O
Governo, segundo consta a pedido dos Bispos portugueses, decretou a tolerância de
ponto para os funcionários públicos para o dia 12 de maio, por ocasião da
visita do Papa Francisco à peregrinação de maio a Fátima, em que presidirá à
canonização de dois dos pastorinhos.
As
reações não se fizeram esperar da parte de diversos quadrantes. Desde medida
desnecessária e discriminatória a atentado contra a laicidade do Estado, já
muita coisa foi dita. Obviamente que PSD e CDS aproveitaram a ocasião para se
posicionarem e dizem-se a favor. Assim, já vieram afirmar a sua concordância
com esta decisão do Governo.
Em declarações
à Lusa, Duarte Pacheco mostrou-se
favorável à decisão, afirmando que o Governo “compreendeu que o país é
maioritariamente católico” e que, em Fátima, com a visita papal, o centenário
das aparições e a canonização de dois pastorinhos, “é um acontecimento
excecional”. Naturalmente, “para acontecimentos excecionais, tomam-se medidas
excecionais”. E o deputado do PSD recusa a ideia de que, com esta medida, se
esteja a colocar em causa o Estado laico. Da parte do CDS, o deputado Filipe
Anacoreta Correia manifestou a concordância com a decisão, interpretando-a como
o “reconhecimento da importância do Papa Francisco, da Igreja Católica em
Portugal e de que esta visita mexe com milhares de pessoas que vão deslocar-se
a Fátima”. E acrescentou que, “com esta decisão, o Governo teve a preocupação
de se associar a uma circunstância de grande alegria para os portugueses”. E é
verdade.
Estes dois
partidos, do meu ponto de vista, mostram sincera ou oportunistamente uma postura
equilibrada nesta matéria, coincidente com a de António Costa. Não me seduz o argumento
do deputado do PSD de que o Governo “compreendeu que o país é maioritariamente católico”.
Não é só isso que está em causa, até porque a maioria nem é praticante e os
praticantes arranjariam forma de agir em quaisquer circunstâncias de paz e
boa-fé. O que me move para a concordância com a tolerância de ponto é o
significado que Fátima, o Papa e a peregrinação centenária têm no país, não só
do ponto de vista religioso, mas também do ponto de vista económico, sobretudo do
lado do turismo e da imagem que Portugal projeta para o exterior.
Evidentemente
que é verdade o que diz o Primeiro-Ministro: “É natural que
o Governo dê tolerância de ponto para facilitar a quem deseja participar nas
cerimónias que o possa fazer”. É a atitude facilitadora do Governo, para o
qual a simbólica não tem que ter o peso que tem para mim. Aliás, a tolerância de
ponto abrange apenas os funcionários do Estado e não os demais trabalhadores,
cuja dispensa, a acontecer, é da competência das respetivas entidades
patronais. E o Governo age como órgão superior da administração pública, como
entidade patronal que oferece aos seus trabalhadores uma liberalidade, quando outros
atacaram tanto este setor do trabalho – a função pública – com menosprezo pela
função, empolamento e até calúnia sobre privilégios, corte de salários e
subsídios, sobrecarga de trabalho e redução do tempo de férias.
***
Os partidos
mais à esquerda parecem estar num silêncio tático. Fazem bem em deixar que o
Executivo exerça uma competência exclusivamente sua, mostrando alguma coerência
quando dizem admirar este Papa, que denuncia a economia que mata ou a guerra em
pedaços e põe a Igreja a falar da vez e da voz dos pobres, numa ótica humanista.
Um deputado
do PS, eleito pelo Porto, vê com “estranheza e estupefação” esta concessão,
considerando o ato governamental “particularmente disparatado” e diz em nota do
Facebook:
“Necessitamos
de outra maturidade democrática e esta atitude irá no sentido inverso. Não é
muito comum encontrar erros no Governo que apoio e para cuja maioria trabalho
diariamente no Parlamento, mas aqui está um.”.
