terça-feira, 18 de abril de 2017

Portugal aderiu a um ideal humanista que estava virado para o futuro?

O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa esteve no Senegal, num dos locais onde se embarcavam escravos negros para a América, e recordou que, no tempo de Pombal, Portugal aboliu a escravatura em parte do território, aderindo assim “a um ideal humanista que estava virado para o futuro” e reconhecendo o que havia de injusto e condenável na postura anterior.
O Presidente deixou esta mensagem no final duma visita a uma antiga casa de escravos do tempo dos holandeses, na ilha de Gorée, em frente a Dacar, lugar que foi um entreposto do tráfico de escravos desde o século XVI, sob domínio português, até ao século XIX, e onde o Papa João Paulo II pediu perdão pela escravatura. Falando primeiro em francês, declarou:
“Quando nós abolimos a escravatura em Portugal, pela mão do Marquês de Pombal, em 1761 – e depois alargámos essa abolição mais tarde, no século XIX, demasiado tarde –, essa decisão do poder político português foi um reconhecimento da dignidade do homem, do respeito por um estatuto correspondente a essa dignidade”.
E acrescentou:
“Nessa medida, nós reconhecemos também o que havia de injusto e de sacrifício nos direitos humanos, como diríamos hoje em dia, numa situação que foi abolida”.
Depois, o Chefe de Estado repetiu a mensagem em português:
“Recordei que Portugal aboliu, pela mão do Marquês de Pombal, pela primeira vez, a escravatura, numa parte do seu território em 1761 – embora só alargasse essa abolição definitivamente no século XIX –, e que nesse momento, ao abolir, aderiu a um ideal humanista que estava virado para o futuro”.
E reiterou que tal decisão
“Reconhecia o que tinha havido de injusto, o que tinha havido de condenável no comportamento anterior, relativamente a séculos em que esses direitos não foram devidamente reconhecidos”.
Para Marcelo, o que fica de mais importante da visita à “Casa dos Escravos” de Gorée é “a lição de esperança no futuro” e a ideia de que é imperativo “continuar a lutar pelos direitos humanos, contra as formas de escravatura que existem, contra as opressões, contra as ditaduras, contra os totalitarismos”, sendo que “ainda hoje, infelizmente, é tão necessário”.
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Estas declarações do Presidente incomodaram alguns dos espíritos que gostam de pensar a escravatura à maneira iluminista, como uma culpa do homem ocidental de que ele teve de se redimir numa linha de autocrítica civilizacional e numa de acerada crítica à História.
Não há dúvida de que o devir dos valores éticos não é linear na História das Civilizações e na construção da identidade dos povos. Avança-se, divaga-se, recua-se e torna-se a avançar, sem que algo fique definitivamente conseguido e consolidado.
A escravatura, que foi transversal às civilizações, resultou, de entre outros fatores, da vingança de guerra, da prosápia de que alguns não têm de fazer determinados trabalhos por se sentirem superiormente dotados e se deverem ocupar do mundo das ideias, da obsoleta conceção da divisão da espécie humana em categorias de diferente mérito, do infame racismo de etnia e da factícia necessidade de utilização de mão de obra massiva para a obtenção de recursos lucrativos e de espaços e tempos de lazer para aqueles que, em exclusivo, se julgam dignos desse luxo.
Por isso e apesar de o papel de Portugal na escravatura estar estudado pelos historiadores, talvez seja útil assumir a sugestão de Rui Tavares de se fazer em Portugal um “grande debate público” sobre a escravatura e o papel que o país nela teve. Na verdade, por mais estudos que o tema tenha merecido, nunca fica a escravatura passada ao dossiê dos assuntos não pendentes. Isto sem passar ao de leve pelos períodos de silenciamento e de branqueamento do problema. Querem alguns dizer-nos que “o dito assunto está investigado e ao alcance de quem quiser conhecê-lo com equilíbrio e rigor, sem as emoções e os preconceitos que só servem para perpetuar ideias erradas sobre o assunto”. Não será bem assim. E as declarações de Marcelo estão longe de ser inequívocas e muito menos consensuais. Constituem, sim, a posição sensata de um homem de Estado que fala in loco para um mundo historicamente afetado pelo fenómeno. 
