terça-feira, 25 de abril de 2017

Festejar o Dia da Liberdade 43 anos depois…

Foi há 43 anos. O fim da tarde do dia 24 marcava o regresso do que atualmente se designa por interrupção das atividades letivas em razão da quadra pascal. E o Seminário Maior de Lamego inaugurava o 3.º período escolar com um retiro, orientado pelo então Cónego Dr. António José Rafael (que iria ser o Bispo de Bragança-Miranda), que se prolongou até ao fim da tarde do dia 27, em cujo encerramento os alunos finalistas do curso de Teologia (Não venha o Padre Portocarrero perguntar: “Finalistas em quê?”) foram instituídos no ministério de Leitor. E eu fui um deles.
Confesso que, sobreavisado de que algo se poderia passar naquela noite, pouco dormi a pesquisar estações de rádio num aparelho que trouxe de Estrasburgo no outono anterior. Um pouco espantado ouvi à meia-noite “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, na Rádio Renascença, o que me pareceu estranho. Fiquei esclarecido quando, várias vezes, na madrugada, ouvi a mensagem do “Aqui, Posto de Comando das Forças Armadas…” na Rádio Clube Português, que foi, por isso, denominada Rádio da Liberdade.
Assim, quando me questionavam provocatoriamente, em situações de discussão política, onde é que eu estava no 25 de abril, respondia secamente: “No Seminário Maior de Lamego”. E assim continuarei a responder sempre que me façam essa pergunta com boa ou com segunda intenção. É a verdade factual. E, se me perguntam se pessoalmente sofri pela falta de liberdade, devo dizer que, em termos explícitos, muito pouco. Apenas umas reprimendas por pôr em causa a bondade de Salazar e não ter gostado da emenda constitucional pela qual a eleição presidencial deixou de ser por voto dos eleitores, passando a ser atribuição dum colégio eleitoral composto adrede para o candidato do regime ter de ganhar – isto não por parte das autoridades, mas por parte de pessoas da família e/ou do grupo de amigos. É certo que, numa inauguração de obra pública, o Ministro das Obras Públicas fez discurso e eu não bati palmas. Ao ser questionado por um senhor, que não conhecia e me segurava o braço, perguntando porque não batera palmas, respondi naturalmente que estava distraído.
Porém, passei, como tantos e tantas, as constrições e a orientação unilateral da educação, o sacrifício não justificado, as privações da vida, os efeitos colaterais do atraso económico, a falta de tudo (estrada, transportes, condições péssimas de habitação, sujeição por tempo demasiado à candeia de petróleo, medo das autoridade policiais, abuso da autoridade de proximidade, proibições sem justificação e explicação, sobrecarga de trabalho…), bem como a alguma infração de regras à espera de que fosse apanhado e castigado. E via o sofrimento de quem emigrava, os efeitos da guerra colonial.
Vi o logro da primavera marcelista, que prometia mudanças, mas que, além de algumas melhorias salariais e sociais, pouco avançou a não ser com a mudança de nomes – por exemplo, de PIDE para DGS e de UN Para ANP. A guerra colonial continuou e a crise do petróleo ia ponto tudo em pantanas. Restavam-nos as “conversas em família” na RTP, o regresso de Dom António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, mas também a introdução da censura na Rádio Renascença, a chamada ao Continente do Bispo de Nampula e a expulsão de Moçambique dos Padres Brancos ou a indisposição do Governo pelo facto de o Papa Paulo VI ter recebido no Vaticano os líderes dos movimentos de Libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau e Cabo Verde, apelidados no Continente como chefes dos terroristas. Nos estudos via contradições, nomeadamente em disciplinas como a História da Civilização, em que muitas matérias pareciam não condizer com as opções do regime; a Organização Política e Administrativa da Nação, com uma Constituição Política que preservava as liberdades e a não prisão sem culpa formada em julgamento e a prática a contradizer o estabelecido ou a concentração de poder no Chefe do Estado (nomeava e exonerava o Presidente do Conselho e os ministros e dava poderes constituintes à Assembleia Nacional), quando quem detinha todo o poder era o Presidente do Conselho; ou a Economia Social e Política (que no Seminário integrava a disciplina dita de Sociologia), que defendia o sistema de partidos como suporte da democracia, enquanto o regime os exorcizava, e sustentava a greve como arma legítima dos trabalhadores a usar em último recurso, que o regime definia como crime político.
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Com a revolução abrilina, iniciada por motivos profissionais de militares, a que se aliou a componente política, o MFA (Movimento das Forças Armadas) lançou um programa que desembocou na instituição da democracia de tipo representativo, assente numa Constituição elaborada e aprovada em Assembleia Constituinte (não sem percalços e contradições) e não em Lei Fundamental plebiscitada, no reconhecimento da autodeterminação e consequente independência das colónias, terminando a guerra colonial (embora lhe tenha sucedido a guerra civil em Angola e Moçambique, o golpismo na Guiné e a anexação de Timor-Leste pela Indonésia) e o processo de desenvolvimento, a culminar com a adesão à CEE.
