sábado, 22 de abril de 2017

Marcha mundial pela ciência

Milhares de pessoas manifestam-se hoje em todo o mundo em prol da ciência e contra aqueles que, como Donald Trump, optam pelos “factos alternativos” e pelo negacionismo climático. O grande escopo é sensibilizar a sociedade para a importância e o valor da ciência para a vida no dia a dia de todos na comunidade.
A ideia nasceu nos EUA para afirmar os valores da ciência atacados pela administração Trump, mas o movimento globalizou-se. Começou por um grupo de cientistas no Facebook que, inspirado pela Marcha das Mulheres, que juntou, em janeiro, milhões em várias cidades dos Estados Unidos contra a administração norte-americana, propôs uma manifestação em Washington, em defesa da ciência. Mas rapidamente a ideia ganhou asas e galgou o mundo.
O alvo imediato são as políticas anticientíficas de Trump e as consequências delas no nosso mundo. E a marcha saiu hoje à rua não só em Washington. Os cientistas desfilam em mais de 600 cidades por todo o mundo, incluindo em Lisboa – e aqui com participantes de peso, como Carlos Moedas, comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, a cientista Maria Mota e o cientista e deputado pelo PS Alexandre Quintanilha.
A ideia da manifestação é fazer uma festa global e de peso em prol da ciência e deixar um aviso esclarecedor: sem ciência não há democracia. A marcha pretende, pois, “defender o papel vital da ciência na nossa saúde, nas economias e nos governos”, como se pode ler no site internacional marchforscience.com. E, sem quaisquer referências explícitas à administração norte-americana a iniciativa surge como “celebração da ciência” enquanto “pilar da liberdade humana e da prosperidade”, mas a atitude “anticientífica” “do atual Presidente dos Estados Unidos vislumbra-se nas entrelinhas e explicará a adesão que o movimento ganhou tão depressa. O enunciado que o espelha é vertido na seguinte questão:
“Face a uma alarmante tendência para desacreditar o consenso científico e restringir as descobertas científicas, devemos perguntar-nos: podemos dar-nos ao luxo de não sair em sua defesa?”.
Os sinais que se têm avolumado, já eram visíveis antes de Trump ser presidente, quando ainda em campanha se referiu às alterações climáticas “como uma invenção da China”, passando por cima de toda a fundamentação científica da questão, não tendo melhorado como presidente.
Logo em janeiro emitiu uma ordem a impedir os funcionários da EPA (agência nacional de proteção ambiental) e do Departamento de Agricultura de partilharem publicamente as suas investigações, inclusive nas redes sociais. E colocou Scott Pruitt à frente da mesma EPA, que tem ligações próximas a empresários de companhias petrolíferas, enquanto ele próprio dispensou os tradicionais conselheiros científicos da Casa Branca. Além disso, a sua proposta de orçamento prevê cortes massivos nas verbas federais para a investigação científica que, a serem aprovados, afetarão instituições como os National Institutes of Health, a EPA ou a NASA.
Os cientistas decidiram, pois, sair à rua para mostrar o valor e o peso da ciência, contagiando companheiros de profissão e simpatizantes por todo o mundo. As primeiras marchas mundiais arrancaram na Austrália e na Nova Zelândia. E milhares de manifestantes expressam-se contra “os ataques à ciência” neste sábado em mais de 600 cidades espalhadas pelo mundo, de Melburne a Nova Iorque, passando por Tóquio, Lisboa, Berlim ou Buenos Aires.
Em Melburne, o ex-ministro da Ciência Barry Jones acusou os políticos de se deixarem guiar por “notícias falsas” e “factos alternativos”, numa alusão ao atual presidente norte-americano e aos seus conselheiros. Citado pelo jornal australiano “The Age”, lamentou que “os políticos sejam conduzidos por opiniões e não pelo conhecimento” e que “deixem de perguntar se é verdadeiro, preferindo saber se vende bem”.
Exibindo cartazes com as palavras “Ciência e não silêncio”, milhares de cientistas desfilaram em Sydney, lembrando que “não há plano B” para o Planeta. Numa das palestras durante a manifestação, a investigadora Angela Maharaj, do Climate Change Research Centre, da Universidade de New South Wales, afirmou que a ignorância dos políticos sobre as alterações climáticas “é um embaraço inacreditável”.
***
Lisboa, onde a marcha está a ser organizada por Gil Costa, neurocientista, Joana Lamego, bióloga, e o neurocientista Eric Dewitt, oriundo dos EUA e há 5 anos a trabalhar em Portugal, na Fundação Champalimaud, é uma das mais de 600 cidades onde hoje há festa pela ciência.
