O
Missal Popular Dominical, da CEP (Conferência
Episcopal Portuguesa)
e da Gráfica de Coimbra, Lda., justifica a Solenidade do Santíssimo Corpo e
Sangue de Cristo nos termos seguintes:
“A
Igreja celebra o aniversário litúrgico da instituição da Sagrada Eucaristia em
Quinta-feira Santa, pois foi na véspera da Sua Paixão que Jesus, levando até ao
extremo ao Seu amor pelos homens (Jo 13,31) nos deixou o Memorial do Seu
Sacrifício Redentor. Nesse dia, porém, a sombra da Cruz projeta-se já na
Liturgia e a Igreja não pode, por isso, manifestar todo o seu júbilo por este
Dom inefável.”.
Mais
adiante, diz que, ainda de coração inundado pelas festas pascais e no fervor do
Espírito Santo, “dá largas ao seu entusiasmo” e celebra, em “atmosfera de
louvor e exultação espiritual”, o Mistério da “presença amorosa e operante de
Cristo no mundo dos homens”. Acresce que, segundo os historiadores do devir
eclesial, esta celebração corresponde à necessidade espiritual da Igreja em
relação ao alimento da fé e marca a postura apologética de afirmar publicamente
a fé viva na presença de Cristo no Sacramento da Eucaristia, sobretudo a partir
da negação desta verdade por Berengário, no
século XI.
Ora, sem perder ou diminuir a relação essencial com a Paixão,
Morte, Sepultura e Ressurreição de Jesus, a Solenidade propicia o ensejo para
reflexão sobre a inesgotável riqueza da Eucaristia, ação de graças a Cristo
pelo dom total de Si mesmo em corpo e sangue como alimento e bebida nas
espécies de pão e vinho e, sobretudo, anúncio ao mundo de que na Eucaristia
está o sinal da unidade, o vínculo do amor, a única forma de transformar a
humanidade na única família dos filhos de Deus, que Ele chamou a viver, em
Cristo, na perfeita comunhão com a Trindade Santa e com os homens, que são
irmãos. Na verdade, é conhecida a bela antífona eucarística:
Ó Sagrado
banquete, em que se recebe Cristo e se comemora a Sua Paixão, em que a alma
se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória.
E
a oração coleta da missa e da Liturgia das Horas, usada na bênção do Santíssimo
Sacramento:
Senhor Jesus Cristo, que neste
admirável sacramento nos deixastes o memorial da vossa paixão, concedei-nos a
graça de venerar de tal modo os mistérios do vosso Corpo e Sangue que sintamos
continuamente os frutos da vossa redenção. Vós que sois Deus, com o Pai, na
unidade do Espírito Santo.
São
textos que revelam a predita relação entre a Eucaristia e a Paixão, aliás como
a oração coleta da missa da Ceia do Senhor:
Senhor
nosso Deus, que nos reunistes para celebrar a Ceia Santíssima em que o vosso
Filho Unigénito, antes de Se entregar à morte, confiou à Igreja o sacrifício da
nova e eterna aliança, fazei que recebamos neste sagrado banquete do seu amor a
plenitude da caridade e da vida. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
A
missa é efetivamente memorial da Morte, sacrifício da Aliança, é banquete em
torno do Ressuscitado, Senhor que dá a vida plena e a perfeita caridade. Sem a
eucaristia, a morte na Cruz poderia não significar entrega, sem a morte
redentora e sem eucaristia, o mandamento do amor transformar-se-ia em
filantropia a estiolar por falta de nutrição. Sem a morte na cruz, a Eucaristia
não passava de uma pequena dádiva testamenteira. Sem o amor, nada feito.
***
Mas
entremos em quinta-feira da semana santa. As indicações litúrgicas (rubricas) recomendam que – após a leitura
do Livro do Êxodo (Ex 12,1-8.11-14 – ceia pascal judaica), da 1.ª carta de Paulo aos
Coríntios (1Cor 11,23-26 – relato da instituição da Eucaristia) e do Evangelho de São João (Jo
13,1-15 – o exemplo de Cristo no serviço aos irmãos simbolizado no lava-pés) – na homilia se comentem “os
grandes mistérios que neste dia se comemoram: a instituição da sagrada
Eucaristia, do sacramento da Ordem e o mandato do Senhor sobre a caridade.