Este
coordenador do PS na comissão de Trabalho e Segurança Social escreveu na mesma
nota:
“Não conheço
as razões que serão invocadas no decreto, mas já antecipo que sejam facilmente
rebatíveis: não pode fundamentar-se na viagem de um Chefe de Estado estrangeiro
e ainda menos na viagem de um líder confessional”.
E ainda:
“De outra
forma, será legítimo invocar o mesmo princípio para membros de outras religiões
e, sobretudo, para quem não tem qualquer religião e vive num Estado laico,
tendo também direito a tolerâncias para participar nos espetáculos que entenda”.
E,
contracriticando um comentário, acrescentou:
“Quem quer
ir a espetáculos, seja de índole religiosa ou não, tem férias para usar no
exercício da sua liberdade. A República é laica.”.
Também os
deputados do PS se dividem sobre a matéria: uns contra, como Ascenso Simões;
outros a favor, como João Soares. Ascenso Simões afirmou à Lusa que a tolerância não faz sentido, dado que a 12 de maio, “só
há procissão das velas à noite e as comemorações são a um sábado”. Esquece que
as pessoas têm de ir muito mais cedo, por razões de estacionamento e segurança.
Já João Soares, em declaração à Lusa,
reagiu de forma concisa: “Abençoada tolerância
para um papa tolerante!”. Nas redes sociais, as posições sucedem-se e são bem
diferentes. Isabel Moreira, independente eleita nas listas do PS, escreve no
Facebook:
“É perante
decisões como a do Governo de conceder tolerância de ponto aquando da ida do Papa
a Fátima que sabemos da imaturidade do Regime. Muito por que lutar.”.
Também Porfírio
Silva, deputado e membro da comissão permanente, desdramatizou, no Facebook, os
planos do executivo, afirmando tratar-se de “uma medida prática e que tem em conta a realidade concreta do que vai
acontecer na ocasião”. E acrescentou:
“Cansa um
excesso de vigilância ideológica sobre tudo e mais alguma coisa, como se fosse
precisa tanta rigidez (a criticar a tolerância de ponto) para continuarmos a
ser socialistas, republicanos e laicos”.
E Carlos
César, Presidente do PS e líder parlamentar, questionado pela Lusa, disse concordar com a decisão, não
considerando excessivo decretar a tolerância de ponto na função pública.
***
Por sua vez, a AAP (Associação Ateísta Portuguesa), como era de esperar, diz que esta
decisão é “um descarado ataque à laicidade” do Estado. Em declarações à Lusa, o Presidente da AAP, Carlos
Esperança, considera a medida “uma atitude indigna de submissão perante a
Igreja Católica”.
O dirigente ateísta rejeitou ainda “a caução que, de certo
modo, está a ser feita pelas entidades públicas a uma encenação que começou por
ser contra a República”, numa alusão ao fenómeno registado em Fátima, concelho
de Ourém, entre maio e outubro de 1917, e que a Igreja classifica como
aparições da Virgem Maria a três crianças (Lúcia, Jacinta e Francisco) que apascentavam ovelhas. Com efeito, segundo ele, em 1930,
as alegadas aparições “passaram a ser contra o comunismo e, depois da implosão
da União Soviética, contra o ateísmo”. E criticou:
“Esta
encenação pia tem tido a colaboração de autarquias que sofrem ataques de fé e
proselitismo em anos eleitorais”.
Para o presidente da AAP,
a concessão de tolerância de ponto nos serviços públicos põe em causa “a letra
e o espírito da Constituição da República” e constitui “uma traição à separação
entre as igrejas e o Estado”. Mas Carlos Esperança não se ficou por aqui:
criticou também os autarcas que organizam excursões a Fátima, sobretudo com
idosos e em ano de eleições locais, “com transportes e vitualhas” pagos por
câmaras e juntas, “só com a bênção a cargo das autoridades eclesiásticas”.
Ora nem as crianças sabiam da República nem do comunismo. E a
expressão da Aparição é “os erros da Rússia” que excedem o comunismo. Será que
os Czares e Putin são comunistas?
