domingo, 23 de abril de 2017

Rasgos eucarísticos

O Missal Popular Dominical, da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) e da Gráfica de Coimbra, Lda., justifica a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo nos termos seguintes:
“A Igreja celebra o aniversário litúrgico da instituição da Sagrada Eucaristia em Quinta-feira Santa, pois foi na véspera da Sua Paixão que Jesus, levando até ao extremo ao Seu amor pelos homens (Jo 13,31) nos deixou o Memorial do Seu Sacrifício Redentor. Nesse dia, porém, a sombra da Cruz projeta-se já na Liturgia e a Igreja não pode, por isso, manifestar todo o seu júbilo por este Dom inefável.”.
Mais adiante, diz que, ainda de coração inundado pelas festas pascais e no fervor do Espírito Santo, “dá largas ao seu entusiasmo” e celebra, em “atmosfera de louvor e exultação espiritual”, o Mistério da “presença amorosa e operante de Cristo no mundo dos homens”. Acresce que, segundo os historiadores do devir eclesial, esta celebração corresponde à necessidade espiritual da Igreja em relação ao alimento da fé e marca a postura apologética de afirmar publicamente a fé viva na presença de Cristo no Sacramento da Eucaristia, sobretudo a partir da negação desta verdade por Berengário, no século XI.
Ora, sem perder ou diminuir a relação essencial com a Paixão, Morte, Sepultura e Ressurreição de Jesus, a Solenidade propicia o ensejo para reflexão sobre a inesgotável riqueza da Eucaristia, ação de graças a Cristo pelo dom total de Si mesmo em corpo e sangue como alimento e bebida nas espécies de pão e vinho e, sobretudo, anúncio ao mundo de que na Eucaristia está o sinal da unidade, o vínculo do amor, a única forma de transformar a humanidade na única família dos filhos de Deus, que Ele chamou a viver, em Cristo, na perfeita comunhão com a Trindade Santa e com os homens, que são irmãos. Na verdade, é conhecida a bela antífona eucarística:
Ó Sagrado banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a Sua Paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória.
E a oração coleta da missa e da Liturgia das Horas, usada na bênção do Santíssimo Sacramento:
Senhor Jesus Cristo, que neste admirável sacramento nos deixastes o memorial da vossa paixão, concedei-nos a graça de venerar de tal modo os mistérios do vosso Corpo e Sangue que sintamos continuamente os frutos da vossa redenção. Vós que sois Deus, com o Pai, na unidade do Espírito Santo.
São textos que revelam a predita relação entre a Eucaristia e a Paixão, aliás como a oração coleta da missa da Ceia do Senhor:
Senhor nosso Deus, que nos reunistes para celebrar a Ceia Santíssima em que o vosso Filho Unigénito, antes de Se entregar à morte, confiou à Igreja o sacrifício da nova e eterna aliança, fazei que recebamos neste sagrado banquete do seu amor a plenitude da caridade e da vida. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
A missa é efetivamente memorial da Morte, sacrifício da Aliança, é banquete em torno do Ressuscitado, Senhor que dá a vida plena e a perfeita caridade. Sem a eucaristia, a morte na Cruz poderia não significar entrega, sem a morte redentora e sem eucaristia, o mandamento do amor transformar-se-ia em filantropia a estiolar por falta de nutrição. Sem a morte na cruz, a Eucaristia não passava de uma pequena dádiva testamenteira. Sem o amor, nada feito.
***
Mas entremos em quinta-feira da semana santa. As indicações litúrgicas (rubricas) recomendam que – após a leitura do Livro do Êxodo (Ex 12,1-8.11-14 – ceia pascal judaica), da 1.ª carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 11,23-26 – relato da instituição da Eucaristia) e do Evangelho de São João (Jo 13,1-15 – o exemplo de Cristo no serviço aos irmãos simbolizado no lava-pés) – na homilia se comentem “os grandes mistérios que neste dia se comemoram: a instituição da sagrada Eucaristia, do sacramento da Ordem e o mandato do Senhor sobre a caridade.
A Liturgia em si não prevê mais atos além da missa, que tem um fim especial, como se verá.