Novos ventos, novas estruturas políticas, sociais e económicas, novo estilo programático na educação democratizada, serviço nacional de saúde, melhores condições de trabalho, etc. Porém, tudo hoje parece estar em causa: instituições políticas e económicas marcadas pela mediocridade e pelo enfeudamento ao poder financeiro, que estrangula e mata; a economia subterrânea; a economia de casino; o desemprego e situação opressiva e precária no trabalho; os negócios com a educação e com a saúde; a alegada pré-falência do sistema de Segurança Social, a insegurança face à criminalidade frequente e organizada – de sangue e económica; e a ameaça de terrorismo. Nisto, têm culpa as autoridades portuguesas e quem as suporta, a União Europeia que enveredou pelas categorias burocrático-capitalistas, a postura mundial – numa palavra, os grandes interesses. Tudo isto põe em perigo a democracia, pois, os órgãos do poder são condicionados pela pressão de interesses económicos e os detentores de cargos públicos podem ser testas de ferro das interesseiras eminências pardas, nacionais e/ou estrangeiras; e a soberania, se transferida em maioria para instâncias internacionais, gera o vazio dos órgãos de poder nacionais. E não haverá Presidente da República que garanta qualquer funcionamento nem regular nem irregular das instituições democráticas, que passam a ser fantasmas de democracia. Aliás, para se tirar importância a um país, fazem-se lá as sessões de que resultam as grandes decisões, embora quem decida sejam os grandes que ali se deslocam!
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E que liberdade trouxe a revolução? Alguns pensam que se trata da possibilidade irresponsável de fazer tudo o que apetece sem que haja consequências. E, se são contrariados, aduzem logo o 25 de abril. Outros pensam que a liberdade consiste em escapar aberta ou encapotadamente aos seus deveres para com o vizinho, o amigo, a família, o grupo profissional, o Estado. E muitos, em nome da liberdade, são insolentes, arrogantes e intrometidos nos assuntos que não lhes dizem respeito. Mas a liberdade é sobretudo um predicado que enforma uma postura pessoal na comunidade. A pessoa tem de sentir-se livre para fazer o que quer fazer (não o que apetece) enquanto fruto duma inteligência lúcida que gera uma avaliação correta dos objetivos traçados, das circunstâncias configuradoras da situação em que se encontra e da relação que temos ou queremos ter ou não ter com os demais. A liberdade torna-nos cidadãos. E, como tal, acedemos à educação, cumprimos os nossos deveres e exercemos os nossos direitos, respeitamos os direitos dos outros, intervimos com o voto e com a crítica na criação, renovação e melhoria das instituições, órgãos e serviços, dispomo-nos a aceitar ser escolhidos (eleitos ou nomeados) para o desempenho de cargos de acordo com a nossa condição e fazemos tudo o que podemos para aumentar, melhorar e otimizar a comunidade a que pertencemos, sabendo mobilizar os outros para o desenvolvimento da mesma comunidade. E, se falhamos, sabemos a assumir a nossa responsabilidade, como, se outros falham, sabemos assacar-lhes as suas responsabilidades, mas sem fazer justiça pelas nossas próprias mãos.
Por outro lado, ser livre é ser capaz de decidir o nosso destino, fazer tudo o que a lei não proíbe e não ser obrigado a fazer nada que a lei não obriga. Ser livre é respeitar os compromissos livremente assumidos e honrar os contratos livremente outorgados. É ser autónomo e aberto ao outro, ultrapassando caprichos, ideias meramente pessoais, estados de alma, opinando e respeitando a opinião de outrem – sempre na firmeza da convicção e na delicadeza do diálogo.
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Assim, festejar a liberdade 43 anos depois da generosa revolução abrilina implica fazer festa, mas não só. É preciso fazer memória do que era antes. E, como as gerações que viveram antes de 1974 são cada vez mais rarefeitas, importa que a escola, estribada nos competentes historiadores, faça a promoção da memória. Como pode celebrar a liberdade quem não sabe o que ela custou e quanto custa a sua preservação face aos perigos que a espreitam?
Festejar a liberdade requer vigilância contra os perigos, respeito pelos outros, assunção dos deveres para com a comunidade, pundonor no trabalho, empatia na relação, patriotismo inclusivo e cosmopolita, disponibilidade para criar riqueza e para a sua melhor distribuição.
Festejar a liberdade postura a homenagem aos seus paladinos, mesmo que as suas ideias nem sempre tenham coincidido com as nossas.
E o cidadão português deve ter em conta os desafios estratégicos de Portugal, designadamente a UE e as relações transatlânticas são assuntos absolutamente estratégicos para nós, que estão em jogo neste momento. E, se “Portugal tem feito o seu trabalho na Europa”, como disse Ferro Rodrigues hoje na sessão comemorativa do 25 de abril, “o cumprimento das nossas obrigações é condição necessária, mas não suficiente para o sucesso dos objetivos nacionais e europeus”.
O Presidente do Parlamento esclarece a questão do populismo de que hoje se fala muito:
“Não basta, a este respeito, falar em populismo. Acho que é um conceito que normaliza o que não é normal em democracia: as derivas autoritárias, os ataques à liberdade de imprensa, o racismo, o fechamento económico e social, o medo da diferença e do pluralismo. Isto não é nenhum novo populismo. Isto é a velha extrema-direita autoritária, nacionalista e xenófoba!”.
E, advertindo para a necessidade de vigilância democrática e reforço da democracia, adverte:
“Às vezes não damos o devido valor àquilo que temos e esquecemos a dimensão daquilo que conseguimos. Há quem fale de fadiga democrática e de desencanto europeu. Mas foi a democracia e o projeto europeu que garantiram o desenvolvimento e o mais duradouro período de paz no nosso velho continente.”.
Enfim, festejar a liberdade há de significar a promoção da qualidade de vida de todos, sobretudo das crianças, jovens e idosos e criar as condições de dignidade de vida para os pobres e doentes, garantir o acesso à saúde e à educação – para “democracia e 25 de abril, sempre!”.

2017.04.25 – Louro de Carvalho

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