“Antes
da Páscoa vêm os Ramos” é um provérbio português que revela a sabedoria de quem
não atrapalha o tempo e sabe esperar colocando cada coisa no seu tempo e no seu
lugar.
Porém,
em termos teológicos e espirituais, deve ter-se em conta que a Páscoa da
Ressurreição não seria possível sem o domingo que celebra a entrada triunfal de
Jesus na sua cidade de Jerusalém, aclamado com hossanas Àquele que vem em nome
do Senhor, o Messias, o Rei de Israel. Eram as multidões ruidosas e as vozes inocentes
das crianças que O aclamavam. Na verdade, como canto o Salmo 8, “da boca das crianças e
dos pequeninos” o Senhor fez uma fortaleza contra os seus inimigos,
para fazer calar os
adversários rebeldes.
E,
quando Jesus percebeu que os inimigos desta manifestação teofânica pretendiam calar
este arruído popular, sentenciou: “se eles se calarem, gritarão as pedras” (Lc
19,40).
Era
preciso que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: “Dizei à filha de Sião: Aí vem o teu Rei, ao teu encontro, manso e montado num jumentinho, filho de uma jumenta” (Mt 21,4-5).
Por isso, ao
aproximarem-se de Jerusalém e chegados a Betfagé, junto ao monte das Oliveiras,
Jesus mandou dois discípulos à aldeia que estava em frente deles para trazerem uma
jumenta presa e, com ela, um jumentinho; e que, se alguém os questionasse, respondessem:
‘O Senhor precisa deles, mas logo os devolverá’ (cf Mt 21,1-3).
Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara: trouxeram a
jumenta e o jumentinho, puseram as capas sobre eles e Jesus sentou-Se em cima. Grande
multidão estendia as capas no caminho; outros cortavam ramos das árvores e
espalhavam-nos pelo chão e aclamavam-No (cf Mt 21,6-9).
Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em
alvoroço. E perguntavam quem era ele. E a multidão respondia: “É Jesus, o profeta de Nazaré, da Galileia”
(cf
Mt 21,10-11).
Assim, na procissão dos ramos, a anteceder a Missa, uma das
sugestões de cânticos – a par dos salmos processionais 24 (23), pertencente ao
género literário dos salmos do reino, próximos dos salmos reais, mas relativos
à entronização simbólica de Javé como rei (com os temas da procissão, das
portas do santuário e da chegada da glória de Deus), e 47 (46), em honra da realeza de Javé e em
que se afirma a soberania universal do
Deus de Israel e se convidam todos os povos a um louvor unânime – pode entoar-se
o hino a Cristo Rei, cujo refrão é:
Glória, honra e louvor a Jesus Cristo,
Que é nosso Rei e nosso Redentor.
Como as crianças de Jerusalém,
Cantemos ao que
vem
Em nome do Senhor.
E as estrofes:
1. Louvam os Anjos no
alto dos Céus,
Os homens cantam com
ramos e palmas:
Bendito seja o Filho
de David,
Senhor do mundo e Rei
das nossas almas.
|
2. Exulta o universo
de alegria,
Aclamando a vitória
do Deus forte:
O Cordeiro votado ao
sacrifício
É o Senhor que vai
vencer a morte.
|
3. A alegria do povo
resgatado,
Que celebra o triunfo
de Jesus,
Seja um dia perfeita
e gloriosa
Na claridade da
eterna luz.
|
***
A
aclamação na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém é efémera, mas é um sinal
revelador do que há de ser no fim dos tempos e traduz o significado profundo da
Morte, Sepultura, Descida à Mansão dos Mortos e Ressurreição do Senhor. Uma réplica
para a multidão da cena da transfiguração operada apenas perante Pedro e os dois
filhos de Zebedeu entre Moisés, o da Lei e Elias, o da Profecia (vd
Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36; 2 Pe 1,16-18). Trata-se de cenas que
antecedem no discurso e na ação a Ressurreição de Jesus. Só que a entrada de
Jesus em Jerusalém já era para se efetuar a sua entrega pelos homens na
obediência à vontade do Pai: “por nós,
homens e por nossa salvação…”.
Disse
hoje, na sua homilia, o Papa Francisco que “este Jesus, cuja entrada na Cidade Santa estava prevista nas Escrituras nos termos em que
aconteceu, não é um iludido que apregoa ilusões, um profeta ‘new age’, um vendedor de
fumaça – Longe disso! – mas é um Messias bem definido, com a fisionomia
concreta do servo, o servo de Deus e do homem que caminha para a paixão; é o
grande Padecente da dor humana”.
Por
isso, o domingo de Ramos, como porta de passagem para a Semana Santa, é também
o domingo da Paixão. E, neste ano A, pôde ser proclamado e escutado em assembleia
litúrgica o relato da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus (Mt
26,14 – 27,66).
Com
efeito, após a leitura do Livro de Isaías (Is 50,4-7), em que se contemplou o Servo
que, feito discípulo, Se entregou para dar alento aos abatidos, e da Carta de
São Paulo aos Filipenses, que nos ensina que Jesus Cristo, não Se valeu da sua igualdade
com Deus, mas Se aniquilou e Se tornou semelhante aos homens, vimos como São
Mateus vê em Cristo o cumprimento das profecias veterotestamentária sobre o
Messias.
E,
como dizia o sacerdote que presidiu à celebração eucarística em que participei,
não vamos fixar-nos na traição de Judas nem na postura da tríplice negação de Pedro
– temos é de as esconjurar da nossa vida –, mas devemos fixar-nos na confissão
do centurião e daqueles que com ele guardavam Jesus no Calvário: “Este era verdadeiramente o Filho de Deus”.
Ora, como sabemos, o centurião e os subalternos pensavam que este momento era o
fim de Jesus. Porém, nós estamos seguros de que Ele não só era, mas é o Filho
de Deus, o Senhor. De facto, como prega a Carta aos Filipenses, “porque Se rebaixou a Si mesmo,
tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz, é que Deus O elevou acima de tudo
e Lhe concedeu o nome que está acima de todo o
nome, para que, ao nome de Jesus,
se dobrem todos os
joelhos, os dos seres que estão
no céu, na terra e debaixo da terra; e toda a língua proclame que
Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fl 2,8-11).
Da leitura da Paixão, devo destacar aqui e agora, não só a postura do
traidor, que tantas vezes assumimos, quando nos afastamos da vida cristã ou
atraiçoamos o próximo, ou a negação de Cristo, como fez Pedro, por vergonha ou
respeito humano, com o receio de que nos critiquem, mas a atitude de achincalhamento
ao Senhor.
Na verdade, os soldados do Governador levaram Jesus para o pretório, reuniram
à sua volta toda a coorte, tiraram-Lhe a roupa e envolveram-No num manto
vermelho, teceram uma coroa de espinhos, puseram-Lha na cabeça e colocaram uma
cana na sua mão direita. Depois, ajoelhando escarneciam-No, dizendo: “Salve, Rei dos judeus!” (Mt 27,27-30).
Ora, nós fazemos isto a cada passo. Quantas vezes não apoucamos a figura de
Jesus! Desencantam-me as procissões do Senhor dos Passos ou do Senhor da
Aflição ou do Senhor da Cana Verde – rodeadas de foguetório, disputas,
intrigas, bailaricos e gastos desnecessários. Torna-se obscena a atitude que tantas
vezes tomamos contra a dignidade das pessoas: violência doméstica, violência no
namoro, maus tratos a crianças, mulheres e idosos, tráfico de seres humanos ou
de seus órgãos, exploração de trabalhadores, especialmente mulheres e crianças,
criação de meninos-soldados, prostituição, abuso sexual de menores, piropos achincalhantes.
Não estamos a apresentar assim tantas vezes um Cristo desnudo ou com o manto de
escárnio? Não pomos em cima da cabeça do rei da criação, que tiritando chora,
como dizia Alexandre Herculano, a coroa de espinhos?
A escuta do relato da Paixão de Jesus terá de nos interpelar também hoje a
nós, mesmo que o terrorismo nos esteja a assustar e a condicionar a vida e as
atitudes. Aliás, quem sabe se os atos terroristas não vêm na sequência do
apagão do Evangelho por parte dos que se dizem cristãos!
***
Talvez
seja oportuno refletir nas palavras que Francisco dirigiu aos participantes na celebração
da Eucaristia de hoje, no quadro da sua homilia:
“Enquanto festejamos o
nosso Rei, pensemos nos sofrimentos que Ele deverá padecer nesta Semana.
Pensemos nas calúnias, nos ultrajes, nas ciladas, nas traições, no abandono, no
julgamento iníquo, nas bastonadas, na flagelação, na coroa de espinhos... e,
por fim, no caminho da cruz até à crucifixão.”.
Mas o Papa não esquece o desafio claro previamente
lançado aos discípulos:
“Se alguém quer vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me
(Mt 16,24). Nunca prometeu honras nem
sucessos. Os Evangelhos são claros. Sempre avisou os seus amigos de que a sua
estrada era aquela: a vitória final passaria sempre pela paixão e pela cruz. E,
para nós, vale o mesmo. Para seguir fielmente a Jesus, peçamos a graça de o
fazer não por palavras, mas com as obras e de ter a paciência de suportar a
nossa cruz: não a recusar nem jogar fora, mas, com os olhos fixos n’Ele,
aceitá-la e carregá-la dia após dia.”.
Depois, “este Jesus, que aceita ser aclamado,
mesmo sabendo que O espera o ‘crucifica-o!’, não nos pede que O
contemplemos apenas nos quadros, nas fotografias, ou nos vídeos que circulam na
rede”. Insiste o Pontífice:
“Está presente em muitos
dos nossos irmãos e irmãs que hoje, sim hoje, padecem tribulações como Ele:
sofrem com um trabalho de escravos, sofrem com os dramas familiares, as
doenças... Sofrem por causa das guerras e do terrorismo, por causa dos
interesses que se movem por detrás das armas que não cessam de matar. Homens e
mulheres enganados, violados na sua dignidade, descartados.... Jesus está
neles, em cada um deles, e com aquele rosto desfigurado, com aquela voz rouca,
pede para ser enxergado, reconhecido, amado.”.
E o Papa avisa, para que ninguém se confunda ou
distraia:
“Não há outro Jesus: é o
mesmo que entrou em Jerusalém por entre o acenar de ramos de palmeira e
oliveira. É o mesmo que foi pregado na cruz e morreu entre dois malfeitores.
Não temos outro Senhor além d’Ele: Jesus, humilde Rei de justiça, misericórdia
e paz.”.
***
Boa
Semana Santa!
2017.04.09 – Louro de Carvalho
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