Porém, a tradição eclesiástica e popular encheu a tarde e a noite de atos dramáticos e paralitúrgico, como: a procissão das endoenças (de indulgências) ou de triunfo; a procissão do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, com o sermão do Encontro; a via-sacra; a procissão das Sete Bandeiras; a procissão do Senhor Ecce Homo; etc. Tudo isto distrai as pessoas da veneração do Mistério eucarístico que a Igreja recomenda nesta noite e nos termos em que a recomenda.
Por seu turno, as indicações litúrgicas determinam que, “terminada a distribuição da comunhão, deixa-se sobre o altar a píxide com as partículas para a comunhão do dia seguinte”; e “a missa conclui com a oração depois da comunhão”. Depois desta oração, recomenda-se a trasladação solene do Santíssimo Sacramento. É o testamento do Senhor, que deve ser acarinhado e adorado; é a reserva para a comunhão no dia da Paixão, em que não se celebra a missa.
Assim, “o sacerdote, de pé, diante do altar, põe incenso no turíbulo e, de joelhos, incensa por três vezes, o Santíssimo Sacramento”; e, “em seguida, toma o véu de ombros, pega na píxide e cobre-a com as extremidades do véu”. Depois, “organiza-se a procissão, com círios e incenso, indo à frente o cruciferário com a cruz, e leva-se o Santíssimo Sacramento, através da igreja, para o lugar da reserva, preparado numa capela convenientemente ornamentada”. Durante o percurso, canta-se o “Pange, língua”, com exceção das duas últimas estrofes (que se iniciam com Tantum ergo sacramentum).
Chegada a procissão ao lugar da reserva, “o sacerdote depõe a píxide” e, tendo colocado incenso no turíbulo, incensa, de joelhos, o Santíssimo Sacramento. Entretanto, canta-se o Tantum ergo sacramentum, após o que se fecha o tabernáculo ou urna da reserva.
O sacerdote e os ministros, depois de fazerem algum tempo de oração em silêncio, “fazem a genuflexão e retiram-se para a sacristia”. Não se expõe o Senhor no ostensório.
Depois, vem a nota da austeridade do dia: “segue-se a desnudação do altar (dos altares, exceto o da reserva eucarística) e, se possível, retiram-se as cruzes da igreja”. E, “se algumas ficam na igreja, é conveniente cobri-las”.
Todavia, as recomendações não ficam por aqui em relação à Eucaristia, o que passa assaz despercebido a muitos:
“Exortem-se os fiéis, tendo em conta as circunstâncias e as diversas situações locais, a dedicar algum tempo à adoração do Santíssimo Sacramento”.
E note-se: “A partir da meia-noite, porém, esta adoração faz-se sem solenidade”.
Quanto à sexta-feira da Paixão, determina-se:
- Que, para a comunhão, se estende “uma toalha sobre o altar, colocam-se sobre ele o corporal e o missal”; e, depois, o diácono ou, na falta dele, o sacerdote leva o Santíssimo Sacramento do lugar da reserva para o altar”. Estando todos de pé em silêncio, “dois ministros com velas acompanham o Santíssimo Sacramento e colocam as velas junto do altar ou sobre ele”.
- Que, depois da distribuição da comunhão, “um ministro idóneo leva a píxide para o lugar previamente preparado fora da igreja ou, se as circunstâncias o exigirem, coloca-a no sacrário”.
***
Foi precisamente naquele contexto de adoração “sem solenidade” que, no começo da tarde do passado dia 13 de abril, Sexta-feira Santa, dei uma volta pela vila de Santa Maria de Lamas. Ao aproximar-me da igreja paroquial, em que gosto de entrar, vi algumas pessoas no adro. Preparei-me para seguir o aforismo “em terra onde estiveres, faz como vires” ou, à boa maneira romana, “dum manseris Romae, romanus esto” (em Roma sê romano). Não tentei entrar e vi na porta lateral um aviso de perigo: perigo de queda de objetos.
