrugada,
ouvi a mensagem do “Aqui, Posto de Comando
das Forças Armadas…” na Rádio Clube Português, que foi, por isso, denominada
Rádio da Liberdade.
Assim,
quando me questionavam provocatoriamente, em situações de discussão política,
onde é que eu estava no 25 de abril, respondia secamente: “No Seminário Maior
de Lamego”. E assim continuarei a responder sempre que me façam essa pergunta com
boa ou com segunda intenção. É a verdade factual. E, se me perguntam se pessoalmente
sofri pela falta de liberdade, devo dizer que, em termos explícitos, muito
pouco. Apenas umas reprimendas por pôr em causa a bondade de Salazar e não ter
gostado da emenda constitucional pela qual a eleição presidencial deixou de ser
por voto dos eleitores, passando a ser atribuição dum colégio eleitoral composto
adrede para o candidato do regime ter de ganhar – isto não por parte das
autoridades, mas por parte de pessoas da família e/ou do grupo de amigos. É certo
que, numa inauguração de obra pública, o Ministro das Obras Públicas fez
discurso e eu não bati palmas. Ao ser questionado por um senhor, que não conhecia
e me segurava o braço, perguntando porque não batera palmas, respondi naturalmente
que estava distraído.
Porém,
passei, como tantos e tantas, as constrições e a orientação unilateral da
educação, o sacrifício não justificado, as privações da vida, os efeitos colaterais
do atraso económico, a falta de tudo (estrada, transportes, condições
péssimas de habitação, sujeição por tempo demasiado à candeia de petróleo, medo
das autoridade policiais, abuso da autoridade de proximidade, proibições sem
justificação e explicação, sobrecarga de trabalho…), bem como a alguma infração de
regras à espera de que fosse apanhado e castigado. E via o sofrimento de quem
emigrava, os efeitos da guerra colonial.
Vi
o logro da primavera marcelista, que prometia mudanças, mas que, além de
algumas melhorias salariais e sociais, pouco avançou a não ser com a mudança de
nomes – por exemplo, de PIDE para DGS e de UN Para ANP. A guerra colonial continuou
e a crise do petróleo ia ponto tudo em pantanas. Restavam-nos as “conversas em
família” na RTP, o regresso de Dom António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, mas também
a introdução da censura na Rádio Renascença, a chamada ao Continente do Bispo
de Nampula e a expulsão de Moçambique dos Padres Brancos ou a indisposição do
Governo pelo facto de o Papa Paulo VI ter recebido no Vaticano os líderes dos movimentos
de Libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau e Cabo Verde, apelidados no
Continente como chefes dos terroristas. Nos estudos via contradições,
nomeadamente em disciplinas como a História da Civilização, em que muitas matérias
pareciam não condizer com as opções do regime; a Organização Política e Administrativa
da Nação, com uma Constituição Política que preservava as liberdades e a não prisão
sem culpa formada em julgamento e a prática a contradizer o estabelecido ou a
concentração de poder no Chefe do Estado (nomeava e exonerava o Presidente
do Conselho e os ministros e dava poderes constituintes à Assembleia Nacional), quando quem detinha todo o poder
era o Presidente do Conselho; ou a Economia Social e Política (que
no Seminário integrava a disciplina dita de Sociologia), que defendia o sistema de
partidos como suporte da democracia, enquanto o regime os exorcizava, e
sustentava a greve como arma legítima dos trabalhadores a usar em último
recurso, que o regime definia como crime político.
***
Com
a revolução abrilina, iniciada por motivos profissionais de militares, a que se
aliou a componente política, o MFA (Movimento das Forças
Armadas) lançou um
programa que desembocou na instituição da democracia de tipo representativo,
assente numa Constituição elaborada e aprovada em Assembleia Constituinte (não
sem percalços e contradições)
e não em Lei Fundamental plebiscitada, no reconhecimento da autodeterminação e
consequente independência das colónias, terminando a guerra colonial (embora
lhe tenha sucedido a guerra civil em Angola e Moçambique, o golpismo na Guiné e
a anexação de Timor-Leste pela Indonésia)
e o processo de desenvolvimento, a culminar com a adesão à CEE.
Novos
ventos, novas estruturas políticas, sociais e económicas, novo estilo programático
na educação democratizada, serviço nacional de saúde, melhores condições de
trabalho, etc. Porém, tudo hoje parece estar em causa: instituições políticas e
económicas marcadas pela mediocridade e pelo enfeudamento ao poder financeiro,
que estrangula e mata; a economia subterrânea; a economia de casino; o desemprego
e situação opressiva e precária no trabalho; os negócios com a educação e com a
saúde; a alegada pré-falência do sistema de Segurança Social, a insegurança
face à criminalidade frequente e organizada – de sangue e económica; e a ameaça
de terrorismo. Nisto, têm culpa as autoridades portuguesas e quem as suporta, a
União Europeia que enveredou pelas categorias burocrático-capitalistas, a
postura mundial – numa palavra, os grandes interesses. Tudo isto põe em perigo
a democracia, pois, os órgãos do poder são condicionados pela pressão de
interesses económicos e os detentores de cargos públicos podem ser testas de
ferro das interesseiras eminências pardas, nacionais e/ou estrangeiras; e a
soberania, se transferida em maioria para instâncias internacionais, gera o
vazio dos órgãos de poder nacionais. E não haverá Presidente da República que
garanta qualquer funcionamento nem regular nem irregular das instituições democráticas,
que passam a ser fantasmas de democracia. Aliás, para se tirar importância a um
país, fazem-se lá as sessões de que resultam as grandes decisões, embora quem
decida sejam os grandes que ali se deslocam!