E também
diretores de escolas e agrupamentos de escolas, pela voz do Presidente da
ANDAEP, se metem na contestação à medida governamental, alegadamente pelo prejuízo
causado aos alunos, sobretudo os do 9.º, 11.º 12.º anos.
***
Ao Presidente
da ANDAEP gostava de perguntar se a planificação das atividades letivas é feita
milimetricamente pelos dias considerados disponíveis no início do ano. Se vivesse
no interior do país, o rico pedagogo rogaria pragas à neve, que é o maior fator
de encerramento de escolas. Depois, não sei se é tão rápido a substituir docentes
quando a doença ou a maternidade criam partidas à escola. Confesso que, em 2010,
a tolerância de ponto a 13 de maio, para todos os funcionários públicos (a 11, foi
para os do concelho de Lisboa e, a 14, para os concelho do Porto), por ocasião da visita de Bento XVI, me causou
desarranjo: tive de acabar as aulas do 10.º ano do ensino profissional dias mais
tarde do que aquilo que contava, pois a escola estava fechada e as aulas tinham
de ser dadas quando os alunos tivessem disponibilidade. E os diretores então não
falaram em prol dos professores e dos alunos! Era a sujeição a Sócrates, não?!
Aos deputados
do PS, agora do contra, pergunto porque estavam tão caladinhos no tempo da governação
de Sócrates, que até aproveitou o ambiente da tolerância de ponto e da presença
de Sua Santidade para negociar com Passos Coelho o PEC3. Agora Costa deixa
falar, não é?!
À AAP e à deputada independente do PS, deixando para trás o que penso
sobre a distinção entre laicidade/aconfessionalidade e respeito/cooperação (que tenho expandido
à saciedade), pergunto
se, com a máscara da laicidade, pretendem um Estado autista e uns órgãos do
poder político qual locomotiva descolada das carruagens em que viaja o povo diariamente
e nos grandes dias.
E fico-me
com o que disse o Primeiro-Ministro, que hoje
considerou que seria uma “grande insensibilidade” se o Governo não concedesse
tolerância de ponto a 12 de maio, quando o Papa chega a Portugal para celebrar
o centenário das “Aparições de Fátima”.
Costa, quando falava aos jornalistas no final dum almoço-debate
promovido pela Associação dos Administradores e Gestores de Empresas, em Lisboa,
foi confrontado com a contestação de deputados do PS a esta concessão governativa.
E respondeu assim:
“É natural que muitos portugueses desejem participar na
visita do papa Francisco a Portugal, um momento que distingue o país. Por isso,
também é natural que o Governo dê tolerância de ponto para facilitar a quem
deseja participar nas cerimónias que o possa fazer e diminuam as condições de
congestionamento”.
Ao invés, para o Primeiro-Ministro,
“seria estranho se o Governo não tomasse essa decisão”. E, reforçando a sua
posição, aduziu:
“Tenho um grande à-vontade sobre esta matéria, porque não só
defendo a laicidade, como não sou crente, mas respeito a crença dos outros e
não ignoro que muitos portugueses perfilham a fé católica e que muitos
portugueses desejarão estar em Fátima. Acho que seria uma grande
insensibilidade da parte do Governo não o fazer, como temos feito em outras
ocasiões.”.
Sobre as críticas do
deputado do PS Barbosa Ribeiro, argumentou que “as críticas são todas legítimas”,
mas frisou que “a liberdade religiosa e a laicidade implicam também o respeito
pelas crenças dos outros”, declarando que não é “crente”, mas respeita “as
crenças dos outros”.
E penso que a tolerância deve chegar ao ponto de os católicos
cooperarem, por exemplo, na celebração do centenário da revolução russa – dada a
sua importância histórica – com debates, marcações simbólicas, diálogo com
historiadores, outros académicos políticos, militares e economistas. E se for
oportuna a tolerância de ponto, porque não? A História vale por si,
independentemente da opinião de cada um sobre os factos.
2017.04.27 – Louro
de Carvalho
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