Foi o Papa Montini quem sublinhou naquela encíclica o
significado de “desenvolvimento integral”(n.º 21)
e que propôs a fórmula: “desenvolvimento de todos os homens e do homem todo” (n.º 14) – recordou o Papa Francisco ao receber, na manhã do
dia 4 de abril, em audiência na Aula Paulo VI, os cerca de 300 participantes no
Congresso Internacional sobre os 50 anos da publicação da “Populorum Progressio”, do Beato Paulo VI – um congresso que, segundo
o Pontífice, “corresponde significativamente ao nascimento do novo Dicastério
para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral”.
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O Congresso
O Vaticano promoveu nos dias 3 e 4 de abril o predito
Congresso para assinalar os 50 anos da encíclica ‘Populorum Progressio’, do Papa Paulo VI – evento organizado pelo
novo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, com o título
‘Perspetivas para o Serviço do
Desenvolvimento Humano Integral: 50 anos da Populorum Progressio’.
Em comunicado, a Sala de Imprensa da Santa Sé assinalava que
o objetivo da iniciativa era “aprofundar as perspetivas teológicas,
antropológicas e pastorais” da encíclica de Paulo VI, em particular em relação
às atividades de quem trabalha em favor da promoção da pessoa, e de formular
orientações para as atividades do novo dicastério criado pelo Papa Francisco.
O Congresso, que incluiu uma audiência concedida pelo Papa
Francisco, às 11,30 horas do dia 4, foi emitido em streaming no endereço www.corunum.va, decorreu na Aula Nova do Sínodo.
Participaram no encontro, em particular, os membros dos
Pontifícios Conselhos que foram agrupados no novo Dicastério (Justiça e Paz, Cor Unum, Migrantes e
Itinerantes, Agentes de Saúde), os Representantes das Conferências Episcopais e das respetivas
Comissões sociais “Justiça e Paz”, representantes de caridade católicos a nível
internacional e o Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé.
O Congresso foi aberto, no dia 3 de abril, com o
pronunciamento do Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento
Humano Integral, Cardeal Peter Turkson, e com a abordagem teológica do tema
antropológico, sob a responsabilidade do Prefeito da Congregação da Doutrina da
Fé, Cardeal Gerhard Ludwig Müller. O encontro articulou-se com base nas três
tensões fundamentais da pessoa: corpo-alma, homem-mulher e pessoa-sociedade –
três sessões. E, numa outra sessão além dos pronunciamentos de especialistas de
diversas áreas, contou-se com testemunhos sobre a forma como a Igreja trabalha
diretamente em prol dos mais vulneráveis. E o Cardeal Secretário de Estado,
Pietro Parolin, presidiu à celebração Eucarística, no dia 3 de abril, na
Basílica de São Pedro, e, às 11,30 horas do dia 4, decorreu a prevista audiência
com o Santo Padre.
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Memória de Paulo VI
A encíclica do desenvolvimento como “o novo nome da paz”
completou 50 anos no dia 26 de março. No domingo
de Páscoa de 1967 (26 de março), na mensagem à Cidade e a Mundo, o Papa anunciava a
sua publicação com estas palavras:
“E, como a Nós, discípulos de uma tradição doutrinal da
Igreja, que reflete as esperanças religiosas também no plano concreto da vida
humana, ou seja, no plano social, nos parece ser este o momento, depois do recente
Concílio Ecuménico, de retomar, com um outro capítulo, a lição sobre as
questões que agitam e preocupam e dividem os homens em busca de pão, paz, liberdade,
justiça e fraternidade, e de oferecer ao mundo uma Nossa humilde e cordial
palavra de esperança, não apenas religiosa, mas também social, não apenas
espiritual, mas também terrena, não apenas para os crentes em Cristo, mas
igualmente para todos, e sempre ditada pela luz que nos vem da fé –, vamos
publicar, nestes próximos dias, uma Nossa Carta Encíclica, que terá como tema o
progresso dos povos, o seu desenvolvimento e as obrigações resultantes de um
programa, a que hoje já não se pode renunciar, de suficiência económica,
dignidade moral, colaboração universal para todas as pessoas”.
E, a 2 de abril, domingo in Albis (II domingo da Páscoa), aquando da oração
do Regina Coeli, na Praça de S. Pedro
e a propósito dos comentários que se faziam sobre a Encíclica, Paulo VI dizia:
“Queremos hoje rezar para que
este documento seja compreendido pelo que ele quer ser, ou seja, como uma
mensagem à Igreja e ao mundo para a justiça e a paz, e para que traga
esperanças boas e legítimas para nações necessitadas e em desenvolvimento; e
infunda ao mesmo tempo – o que é mais difícil – novos sentimentos e propósitos
de generosidade e solidariedade naqueles que possuem bens económicos e bens
culturais, de modo a disponibilizá-los para os povos que têm menos. Esta Nossa
palavra toca problemas graves e difíceis, mas fazemos votos por que ela
conforte os esforços, já iniciados por vários organismos e homens de boa
vontade e competentes, para lhes dar uma solução gradual e positiva”.