Por exemplo, nas declarações do Presidente, há dois aspetos diferentes: um aceitável; outro, nem tanto. Colocar na base da abolição da escravatura pelo Marquês de Pombal a ideia iluminista da excelência da razão e do progresso rumo ao futuro afigura-se-me plausível. Porém, atribuir a Pombal o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e da igualdade fundamental de todas as pessoas parece-me um forte anacronismo apenas justificável com a leitura que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos inspiram e postulam.
Quantas vidas não mandou Pombal aniquilar, quantos seres humanos não eclipsou! E quantos não apeou do seu estatuto social sem que outros fossem elevados por essa via na sua condição humana. Ademais, pelos vistos, nem a empírica sentença “enterrar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos” sobre os destroços do Terramoto não terá sido da sua autoria.
De facto, Sebastião José de Carvalho e Melo – sem que se possa ignorar ou diminuir o seu génio – foi produto das circunstâncias: rei fraco e tímido; erros da nobreza; ascensão galopante da burguesia; e o terramoto que, destruindo meio país, deu brado na Europa. E, no atinente, à escravatura, obviamente que as pressões das cortes europeias, algumas das quais a que deve a sua formação, como que lhe ditaram o senso da legislação aberta e o princípio da convivência à luz do qual se constrói o progresso em todos os setores. Assim, com a proibição da escravatura na Metrópole e na Índia, no reinado de Dom José I, em 12 de fevereiro de 1761, Portugal tornou-se um dos primeiros países a abolicionistas. Contudo, só por Decreto de 1854, foram libertados os primeiros escravos do Estado e, mais tarde, por Decreto de 1856, os da Igreja.
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No entanto, o primeiro decreto de abolição da escravatura em todos os territórios portugueses é datado de 1836 – iniciativa do então Visconde de Sá da Bandeira, Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (mais tarde, Marquês), e de António Manuel Lopes Vieira de Castro e Manuel da Silva Passos – da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros.
O preâmbulo do projeto de decreto em forma de carta endereçada à rainha Dona Maria II traz a justificação deste projeto setembrista protagonizado por Sá da Bandeira:
“A civilização da África tem sido nestes últimos tempos o pensamento querido dos sábios e dos filantropos e não menos o desvelado cuidado dos principais governos que, no antigo e no novo Continente, marcham à testa do progresso e promovem o melhoramento da espécie humana; enquanto Portugal, que durante séculos havia trabalhado nesta grande obra, hoje, em vez de a promover, lhe põe obstáculos.
“O primeiro título que os nossos grandes reis, augustos avós de V. M., acrescentaram ao de Rei de Portugal, foi o de “além-mar em África e o de Senhores de Guiné. Empunhadas pelas mãos de nossos navegadores, dirigidas pela atrevida ciência de nossos astrónomos, as Quinas Portuguesas, que desta extremidade da Europa saíram para conquistar e civilizar, primeiro foram mostrar-se nos mares de Ceuta, logo, passado o tremendo cabo Bojador, não tardaram a ganhar as férteis regiões que rega o Senegal, o Gâmbia, e o Zaire; donde, descendo e dobrando o Cabo Tormentório, passaram a descobrir a costa oriental da imensa península Africana, em cujo litoral fundaram feitorias, construíram fortes e conquistaram povos.
“Sobre vários feitos de África como em tantos outros, os Portugueses têm sido caluniados por historiadores modernos, que representaram nossos guerreiros e navegadores traficando com a espada na mão dos haveres e das vidas das Nações descobertas. E todavia, não há um só documento em toda a 1.ª época de nossos descobrimentos que não prove que o principal e quase único intuito do governo português era a civilização dos povos pelo meio do Evangelho: O comércio foi secundário, posto que meio civilizador também; e a dominação foi uma necessidade consecutiva, não um objeto.
“Os erros de doutrina religiosa, e o vício das medidas políticas, eram do século, não dos homens. A Índia primeiro, depois o Brasil fez-nos deixar a África, nosso mais natural campo de trabalhos. Mas a colonização do Brasil e a exploração de suas minas e bem depressa o interesse de todas as outras potências que houveram o seu quinhão da América, foram os maiores inimigos da civilização da África, que nós sós, e com tanto sacrifício de vidas e fazendas, havíamos começado.