A
Liturgia em si não prevê mais atos além da missa, que tem um fim especial, como
se verá.
Porém,
a tradição eclesiástica e popular encheu a tarde e a noite de atos dramáticos e
paralitúrgico, como: a procissão das endoenças
(de
indulgências) ou de
triunfo; a procissão do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, com o
sermão do Encontro; a via-sacra; a procissão das Sete Bandeiras; a procissão do
Senhor Ecce Homo; etc. Tudo isto
distrai as pessoas da veneração do Mistério eucarístico que a Igreja recomenda
nesta noite e nos termos em que a recomenda.
Por
seu turno, as indicações litúrgicas determinam que, “terminada a distribuição
da comunhão, deixa-se sobre o altar a píxide com as partículas para a comunhão
do dia seguinte”; e “a missa conclui com a oração depois da comunhão”. Depois
desta oração, recomenda-se a trasladação solene do Santíssimo Sacramento. É o
testamento do Senhor, que deve ser acarinhado e adorado; é a reserva para a
comunhão no dia da Paixão, em que não se celebra a missa.
Assim,
“o sacerdote, de pé, diante do altar, põe incenso no turíbulo e, de joelhos,
incensa por três vezes, o Santíssimo Sacramento”; e, “em seguida, toma o véu de
ombros, pega na píxide e cobre-a com as extremidades do véu”. Depois,
“organiza-se a procissão, com círios e incenso, indo à frente o cruciferário
com a cruz, e leva-se o Santíssimo Sacramento, através da igreja, para o lugar
da reserva, preparado numa capela convenientemente ornamentada”. Durante o
percurso, canta-se o “Pange, língua”,
com exceção das duas últimas estrofes (que se iniciam com Tantum ergo sacramentum).
Chegada
a procissão ao lugar da reserva, “o sacerdote depõe a píxide” e, tendo colocado
incenso no turíbulo, incensa, de joelhos, o Santíssimo Sacramento. Entretanto,
canta-se o Tantum ergo sacramentum,
após o que se fecha o tabernáculo ou urna da reserva.
O
sacerdote e os ministros, depois de fazerem algum tempo de oração em silêncio,
“fazem a genuflexão e retiram-se para a sacristia”. Não se expõe o Senhor no
ostensório.
Depois,
vem a nota da austeridade do dia: “segue-se a desnudação do altar (dos
altares, exceto o da reserva eucarística)
e, se possível, retiram-se as cruzes da igreja”. E, “se algumas ficam na
igreja, é conveniente cobri-las”.
Todavia,
as recomendações não ficam por aqui em relação à Eucaristia, o que passa assaz
despercebido a muitos:
“Exortem-se os fiéis, tendo em
conta as circunstâncias e as diversas situações locais, a dedicar algum tempo à
adoração do Santíssimo Sacramento”.
E
note-se: “A partir da meia-noite, porém,
esta adoração faz-se sem solenidade”.
Quanto
à sexta-feira da Paixão, determina-se:
-
Que, para a comunhão, se estende “uma toalha sobre o altar, colocam-se sobre
ele o corporal e o missal”; e, depois, o diácono ou, na falta dele, o sacerdote
leva o Santíssimo Sacramento do lugar da reserva para o altar”. Estando todos
de pé em silêncio, “dois ministros com velas acompanham o Santíssimo Sacramento
e colocam as velas junto do altar ou sobre ele”.
-
Que, depois da distribuição da comunhão, “um ministro idóneo leva a píxide para
o lugar previamente preparado fora da igreja ou, se as circunstâncias o
exigirem, coloca-a no sacrário”.
***
Foi
precisamente naquele contexto de adoração “sem solenidade” que, no começo da
tarde do passado dia 13 de abril, Sexta-feira Santa, dei uma volta pela vila de
Santa Maria de Lamas. Ao aproximar-me da igreja paroquial, em que gosto de
entrar, vi algumas pessoas no adro. Preparei-me para seguir o aforismo “em terra onde estiveres, faz como vires”
ou, à boa maneira romana, “dum manseris
Romae, romanus esto” (em Roma sê romano). Não tentei entrar e vi na
porta lateral um aviso de perigo: perigo
de queda de objetos.