Gil Costa sintetiza:
“O objetivo é dar apoio aos cientistas americanos que enfrentam ameaças, como cortes no financiamento, mas também dar visibilidade à ciência, fomentar a cultura científica e deixar a mensagem de que a ciência é um valor essencial na democracia sem o qual não há decisões políticas e sociais informadas”.
Segundo este promotor da marcha, a ciência é um valor democrático, que faz melhores cidadãos, e a comunidade científica não pode perder a solidariedade com o que acontece nos outros países, porque depende da colaboração internacional.
Para Carlos Moedas, a “marcha não é contra o que quer que seja, mas antes uma afirmação positiva, uma iniciativa cidadã em defesa do papel da ciência nas nossas sociedades”. E o Comissário Europeu sublinha que “este movimento nasce na sociedade civil” e que a Europa, com os seus sucessos nesta área, “tem boas razões para marchar pela ciência”.
Por seu turno, o americano Eric Dewitt, um dos organizadores da marcha em Lisboa, não esquece as ameaças que pairam sobre a ciência e os cientistas no seu país e espera que a “energia desta marcha” sirva para “a consciencialização da importância da ciência na construção das sociedades desenvolvidas e democráticas”.
Na marcha, que começou às 14 horas, no Largo de São Mamede, e se dirigiu ao Largo do Carmo, para terminar com a Festa da Ciência no Chiado, participam, além dos mencionados, investigadores como Elvira Fortunato, diretora do CENIMAT (Centro de Investigação de Materiais) e conselheira científica da Comissão Europeia, e políticos como o Ministro Manuel Heitor.
A iniciativa – que, em Portugal, partiu de um grupo de cientistas que trabalham no país, que se associou ao movimento à escala global em prol da ciência, depois de a administração norte-americana ter ameaçado com cortes a entidades que fazem investigação – conta com o apoio explícito da Secretária de Estado da Ciência, Maria Fernanda Rollo, do cientista e deputado do PS Alexandre Quintanilha, do Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Paulo Ferrão, e da presidente da Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, Rosalia Vargas, além de vários investigadores.
Elvira Fortunato, a ‘mãe’ do transístor de papel e diretora do CENIMAT, lembrou, em declarações à Lusa, que a “ciência e a tecnologia são os pilares do desenvolvimento de qualquer sociedade” e que “o investimento em ciência é um investimento no futuro, para que todos possam viver num mundo melhor”. Por outro lado, é preciso, segundo ela, passar “a mensagem de que a investigação científica é pertença de todos e é para todos”.
A marcha terminou com a Festa da Ciência, no Chiado – espaço de debate e divulgação do trabalho de cientistas que trabalham em Portugal – e constou de diversos eventos com cientistas: atividades de física, debates de sociologia e de ceticismo na sociedade, curtos stand-ups de ciência, cientistas espalhados por cafés, prontos a serem descobertos à espera de uns dedos de conversa.
Mas não se pense que a marcha é simples efeméride, fruto do momento. Ao invés, estabelece um quadro teórico estruturado em: missão, princípios e objetivos, como se pode conferir no site:
Em termos da missão,
Defende-se que “a ciência deve ser financiada publicamente e que a sua comunicação à sociedade deve ser eficaz”, pois uma e outra (ciência e comunicação) são “pilares fundamentais da liberdade e da prosperidade”. Por isso, vem o apelo à “união entre  cientistas e não cientistas, baseada na diversidade e independente de partidos políticos, para juntos se defender a importância da ciência enquanto veículo de promoção e desenvolvimento do bem comum”.
Como princípios, enunciam-se os seguintes:
- Ciência que serve o bem-comum. Como processo e ferramenta de descoberta (e não um produto), permite  expandir e rever constantemente o conhecimento acerca do Universo. Como tal, serve o interesse de todos e não só o dos poderosos. É, pois, dever de membros de sociedades livres proteger “o direito ao acesso ao conhecimento, à possibilidade de aprender, interagir e até de moldar o conhecimento científico”.
- Educação científica de ponta. Apoia-se uma educação científica que promova o pensamento crítico em crianças e adultos, que os leve a fazer perguntas e a avaliar o mundo a partir de factos baseados em evidências comprovadas. Com efeito, a ciência não deve estar apenas ao dispor de alguns. Cada um tem direito a educação que apoie a aprendizagem do método científico e dos conhecimentos científicos, que, em conjunto com  as Artes e as Humanidades, ajude a construir um conhecimento adequado do mundo. A ciência requer perspetivas diversas, pelo que é urgente trabalhar em conjunto com as gerações futuras e levar a nova geração a incluir  grupos historicamente  sub-representados na ciência.- Comunicação aberta e transparente, e divulgação pública inclusiva. É um direito público o acesso a informação baseada em factos comprovados cientificamente.  Impedir o acesso aos dados obtidos a partir da investigação financiada por fundos públicos limita a  liberdade e a capacidade de estarmos corretamente informados antes de tomarmos decisões. E a promoção duma eficaz comunicação pública dos resultados obtidos a partir da investigação científica é um princípio básico da nossa sociedade.
- Políticas e regulamentações que sirvam o interesse público, baseadas em factos. A ciência observa e questiona o mundo. A compreensão do mundo encontra-se em desenvolvimento constante, originando novas questões e respostas. A ciência enquanto método de melhoria da forma de observar o mundo e responder às questões decorrentes da observação, permite construir um corpus de conhecimento baseado em factos, que deve utilizado para desenvolver políticas e regulamentações que sirvam o interesse público. Assim, as decisões que afetam a vida dos cidadãos devem utilizar informação baseada no consenso científico.
- O financiamento da investigação científica e das suas aplicações. O Orçamento de Estado (OE) deve refletir o papel vital que a ciência tem como suporte da democracia. Defende-se uma adequada dotação financeira do OE para apoio à investigação e emprego científicos e para o apoio à aplicação da ciência em políticas de gestão. Este financiamento não deve ser limitado a áreas de investigação específicas, mas ser inclusivo das diversas disciplinas do conhecimento.  
- Humanizar a ciência. A ciência é, antes de tudo, um processo humano, conduzido, aplicado e apoiado por um conjunto alargado de pessoas. O método científico não é um processo abstrato independente da cultura ou da comunidade a que pertence cada um dos seus agentes; é, antes, um empreendimento levado a cabo por pessoas que pretendem expandir o conhecimento do mundo com o intuito  de construir uma sociedade melhor e mais informada.
- Apoiar os cientistas. É necessária a união no apoio aos cientistas. Há que falar por eles quando forem silenciados, protegê-los quando forem ameaçados e apoiá-los quando sintam que não podem servir as instituições. Deve ser permitida aos cientistas, tanto no setor público como no privado, a comunicação livre dos resultados, sem qualquer distorção ou medo de represálias.
- Defender uma ciência aberta, inclusiva e acessível a todos. Urge o esforço para destruir quaisquer barreiras na comunidade. A carreira científica deve ser uma opção para qualquer pessoa apaixonada pela descoberta.  Processo e resultados científicos devem estar acessíveis a todos.  O método científico ajuda a informar os processos de decisão de todos, desde as decisões que se tomam enquanto consumidores até às políticas que se adotam através do debate público. Juntar cientistas num evento público para o debate à volta do mundo é dar voz ao apoio pela livre disponibilidade da ciência.
- Relação com os cidadãos. Cientistas e apoiantes juntam-se a salientar a importância da relação entre laboratórios e sociedade. A ciência funciona melhor quando os cientistas interagem de maneira eficaz com as comunidades. E esta comunicação faz-se pela partilha dos resultados científicos com as comunidades e pela promoção da função que as comunidades devem ter na construção, na partilha e na participação no processo de investigação. E os cientistas inspiram-se nas comunidades para novas questões que o próprio processo científico levanta.
- Afirmar a Ciência como um valor democrático. A ciência é vital para o funcionamento das democracias, dá espaço à inovação, ao pensamento crítico, a melhor compreensão do mundo e a melhor qualidade de vida para todos. Marchando um pouco por todo o mundo, os manifestantes sentem que dão passos firmes para se tornarem mais ativos nas comunidades e na vida democrática. Lutam para que os líderes – tanto na ciência como na política – sigam os mais altos padrões de honestidade, justiça, e integridade. Juntos trabalham para assegurar que a comunidade científica sirva para fortalecer a democracia.
E, por fim:
E, como objetivos, definiram-se os seguintes:
E, por fim:
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É boa a valorização da ciência acima de opiniões e caprichos. Porém, é forçoso não esquecer que pode ter ela a última palavra na vida dos homens, palavra que deve ser dada à ética e ao serviço do homem todo e de todos os homens. E livre-nos Deus da pseudociência e da totalização da ciência!  

2017.04.22 – Louro de Carvalho

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