“O infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história das Nações modernas; mas não fomos nós os principais, nem os únicos, nem os piores réus. Cúmplices, que depois nos arguiram tanto, pecaram mais e mais feiamente. “Emendar, pois, o mal feito, impedir que mais se não faça é dever da honra portuguesa e é do interesse da Coroa de vossa majestade, porque os Domínios que possuímos naquela parte do Mundo são ainda os mais vastos, importantes e valiosos que nenhuma Nação Europeia possui na África Austral.
“Para os avaliarmos não devemos só considerar o que atualmente são, mas o de que são suscetíveis. O estado em que se acham é devido, não só ao mau Governo que tem tido a Metrópole, mas a este ter prestado a sua atenção quase exclusivamente ao Brasil.
“Os naturais da África foram aprisionados e transportados além do Atlântico para tornarem rico um imenso país cujos habitantes se recusavam à civilização. Lê-se, numa memória antiga, que houve tempo em que na ilha de S. Tomé existiram dezassete engenhos de açúcar, que o governo de Portugal mandou destruir para não prejudicarem a cultura da cana que naquele tempo promovia no Brasil!
“Em nossas províncias africanas existem ricas minas de ouro, cobre, ferro, e pedras preciosas: ali podemos cultivar tudo quanto se cultiva na América: possuímos terras da maior fertilidade nas ilhas de Cabo Verde, em Guiné, Angola e Moçambique: grandes rios navegáveis fertilizam algumas das nossas províncias e facilitam o seu comércio; naqueles vastos territórios poderemos cultivar em grande a cana do açúcar, o arroz, anil, algodão, café e cacau; numa palavra, todos os géneros chamados coloniais ou todas as plantas das Molucas e de Ceilão, que produzem as especiarias; em tal abundância, que não somente bastem ao consumo de Portugal, mas que possam ser exportados em muito grandes quantidades para os outros mercados da Europa e por menores preços que os da América visto que o cultivador Africano não será obrigado a buscar e a comprar trabalhadores, transportados da outra banda do Atlântico, como acontece ao cultivador brasileiro, que paga por alto preço, aumentado ainda pelo risco do contrabando, os escravos que emprega.
“Promovamos na África a colonização dos Europeus, o desenvolvimento da sua indústria, o emprego de seus capitais; e, numa curta série de anos, tiraremos os grandes resultados que outrora obtivemos das nossas colónias.
“Mas para isto é necessário que reformemos inteiramente as nossas leis coloniais.
“Se pelo resultado se pode julgar o sistema duma legislação, nenhuma poderá ser pior do que a das nossas possessões: séculos têm decorrido depois que  se acham no domínio português, e pouco diferentes estão em civilização do que eram no tempo da conquista, enquanto, como contraste, a vizinha Colónia do Cabo de Boa Esperança em muito menos tempo tem crescido rapidamente em população  branca, e em riqueza.
“A glória de continuar a grande empresa começada pelo senhor D. João II estava reservada a vossa majestade. A civilização de África de que tantas nações poderosas têm desesperado é mais possível à rainha de Portugal, que em suas mãos tem as chaves das principais portas por onde ela pode entrar e cuja autoridade é obedecida em vários pontos do interior daquele vasto continente, que se acham situados a mais de duzentas léguas do mar. E, assim como foi possível aos soberanos de Portugal abrir estradas para a civilização, que nenhum outro príncipe ousou fazer cometer, ser-lhes-á também possível aclimatizar e fazer prosperar naquelas regiões esta planta benéfica.
“Como preliminar indispensável de todas as providências, que para este grande fim, de acordo com as Cortes Gerais da Nação, vossa majestade não deixará de dar em sua alta sabedoria, religião, e humanidade, os seus secretários de Estado têm hoje a honra de propor a vossa majestade, no seguinte projeto de decreto, a inteira e completa abolição do tráfico da escravatura nos domínios portugueses.”
Os subscritores denunciam o facto de Portugal ter desistido do projeto de promover o melhoramento da espécie humana, a que se votara e que hoje obstaculiza – tarefa que passou a ser do domínio de sábios e filantropos e de outros governos que estão à testa do progresso.
Acusam a calúnia dos detratores da antiga gesta portuguesa, repetindo que o objetivo dos portugueses, na expansão foi primordialmente “a civilização dos povos pelo meio do Evangelho”, tendo o comércio sido secundário, embora também constituísse um meio civilizador. Ademais, entendem que a dominação foi uma necessidade e não um objetivo.  
Reconhecem que o comércio de escravos é uma nódoa negra da nossa Historia, embora não exclusiva dos portugueses. Dizem que foi a Índia, primeiro, e o Brasil, depois, que nos fizeram subestimar a África. E apontam a destruição de engenhos de produção e transformação em África para não ofuscarem as de género similar no Brasil, já que os nativos daquele território não favoreciam o avanço civilizacional e até o recusavam.
Afirmam que a abolição da escravatura tinha em vista a colonização de África rica em recursos materiais e humanos, pela melhoria das leis coloniais e pela promoção das boas práticas, e que emendar o mal feito, impedir que mais se não faça, era dever da honra portuguesa e era do interesse da Coroa.
E do decreto transcrevem-se os aspetos que se julgam mais pertinentes:
Fica proibida a exportação de escravos, seja por mar ou por terra, em todos os Domínios Portugueses, sem exceção, quer sejam situados ao norte, quer ao sul do equador, desde o dia em que na Capital de cada um dos ditos Domínios for publicado o presente Decreto (Artigo 1.º).
É do mesmo modo proibida a importação de escravos feita por mar, sob qualquer pretexto que se pretenda fazer (Artigo 2.º).
§ único. Todo o escravo que for importado para terra deverá ser competentemente manifestado à sua chegada ao Território Português.
É excetuada das regras estabelecidas nos Artigos 1.º, e 2.º a exportação e importação dos escravos feita por um Colono, quer nacional, quer estrangeiro, que de uma parte dos Domínios Portugueses em África for estabelecer-se em outra parte dos mesmos Domínios no Continente, ou Ilhas Africanas (Artigo 3.º).
§. único. É do mesmo modo excetuada da regra estabelecida no Artigo 2.º a importação de escravos por mar feita por um Colono, quer nacional, quer estrangeiro, que de qualquer país não sujeito à Minha Coroa vier estabelecer-se em algum dos Domínios dela em África. (...)
O presente Decreto será publicado na forma do costume pelos Governadores dos Domínios Ultramarinos, logo que por eles for recebido; mas dando além disso um exemplar dele a cada uma das Câmaras Municipais respectivas Alfândegas, e aos Juízes de Direito (Artigo 25.º).
§. único. Pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros serão remetidos exemplares do presente Decreto às Legações e Agências Consulares de Portugal em todos os países Estrangeiros.
Os Secretários de Estado das diferentes Repartições assim o tenham entendido e façam executar.
Como decorre do texto, a abolição da escravatura não era absoluta. Sendo válido o princípio da exportação de escravos, a sua importação por terra poderia constituir-se em exceção, obrigando ao registo; e a ilegalidade da exportação e da importação por colono conhecia exceções.
Ao decreto foi anexada “relação dos objetos, que sendo achados a bordo de qualquer navio, se consideram como indícios de que ele se destina ao tráfico de escravos e o tornam sujeito às disposições do decreto de 10 de dezembro de 1836”, de que a mesma relação faz parte:
1.º Escotilhas com grades libertas, em vez de serem fechadas segundo é prática nos navios mercantes.
2.º Repartimentos, coberta corrida, ou separações em maior número do que é costume, ou necessário nos navios que fazem o comércio lícito.
3.º Tábuas aparelhadas para formar uma segunda coberta, conforme praticam os navios de escravatura.
4.º Gargalheiras, algemas, anjinhos ou cadeias.
5.º Maior quantidade de água em pipas ou tanques, do que a necessária para o consumo da equipagem de um navio mercante.
6.º Uma quantidade extraordinária de pipas ou barris para conter líquidos, uma vez que o Capitão não possa apresentar Certidão da Alfândega onde despachou, mostrando que os donos do navio prestaram fiança e que essas pipas ou barris são destinados para azeite de palma ou de peixe, ou para qualquer outro comércio lícito.
7.º Maior quantidade de celhas, gamelas, ou bandejas para rancho do que as necessárias para uso da equipagem de um navio mercante.
8.º Uma caldeira de maior dimensão do que a usual e maior do que aliás seria necessário para uso da equipagem; ou diversas caldeiras em maior número do que as necessárias para este efeito.
9.º Uma quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne e peixe salgado, farinha de pão, mandioca, milho, ou farinhas de qualquer espécie além da que posa ser necessária para o sustento da equipagem, quando qualquer destes objetos não faça parte da carga, e como tal se ache no Manifesto.