Como
ouvi cantar para os lados duma, aliás duas capelas laterais ao adro, com uma
antecâmara que dá para as duas, dirigi-me para lá. E pude contemplar um lindo
espetáculo. Na capela que presumo ser a da Ressurreição, estava sobre o altar
um sacrário móvel com duas velas acesas de cada lado. À frente do altar,
ocupando praticamente o espaço disponível da capela estava uma roda de uns
quinze pré-adolescentes (meninas e meninos), sentados no chão, acompanhados
por três jovens em bancos. Em compostura exemplar, todos rezavam certinhos e, acompanhados
pela viola, cantavam afinados. E, ao retirarem-se, fizeram-no em silêncio total.
Foram rendidos por outro grupo mais novato, mas o espetáculo foi similar. Era
belo vê-los fazer momentos de absoluto silêncio, rezar o Pai Nosso, a invocação
ao Santíssimo Sacramento e as duas orações do Anjo de Portugal. Para quem lê
notícias, vê imagens e/ou está familiarizado com situações comportamentais de miúdas
e miúdos cheios de “hiperatividade” (má educação, nem
pensar; quando muito, certos estilos educativos…), insolência ou bichos
no corpo inteiro (é assim a expressão), o espetáculo foi altamente
edificante. Por esta amostra, Santa Maria de Lamas satisfez o espírito
eucarístico pascal. Ainda há cristianismo com a cafeína do Evangelho e a
sacarose do Reino.
***
O
senhor Abade de Vila Nova de Paiva ofereceu-me o livro “Na Nossa Catedral para sempre nos encontraremos!”, homenagem a Dom
António José Rafael, bispo emérito de Bragança-Miranda, e ao ceramista Mário
Ferreira da Silva. Do livro que fala do sentido da Catedral, das históricas tentativas
da sua ereção, das fases da execução do Mural do Presbitério e do Sacrário (de
acordo com as indicações do prelado),
fixei-me neste último – “um elemento/forma cenográfica e paramento escultórico”
(2,20
x 2,20 metros), “em
material nobre: grés cerâmico policromado” (escultura suspensa na
parede, recortando-se livre e separada do espaço arquitetónico), com 3 relevantes pormenores:
Em
cima, nuvens espargindo luz resplandecente; ao centro, cofre e porta do Sacrário,
com o coração de Cristo envolto em chamas; e, na base, as línguas de fogo do
Espírito Santo envolvidas pelos “dois braços suspensos e estilizados a
simbolizar as mãos no ato de partilha do pão, ao mesmo tempo que sustentam a
patena, sinal da oferenda do Corpo Místico de Cristo”.
O
mote indicado pelo Bispo foi: “O
Nordeste com Cristo e em Cristo no Espírito Santo para o Pai”.
Segundo
o ceramista, o “contorno irregular sinuoso” que delimita a volumetria configura
“o mapa geográfico da diocese”, com “acentuadas texturas e relevos sinuosos”, a
simbolizar “a acidentada topografia
superficial nordestina, a formação estratificada e xistosa das fragas, a matéria
orgânica das suas terras, a um tempo rudes e belas”. E o ceramista
continua:
“Os demais elementos compositivos da sua superfície
configuram a representação mística – Elevação e Ação de Graças ao Pai por
Cristo – Nordeste no Espírito Santo. Na zona superior, o conjunto de elementos
relvados figura nuvens espargindo luz, simbolizando a Glória do Pai. O ‘cofre’,
feito em bronze fundido, é o elemento nobre. Simboliza a habitação de Deus e a
Sua presença entre os homens, consubstanciada no Corpo e Sangue de Cristo: Deus-Connosco
no Nordeste a elevar o Nordeste para o Pai. Uma forma circular em bronze suporta
a porta que ostenta um coração envolto em chamas e representa o Amor de Cristo
irradiado do sacramento da Eucaristia, traduzido nas ‘línguas’ de fogo do
Espírito Santo.”.
Neste
e por este sacrário duma sé desejada em 230 anos e edificada em 20, uma rica
lição de catequese eucarística, trinitária e encarnada numa geografia concreta!
Lembrado das tiradas doutrinais de Dom António Rafael, pergunto-me qual foi
mais criativo: o bispo ou o ceramista.
***
Em
suma, uma Solenidade, o sentido do tríduo pascal (dado
na noite da Última Ceia),
uma oração não solene e um belo espécime escultórico… que rasgos eucarísticos
para reflexão!
2017.04.22 – Louro de Carvalho
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