***
E
que liberdade trouxe a revolução? Alguns pensam que se trata da possibilidade irresponsável
de fazer tudo o que apetece sem que haja consequências. E, se são contrariados,
aduzem logo o 25 de abril. Outros pensam que a liberdade consiste em escapar aberta
ou encapotadamente aos seus deveres para com o vizinho, o amigo, a família, o
grupo profissional, o Estado. E muitos, em nome da liberdade, são insolentes,
arrogantes e intrometidos nos assuntos que não lhes dizem respeito. Mas a
liberdade é sobretudo um predicado que enforma uma postura pessoal na
comunidade. A pessoa tem de sentir-se livre para fazer o que quer fazer (não
o que apetece) enquanto
fruto duma inteligência lúcida que gera uma avaliação correta dos objetivos traçados,
das circunstâncias configuradoras da situação em que se encontra e da relação
que temos ou queremos ter ou não ter com os demais. A liberdade torna-nos cidadãos.
E, como tal, acedemos à educação, cumprimos os nossos deveres e exercemos os
nossos direitos, respeitamos os direitos dos outros, intervimos com o voto e
com a crítica na criação, renovação e melhoria das instituições, órgãos e
serviços, dispomo-nos a aceitar ser escolhidos (eleitos ou
nomeados) para o
desempenho de cargos de acordo com a nossa condição e fazemos tudo o que
podemos para aumentar, melhorar e otimizar a comunidade a que pertencemos,
sabendo mobilizar os outros para o desenvolvimento da mesma comunidade. E, se falhamos,
sabemos a assumir a nossa responsabilidade, como, se outros falham, sabemos assacar-lhes
as suas responsabilidades, mas sem fazer justiça pelas nossas próprias mãos.
Por
outro lado, ser livre é ser capaz de decidir o nosso destino, fazer tudo o que
a lei não proíbe e não ser obrigado a fazer nada que a lei não obriga. Ser livre
é respeitar os compromissos livremente assumidos e honrar os contratos livremente
outorgados. É ser autónomo e aberto ao outro, ultrapassando caprichos, ideias
meramente pessoais, estados de alma, opinando e respeitando a opinião de outrem
– sempre na firmeza da convicção e na delicadeza do diálogo.
***
Assim,
festejar a liberdade 43 anos depois da generosa revolução abrilina implica
fazer festa, mas não só. É preciso fazer memória do que era antes. E, como as
gerações que viveram antes de 1974 são cada vez mais rarefeitas, importa que a
escola, estribada nos competentes historiadores, faça a promoção da memória.
Como pode celebrar a liberdade quem não sabe o que ela custou e quanto custa a
sua preservação face aos perigos que a espreitam?
Festejar
a liberdade requer vigilância contra os perigos, respeito pelos outros, assunção
dos deveres para com a comunidade, pundonor no trabalho, empatia na relação, patriotismo
inclusivo e cosmopolita, disponibilidade para criar riqueza e para a sua melhor
distribuição.
Festejar
a liberdade postura a homenagem aos seus paladinos, mesmo que as suas ideias
nem sempre tenham coincidido com as nossas.
E
o cidadão português deve ter em conta os
desafios estratégicos de Portugal, designadamente a UE e as relações
transatlânticas são assuntos absolutamente estratégicos para nós, que estão em
jogo neste momento. E, se “Portugal tem feito o seu trabalho na Europa”,
como disse Ferro Rodrigues hoje na sessão comemorativa do 25 de abril, “o
cumprimento das nossas obrigações é condição necessária, mas não suficiente
para o sucesso dos objetivos nacionais e europeus”.
O Presidente do Parlamento esclarece
a questão do populismo de que hoje se fala muito:
“Não basta, a este respeito, falar em
populismo. Acho que é um conceito que normaliza o que não é normal em
democracia: as derivas autoritárias, os ataques à liberdade de imprensa, o
racismo, o fechamento económico e social, o medo da diferença e do pluralismo. Isto
não é nenhum novo populismo. Isto é a velha extrema-direita autoritária,
nacionalista e xenófoba!”.
E, advertindo para a necessidade de vigilância
democrática e reforço da democracia, adverte:
“Às vezes não damos o devido valor
àquilo que temos e esquecemos a dimensão daquilo que conseguimos. Há quem fale
de fadiga democrática e de desencanto europeu. Mas foi a democracia e o projeto
europeu que garantiram o desenvolvimento e o mais duradouro período de paz no
nosso velho continente.”.
Enfim,
festejar a liberdade há de significar a promoção da qualidade de vida de todos,
sobretudo das crianças, jovens e idosos e criar as condições de dignidade de
vida para os pobres e doentes, garantir o acesso à saúde e à educação – para “democracia
e 25 de abril, sempre!”.
2017.04.25 – Louro de Carvalho
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