Esta relação constituía um bom manual para fiscalização.
***
Porém, como escreveu Maria Manuela Lucas,
“Sá da Bandeira, [o protagonista do] projeto setembrista de reedificação do império, [acabou] por encontrar graves obstáculos ao pretender passar à concretização do seu plano. Em simultâneo com as constantes exigências da Inglaterra, [enfrentou], logo a partir de 1836, quando foi decretada a abolição do tráfico de escravos, não só a forte resistência dos negreiros africanos como, de uma maneira geral, a oposição de todos os agentes envolvidos nas malhas do comércio ilegal. A chamada ‘burguesia colonial’ era detentora de um elevado grau de autonomia, que se acentuou ao longo do segundo quartel do século XIX, em virtude da instabilidade política então vivida em Portugal e até da própria legislação liberal de descentralização administrativa.”.
(cf http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/vsb_abolicaoescravatura.html)
Na verdade, a escravatura no império português foi ideia branqueada e prática que se manteve quase indefinidamente. E, embora iniciativa do setembrismo, não se poderá dizer que o combate contra a escravatura em Portugal fora um triunfo da esquerda da época, como afirmam alguns, nem uma tirada da direita. Aliás, ao tempo, as noções políticas de esquerda e de direita não correspondiam ao que delas hoje se pensa.
Também deve ser apurada é a ideia de que os portugueses teriam tido papel pioneiro no tráfico de escravos. Tiveram papel de proa e de pioneirismo apenas no Atlântico, a partir do século XV. Porém, o tráfico de escravos é anterior a tal período e extravasa esta zona do globo. Aliás, a palavra escravo vem de eslavo, isto é, da gente que, no século IX, era vendida para várias partes do mundo islâmico. Além disso, antes de os portugueses se envolverem neste hediondo comércio, os muçulmanos o praticavam em larga escala pelo Sara, Índico e mar Vermelho.
É também pertinente referir que a perceção de que a escravidão era injusta sempre existiu na cultura ocidental. A forma como essa cultura lidou com tal perceção é que foi mudando, minada por interesses diversos. Durante muito tempo, considerou-se que a escravatura era má, mas necessária. O abolicionismo dos séculos XVIII e XIX acabou com essa complacência. Cabe aos historiadores, aos antropólogos e aos sociólogos explicar porque é que a escravatura foi durante tanto tempo “tolerável” e depois deixou de o ser, não devendo substituir essa função esclarecedora pela emissão de juízos morais ou política e ideologicamente condicionados sobre os acontecimentos do passado.
De facto, a relação de Portugal com a escravatura é, muitas vezes, objeto de narrativa parcial. Por consequência, também a sua relação com a abolição o será. Quem acentua o papel dos países ocidentais nas muitas injustiças inerentes à escravatura esquece geralmente que foram esses mesmos países que puseram fim a tais injustiças. O abolicionismo é ideologia e prática política forjada no mundo ocidental. Não houve abolicionismos diferentes na Ásia ou na África, mas apenas o reflexo do movimento desencadeado pelos ocidentais. Todavia, com os idealismos que nortearam as abolições misturaram-se convicções de que daí decorreriam vantagens materiais. E é de anotar que no esforço para acabar com a escravatura se despenderam muitas energias, morreu muita gente e se gastaram rios de dinheiro.
E, com a lei de 25 de fevereiro de 1869, proclamou-se a abolição da escravatura em todo o Império Português, até ao termo definitivo de 1878:
Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da publicação do presente decreto.
Todos os indivíduos dos dois sexos, sem exceção alguma, que no mencionado dia se acharem na condição de escravos, passarão à de libertos e gozarão de todos os direitos e ficarão sujeitos a todos o deveres concedidos e impostos aos libertos pelo decreto de 19 de Dezembro de 1854.
D. Luís, Diário do Governo, 27 de Fevereiro de 1869
(cf http://oficinadahistoriad.blogspot.pt/2008/12/abolio-da-escravatura-em-portugal.html)
***
E são de rejeitar hoje todas as atitudes e práticas que cheirem a escravatura: comércio de pessoas, tráfico de órgãos, exploração do trabalho e da ignorância, esbulho de bens, violência física e psicológica, atentados à vida, anulação da personalidade…
2017.04.18 – Louro de Carvalho


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