O documento pontifício propunha a criação de “um grande Fundo
mundial”, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para ir em
auxílio dos “mais deserdados”. Segundo Pedro Vaz Patto, Presidente da CNJP (Comissão Nacional Justiça e Paz), a encíclica do “desenvolvimento
humano integral” apresentada por Paulo VI, que inspirou o Papa Francisco a
criar um novo organismo da Santa Sé, precisamente com esse nome, explicita o
desenvolvimento como “o desenvolvimento de todos os homens e do homem todo”,
para sair ao encontro da aspiração de realizar, conhecer e possuir mais, para ser
mais. E “o desenvolvimento, pessoal e comunitário é um dever que corresponde
aos desígnios de Deus”.
***
Discurso de Francisco
Mas, voltando ao discurso de Francisco aos participantes no
Congresso, importa perceber o que significam estes conceitos para o futuro
próximo. E o Papa convidou os congressistas a juntos examinarem alguns aspetos:
integrar os diversos povos da terra e oferecer modelos praticáveis de
integração social; integrar no desenvolvimento todos os elementos que o tornam
realmente desenvolvimento integral; integrar a dimensão individual e
comunitária; e integrar corpo e alma.
No que toca ao primeiro aspeto – integrar os diversos povos
da terra, Francisco explicou que
“O dever de solidariedade obriga a procurar justas modalidades de
partilha, a fim de que não haja aquele dramático fosso entre quem tem muito e
quem não tem nada, entre quem descarta e quem é descartado. Só o caminho da
integração entre os povos proporciona à humanidade um futuro de paz e esperança”.
Quanto aos modelos práticos de integração social, sublinhou
que todos têm um contributo a dar à sociedade para o bem comum – um direito e
um dever. É o princípio de subsidiariedade, que requer o contributo de todos,
individualmente e como grupos, se queremos criar uma convivência humana aberta
a todos e integrar no desenvolvimento todos os elementos que o tornam
verdadeiramente tal, ou seja, a economia, as finanças, o trabalho, a cultura, a
vida familiar, a religião. Nenhum destes elementos pode ser absolutizado ou
posto de lado num processo de desenvolvimento integral que tenha em
consideração a vida humana. É como uma orquestra que toca bem se os seus
diversos instrumentos estiverem bem afinados e se seguem uma pauta partilhado
entre todos. Há ainda que integrar a dimensão individual e comunitária – pois o
“eu” e a comunidade não são concorrentes entre si. Explicita o Papa:
“O ‘eu’ pode amadurecer só em
presença de relações interpessoais autênticas e a comunidade é geradora quando
o são todos e singularmente os seus componentes. Isto vale ainda mais na
família que é a primeira célula da sociedade e em que se aprende a viver juntos.”.
Trata-se de integrar entre si corpo e alma – continuou o
Papa. E, recordando que já Paulo VI dizia que não se pode reduzir o
desenvolvimento ao mero crescimento económico, sustenta que “não se trata
apenas de ter cada vez mais bens à disposição”. Com efeito, “integrar corpo e
alma significa também que nenhuma obra de desenvolvimento poderá atingir
realmente o seu escopo se não respeitar aquele lugar onde Deus está presente e
fala ao nosso coração”.
E convidou a ver no facto de Deus se ter feito homem o real
significado de desenvolvimento integral, isto é, um desenvolvimento que não
negligencia nem Deus nem o homem, pois assume toda a consistência de ambos. Um
verdadeiro progresso, considera o Papa, implica o respeito pelo indivíduo, que
não pode ser vítima de sistemas políticos ou financeiros, mas recusa a queda no
individualismo, relacionando o desenvolvimento com o conceito de pessoa e
advertindo:
“Neste sentido, o conceito de pessoa nascido e amadurecido no
cristianismo, ajuda a procurar um desenvolvimento plenamente humano. Dado que
pessoa significa sempre relação, não individualismo, afirma inclusão e não
exclusão, a dignidade única e inviolável e não a exploração, a liberdade e não a
constrição”.
A Igreja, segundo o Papa, está convicta de que o desenvolvimento
integral é a via do bem que a família humana é chamada a percorrer. Por isso, ela
não se cansa de oferecer esta sabedoria e a sua obra ao mundo. E o Pontífice convidou
os presentes a levarem avante com paciência e constância esta ação, confiantes
de que o Senhor os acompanha.
Mas Francisco
não deixou de reiterar a crítica a um modelo de globalização que esmaga os
povos, privando-os de liberdade em nome do avanço económico.
De facto, a Populorum Progressio, que significa “progresso
dos povos”, introduziu na Igreja uma nova visão sobre temas como a propriedade
privada e os sistemas económicos, como referiu o Papa Francisco no sobredito
discurso, em que explicitou:
“Os vários sistemas: a economia, a finança, o
trabalho, a cultura, a vida familiar, a religião são, cada um no seu contexto,
um momento irrenunciável do desenvolvimento. Nenhum deles se pode absolutizar,
nem nenhum se pode excluir de uma conceção de desenvolvimento integral que
tenha em conta que a vida humana é como uma orquestra que só toca bem se os
vários instrumentos estão afinados e seguem um ritmo partilhado por todos.”.