Como ouvi cantar para os lados duma, aliás duas capelas laterais ao adro, com uma antecâmara que dá para as duas, dirigi-me para lá. E pude contemplar um lindo espetáculo. Na capela que presumo ser a da Ressurreição, estava sobre o altar um sacrário móvel com duas velas acesas de cada lado. À frente do altar, ocupando praticamente o espaço disponível da capela estava uma roda de uns quinze pré-adolescentes (meninas e meninos), sentados no chão, acompanhados por três jovens em bancos. Em compostura exemplar, todos rezavam certinhos e, acompanhados pela viola, cantavam afinados. E, ao retirarem-se, fizeram-no em silêncio total. Foram rendidos por outro grupo mais novato, mas o espetáculo foi similar. Era belo vê-los fazer momentos de absoluto silêncio, rezar o Pai Nosso, a invocação ao Santíssimo Sacramento e as duas orações do Anjo de Portugal. Para quem lê notícias, vê imagens e/ou está familiarizado com situações comportamentais de miúdas e miúdos cheios de “hiperatividade” (má educação, nem pensar; quando muito, certos estilos educativos…), insolência ou bichos no corpo inteiro (é assim a expressão), o espetáculo foi altamente edificante. Por esta amostra, Santa Maria de Lamas satisfez o espírito eucarístico pascal. Ainda há cristianismo com a cafeína do Evangelho e a sacarose do Reino.
***
O senhor Abade de Vila Nova de Paiva ofereceu-me o livro “Na Nossa Catedral para sempre nos encontraremos!”, homenagem a Dom António José Rafael, bispo emérito de Bragança-Miranda, e ao ceramista Mário Ferreira da Silva. Do livro que fala do sentido da Catedral, das históricas tentativas da sua ereção, das fases da execução do Mural do Presbitério e do Sacrário (de acordo com as indicações do prelado), fixei-me neste último – “um elemento/forma cenográfica e paramento escultórico” (2,20 x 2,20 metros), “em material nobre: grés cerâmico policromado” (escultura suspensa na parede, recortando-se livre e separada do espaço arquitetónico), com 3 relevantes pormenores:
Em cima, nuvens espargindo luz resplandecente; ao centro, cofre e porta do Sacrário, com o coração de Cristo envolto em chamas; e, na base, as línguas de fogo do Espírito Santo envolvidas pelos “dois braços suspensos e estilizados a simbolizar as mãos no ato de partilha do pão, ao mesmo tempo que sustentam a patena, sinal da oferenda do Corpo Místico de Cristo”.
O mote indicado pelo Bispo foi: “O Nordeste com Cristo e em Cristo no Espírito Santo para o Pai”.
Segundo o ceramista, o “contorno irregular sinuoso” que delimita a volumetria configura “o mapa geográfico da diocese”, com “acentuadas texturas e relevos sinuosos”, a simbolizar “a acidentada topografia superficial nordestina, a formação estratificada e xistosa das fragas, a matéria orgânica das suas terras, a um tempo rudes e belas”. E o ceramista continua:
Os demais elementos compositivos da sua superfície configuram a representação mística – Elevação e Ação de Graças ao Pai por Cristo – Nordeste no Espírito Santo. Na zona superior, o conjunto de elementos relvados figura nuvens espargindo luz, simbolizando a Glória do Pai. O ‘cofre’, feito em bronze fundido, é o elemento nobre. Simboliza a habitação de Deus e a Sua presença entre os homens, consubstanciada no Corpo e Sangue de Cristo: Deus-Connosco no Nordeste a elevar o Nordeste para o Pai. Uma forma circular em bronze suporta a porta que ostenta um coração envolto em chamas e representa o Amor de Cristo irradiado do sacramento da Eucaristia, traduzido nas ‘línguas’ de fogo do Espírito Santo.”.
Neste e por este sacrário duma sé desejada em 230 anos e edificada em 20, uma rica lição de catequese eucarística, trinitária e encarnada numa geografia concreta! Lembrado das tiradas doutrinais de Dom António Rafael, pergunto-me qual foi mais criativo: o bispo ou o ceramista.
***
Em suma, uma Solenidade, o sentido do tríduo pascal (dado na noite da Última Ceia), uma oração não solene e um belo espécime escultórico… que rasgos eucarísticos para reflexão!

2017.04.22 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário