segunda-feira, 17 de abril de 2017

Os pais não podem colocar em risco a vida e a saúde dos filhos

Vem a asserção enunciada em epígrafe ao caso do surto de sarampo que está atrapalhar o país e a própria OMS (Organização Mundial de Saúde). Com efeito, até há uns dias, dizia-se que, desde janeiro, tinham sido notificados 23 casos de sarampo em Portugal e mais de 500 casos de sarampo tinham sido reportados, só este ano, na Europa, afetando pelo menos 7 países, segundo os dados da própria OMS.
Porém, nos últimos dias, em Portugal, os casos passaram a ser 26 e alguns acusam significativa gravidade e geram inusitada preocupação, a ponto de o Diretor-Geral de Saúde vir a admitir uma situação epidémica, embora sem alastramento a todo o país. Além disso, vem-se reforçando o apelo da parte da DGS (Direção-Geral de Saúde) a que se vacinem as crianças e está em estudo a antecipação da idade da vacinação contra o sarampo, que agora é aos 12 meses, sendo que as crianças devem repeti-la aos cinco anos, já que a vacinação, que é gratuita e está incluída no PNV (Plano Nacional de Vacinação) é o principal meio de prevenção contra o sarampo.
O próprio Diretor-Geral de Saúde considerou que é “absolutamente incompreensível que um pai ou uma mãe não vacine as suas crianças”, pois não há liberdade individual que possa justificar a ausência de vacinação das crianças.
Ora, os casos verificados de doença incidem sobre crianças que os pais não sujeitaram à vacinação, não se percebendo como é que, havendo tanta coisa obrigatória, o PNV não passa de um mecanismo de recomendação e não constitui uma obrigação dos pais, ou de quem faz as suas vezes, em relação às crianças, quando está em causa a saúde pública e, em especial, a saúde das crianças, ficando estas privadas do gozo de um direito no caso de omissão deste ato de prevenção da doença. E também de lamentar que nem todas as vacinas constem do referido plano nacional. Onde fica o recorrentemente propalado “superior interesse da criança”?
A este respeito, o pediatra Mário Cordeiro levanta a questão de ser ou não passível de acusação de morte por negligência o caso de uma criança não vacinada morrer porque os pais recusaram sujeitá-la à vacinação.
E a questão é pertinente já que, se morrer uma criança em virtude de queda num prédio ou de incêndio ou de qualquer outro acidente, estando a criança sozinha, fala-se logo em abandono, negligência e não sei que mais ilícitos criminais.
Cordeiro lamenta a negligência dos pais que não vacinam os filhos e considera que deviam ser responsabilizados pelas consequências dos seus atos, apesar de reconhecer que é difícil instituir a obrigação de vacinar. E questiona, com outros exemplos, em declarações à agência Lusa:
“Se morrer alguma criança não vacinada porque os pais não quiseram, não será isso passível de acusação de ‘morte por negligência’, como seria se morresse por andar de carro sem cadeirinha ou cinto de segurança?”.
O pediatra chegou a integrar um grupo de trabalho que, na DGS, estudou a possibilidade de tornar obrigatórias as vacinas, mas confessa:
“Não é possível porque qualquer obrigatoriedade exige apuramento de responsabilidades, que é muito complexo numa situação destas, e também coimas ou equivalentes, que iriam penalizar os mais desfavorecidos ou menos abrangidos pela informação”.
Obviamente que não é aceitável, do meu ponto de vista, este argumento, visto que todas as normas legais são obrigatórias, sendo que o seu não cumprimento exige apuramento de responsabilidades, que é sempre muito complexo (Que o digam as entidades a quem incumbe a investigação e o inquérito!), e as normas legais impõem coimas ou equivalente, que se abatem sobre os de menores recursos, a menos que, em razão das circunstâncias, não lhes seja imputada a culpa. Além disso, a maior parte dos casos de recusa deliberada das vacinas não é da autoria de pobres, mas de pessoas ilustradas pela pseudociência ou arrastadas pela moda ou ainda pela convicção errónea de que são os donos absolutos dos filhos. E Mário Cordeiro, para quem a solução passa antes por se ser mais incisivo em “desmontar as enormidades e falsidade que se dizem e propagam pelas redes sociais contra as vacinas”, bem o sabe. Foi ele quem declarou:
“Dizer mal das vacinas é um luxo de um país que já não tem, como há bem pouco tempo tinha, casos diários de meningite ou mortes por sarampo, como [aconteceu] em 1994. A memória é demasiado curta e a arrogância demasiado grande.”.
E assiste-lhe toda a razão quando assegura que o fenómeno de pais que não querem vacinar os filhos se deve à mistura de mal-entendidos e teorias da conspiração associados a uma ignorância histórica e fraca memória. E, a este propósito, enaltecendo o bom trabalho da DGS e os seus alertas à população, sugere:
“Acho que é altura de se mostrar que estas teorias e estas pessoas são, também, responsáveis por estes surtos [como o do sarampo]. Chegou a altura de a sociedade não ter medo de denunciar esta ‘ciência do Facebook’.”.
Em relação aos pais que vêm a aduzir que as vacinas prejudicam a imunidade das crianças para justificarem a não vacinação, Cordeiro replica que é mesmo a imunidade que se pretende, indicando que se trata duma coisa positiva, porque a criança fica com a imunidade para a doença sem sofrer os malefícios dela, lembrando que “todos os dias, a criança contacta com n agentes microbianos na escola, em casa, na sociedade, que mexem com a sua imunidade, fortalecendo-a”. Lamenta que Portugal, que sempre teve elevadas taxas de vacinação, volte a ter casos de sarampo e avisa:
“É pena que um país que foi declarado ‘livre de sarampo’ há cerca de seis meses e que foi apontado como um exemplo na Europa e no mundo, volte a ter um surto de sarampo autóctone. Mais cedo ou mais tarde ter-se-ia de pagar o preço da ignorância e do ‘não-te-rales’.”.
Por isso, embora não seja a obrigatoriedade o único meio dissuasor, não percebo como a DGS e especialistas como Cordeiro não sustentem a obrigatoriedade da vacinação, se ela é cientificamente indicada, se está em causa a saúde pública e se o direito das crianças à saúde é um direito fundamental. Obviamente que não se pode desistir do esclarecimento e do apelo à responsabilidade dos pais. Mas uma coisa não impede a outra. Aliás, deveria suceder como diz o aforismo: “uma mão lava a outra”.  
As grandes razões da não obrigatoriedade prendem-se, a meu ver, com a incapacidade de o Estado não resistir às pressões da pseudociência e à moda da reivindicação paternal. Se a autoridade do Estado falece ou diminui, pergunto-me com é que o Estado será capaz de honrar as suas obrigações para com os cidadãos, sobretudo os mais frágeis e indefesos.
Ora, segundo o art.º 9.º da CRP, integram as tarefas fundamentais do Estado:
- Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático – alínea b);
- Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais – alínea d).
Também o seu art.º 64.º, no seu n.º 1, garante o direito de todos à proteção da saúde, bem como o dever de a defender e promover. E o n.º 2 estabelece os meios da realização da proteção da saúde. E o aplicável ao caso vem indicado na alínea b), designadamente “pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável”. Por outro lado, o n.º 3 especifica as incumbências prioritárias do Estado para assegurar o direito à proteção da saúde, destacando-se, no caso, o estipulado na alínea a) no referente “aos cuidados medicina preventiva…”. Além disso, o n.º 5 do art.º 36.º estabelece que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. Evidentemente que a prevenção da doença, a sua cura e a reabilitação integram o conceito de manutenção tal como a alimentação e a disponibilidade de alojamento, vestuário e calçado.
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A primeira infeção terá sido detetada numa criança de 13 meses, não vacinada, que deu entrada no hospital a 27 de março, tendo depois contagiado cinco funcionárias, que como estavam vacinadas tiveram a doença, mas de forma mais leve.
O sarampo é uma das infeções virais mais infeciosas mais contagiosas, que habitualmente é benigna, mas que pode provocar doença grave ou mesmo levar à morte. É evitável pela vacinação e estava, há vários anos, controlada em Portugal.
Consideram-se protegidas contra o sarampo as pessoas que tiveram a doença ou que têm duas doses da vacina, no caso dos menores de 18, e uma dose quando se trata de adultos.
Mais de 500 casos de sarampo foram, como se disse, reportados este ano na Europa, afetando, pelo menos, 7 países, segundo a OMS. Porém, para o ECDC (sigla inglesa de Centro Europeu de Controlo de Doenças), o número de países com casos de sarampo cresceu no início do ano e quase todos terão ligação ao surto que começou na Roménia em fevereiro de 2016 e, pelo menos, 14 países europeus têm registado surtos de sarampo desde o início deste ano, com a Roménia a liderar o número de casos, com mais de 400 doentes em 6 meses, desde meados de 2016.
Além de Portugal, que tem até hoje 26 casos notificados de sarampo, registaram surtos de sarampo a Áustria, Bélgica, Bulgária, Espanha, Dinamarca, França, Alemanha, Hungria, Islândia, Itália, Suíça e Suécia.
De acordo com o site do ECDC, Portugal reportou a 31 de março um caso de sarampo importado da Venezuela e outro não relacionado, num bebé de 11 meses, que terá sido infetado por um familiar que vive noutro país europeu e estava de visita a Portugal. E, nos primeiros 4 meses do ano, houve mais casos de sarampo em Portugal do que na última década anterior, segundo dados de vários relatórios da DGS.
De acordo com os vários relatórios sobre doenças de declaração obrigatória, entre elas o sarampo, entre 2006 e 2014 Portugal registou 19 casos de sarampo, quase todos importados, quando desde janeiro deste ano até hoje já houve 26 casos notificados. E, em 2016, Portugal recebeu da OMS um diploma que oficializava o país como estando livre de sarampo, até porque os poucos casos registados nos últimos anos tinham sido contraídos noutros países.
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Com a vacinação gratuita das crianças, a partir de 1974, e sobretudo com a introdução de uma segunda dose de vacina em 1990, o sarampo acabou por se tornar quase uma doença esquecida ou invisível. Mas entre 1987 e 1989 tinham sido notificados em Portugal 12 mil casos, contabilizando-se 30 mortes.
A doença manifesta-se pelo aparecimento de pequenos pontos brancos na mucosa oral cerca de um ou dois dias antes de surgirem erupções cutâneas, que inicialmente surgem no rosto.
Segundo a norma clínica emitida pela DGS, as complicações do sarampo podem incluir otite média, pneumonia, convulsões febris e encefalite.
Os adultos têm, normalmente, doença mais grave do que as crianças e os doentes imunocomprometidos podem não apresentar manchas na pele. O sarampo transmite-se por via aérea e pelo contacto direto com secreções nasais ou da faringe de pessoas infetadas. Com um período de incubação que pode variar entre sete a 21 dias, o contágio dá-se quatro dias antes e quatro dias depois de aparecer o exantema (erupções cutâneas).
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Apesar de não ser obrigatória, a maior parte dos pais vacina os seus filhos (95%, segundo o “Diário de Notícias, com base nas estimativas da DGS). Por vacinar ficam, por ano, cerca de 4000 crianças, o que é significativo e se torna preocupante.
A ideia contra a vacinação, lançada por alegados estudos norte-americanos, apesar de falsa, instalou-se na Europa e o movimento antivacinação virou a moda em várias partes do mundo, tendo já provocado várias vítimas mortais na Europa, nomeadamente na Alemanha.E soa a desculpa de mau pagador, superficial e oportunista a argumentação de que não vacinam as crianças por confiarem que as suas estão protegidas já que as demais foram vacinadas!  
Disse o Diretor-Geral de Saúde, em entrevista à Antena 1, que o número de casos detetados é suficiente para se falar em “atividade epidémica”. Francisco George referiu que existem “situações graves” e admite que venham a registar-se mais casos nos próximos dias, mas afasta um “problema global”, uma vez que “a maioria da população está protegida”. Esta proteção advém do facto de uns já terem tido sarampo no passado (pessoas com mais de 40 anos) e a maioria dos que têm menos de 40 anos ter sido vacinada.
Sobre os casos recentes, confirmados sobretudo em crianças que não foram vacinadas, Francisco George disse que “é absolutamente incompreensível que uma mãe e um pai não vacinem as crianças”. Repetiu que “não há justificação alguma para uma mãe ou um pai, um familiar, decidir da não proteção da criança” e que os pais deviam “ser educados no sentido de não terem o direito de colocar em risco a vida dos filhos”. E desafiou:
“Será que a mãe ou o pai podem decidir da saúde em termos da proteção do seu filho? Temos de nos interrogar nós próprios. Eu diria que, em termos de boas práticas, todos os pais devem atender aos conselhos dos médicos e conselhos emanados pela Direção Geral de Saúde no sentido, de logo depois do nascimento, iniciarem um programa nacional de vacinação que é gratuito, sem qualquer obstáculo.”.
E vai mais longe, sugerindo mesmo que a vacinação deveria ser obrigatória: 
“Então se a escolaridade é obrigatória, porque é que a vacinação também não pode ser obrigatória? Não é atualmente, mas é um tema para debater. Não há aqui tabus”.
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Haja quem alerte os pais para a necessidade de cumprimento dos seus deveres para com os filhos, zelando pelo exercício dos seus reais direitos e satisfação dos seus legítimos interesses. E que o Estado se muna da autoridade necessária para cumprir as suas obrigações, nomeadamente no atinente à saúde pública e ao bem-estar das populações de que deve ser o provedor.
Como diz a sabedoria popular, com a saúde não se brinca.

2017.04.17 – Louro de Carvalho

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