E, sobre o
modelo de globalização que esmaga os povos, disse:
“Não faltam visões ideológicas e poderes políticos que
esmagaram a pessoa, que a massificaram e a privaram daquela liberdade sem a
qual o homem já não se sente homem. Esta massificação interessa aos poderes
económicos que querem explorar a globalização, em vez de favorecer uma maior
partilha entre os homens, só para impor um mercado global, cujas regras são impostas
por eles e das quais retiram benefícios.”.
***
Por fim, os
diversos apelos da Populorum Progressio:
- Aos Católicos, Paulo VI ensina que, “nos países em vias de desenvolvimento, assim como em
todos os outros, os leigos devem assumir como tarefa própria a renovação da
ordem temporal”. E distingue:
“Se o papel
da hierarquia consiste em ensinar e interpretar autenticamente os princípios
morais que se hão de seguir neste domínio, pertence aos leigos, pelas suas
livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes, imbuir de
espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua
comunidade de vida. São necessárias modificações e são indispensáveis reformas
profundas: devem eles esforçar-se decididamente por insuflar nestas o espírito
evangélico.”.
Aos
católicos que pertencem aos países mais favorecidos pede o contributo da
competência e da participação ativa “nas organizações oficiais ou privadas,
civis ou religiosas, empenhadas em vencer as dificuldades das nações em fase de
desenvolvimento”, havendo de ter “muito a peito o serem contados entre os
primeiros de quantos trabalham por estabelecer, na realidade dos fatos, uma
moral internacional de justiça e de equidade”.
- Aos outros cristãos e demais crentes diz
não duvidar de que os cristãos “hão de
querer aumentar o seu esforço comum e organizado para a ajudarem o mundo a
triunfar do egoísmo, do orgulho e das rivalidades, a ultrapassar as ambições e
injustiças, a permitir a todos o acesso a uma vida mais humana, onde cada um
seja amado e ajudado como próximo, como irmão”. E, lembrado do encontro, em
Bombaim, com os irmãos não cristãos, convida-os “a trabalharem, de todo o
coração e com toda a sua inteligência, para que todos os filhos dos homens
possam levar uma vida digna de filhos de Deus”.
- Aos homens
de boa vontade afirma voltar-se para todos eles, que são cônscios de que a via da paz passa pelo
desenvolvimento, sendo que os delegados às instituições internacionais, os homens
de Estado, os publicistas, os educadores, todos, cada um no seu campo, são “os
construtores de um mundo novo”. Por isso, suplica a Deus todo-poderoso que lhes
esclareça a inteligência e lhes fortifique a coragem para despertarem a
opinião pública e conduzirem os povos. Segundo o Papa, aos educadores compete “estimular,
desde a infância, o amor para com os povos que vivem na miséria”; e aos
publicistas “pertence pôr diante dos nossos olhos os esforços realizados no
sentido da ajuda mútua entre os povos, assim como o espetáculo das misérias que
os homens tendem a esquecer para tranquilizar a consciência”. E pretende que, “ao
menos, os ricos saibam que os pobres estão à sua porta e esperam os sobejos dos
festins”.
- Aos homens de Estado Paulo VI lembra que lhes incumbe mobilizar as comunidades “para uma solidariedade
mundial mais eficaz e, sobretudo, levá-las a aceitar os impostos necessários
sobre o luxo e o supérfluo, a fim de promoverem o desenvolvimento e salvarem a
paz”; e que dos delegados às organizações internacionais “depende que perigosas
e estéreis oposições de forças deem lugar à colaboração amiga, pacífica e
desinteressada em prol dum desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos
os homens possam realizar-se”.
- Aos sábios Montini apresenta um mundo que sofre por falta de
convicções. E convoca os pensadores e os sábios, católicos, cristãos, os que
honram a Deus, os que estão sedentos de absoluto, de justiça e de verdade:
todos os homens de boa vontade. E, a exemplo de Cristo, ousa pedir-lhes
instantemente:
“Buscai
e encontrareis, abri os caminhos que levam pelo auxílio mútuo a um
aprofundamento do saber, a ter um coração grande, a uma vida mais fraterna numa
comunidade humana verdadeiramente universal”.
Finalmente, a
todos os que ouviram o apelo dos povos na aflição, aos que se empenham em
responder-lhes, assegura:
“Vós sois os apóstolos do bom e verdadeiro desenvolvimento, que não
consiste na riqueza egoísta e amada por si mesma, mas na economia ao serviço do
homem, no pão quotidiano distribuído a todos como fonte de fraternidade e sinal
da Providência”.
E, enquanto
os abençoa de todo o coração, chama todos os homens de boa vontade a unirem-se-lhes
fraternalmente. E lança a todos o desafio:
“Porque, se o desenvolvimento é o
novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças? Sim,
a todos convidamos nós a responder ao nosso grito de angústia, em nome do
Senhor.”.
***
Talvez em
tempo algum o conteúdo da Encíclica interpele como hoje os cristãos e as
cristãs e os homens e mulheres de boa vontade!
2017.04.05 – Louro de Carvalho
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