quarta-feira, 21 de setembro de 2016

“Sede de paz. Religiões e cultura em diálogo”

O Papa Francisco convocou oportunamente, para ontem, dia 20 de setembro (enviou carta aos bispos para que convidassem “os católicos, os cristãos, os crentes e todos os homens e mulheres de boa vontade, de qualquer religião, a rezar pela paz”), a Igreja para uma jornada de oração pela paz, que teve em Assis o seu momento mais expressivo com o encontro internacional e inter-religioso pela paz em Assis, que tem como tema “Sede de paz. Religiões e cultura em diálogo”.
O encontro de Assis assinala o 30.º aniversário do primeiro evento do género, promovido por João Paulo II, em 1986; o santo polaco repetiu o gesto em 1993 e 2002. Bento XVI, o agora Papa emérito, também promoveu encontros em Assis, em 2006 e 2011. E agora, visitada pelo Papa, esta cidade italiana foi palco de um encontro inter-religioso pela paz, “num mundo em guerra”. A este propósito, na Missa a que presidiu no Vaticano, Francisco disse que todas as religiões se devem unir na oração ao “Deus da paz”, sublinhando que a iniciativa de Assis “não é um espetáculo”, mas um encontro “para rezar e rezar pela paz”. E, neste sentido clamou:
“Paz, Paz! Que o nosso coração seja um coração de homem ou mulher de paz. E para além das divisões das religiões: todos, todos, todos! Porque todos somos filhos de Deus. E Deus é Deus de paz. Não existe um Deus de guerra: quem faz a guerra é o maligno, o diabo, que quer matar a todos.”
O Pontífice seguiu de helicóptero para Assis, onde aterrou no recinto desportivo “Migaghelli”, em Santa Maria dos Anjos. Ali, foi recebido por Dom Domenico Sorrentino, arcebispo de Assis, e pelas diversas autoridades civis e religiosas locais. E, no Sacro Convento de Assis, o Papa encontrou-se com o patriarca ecuménico de Constantinopla (Igreja Ortodoxa), Bartolomeu I; com o arcebispo de Cantuária (Igreja Anglicana), Justin Welby; com o patriarca siro-ortodoxo de Antioquia, Efrém II; e com representantes das religiões judaica, muçulmana e budista. Este grupo seguiu, depois, rumo ao Claustro de Sisto IV, onde se reuniu com representantes das várias Igrejas e Religiões Mundiais e os bispos da região da Úmbria, de Itália.
O Papa cumprimentou os presentes, incluindo seis vencedores do Prémio Nobel da Paz, bem como o padre e poeta português José Tolentino Mendonça. Além destes, encontrou-se com um grupo de 25 refugiados: 10 hóspedes da Comunidade de Santo Egídio em Roma; 10 do Centro de Acolhimento de Requerentes de Asilo (Cara) de Castelnuovo di Porto; e 5 da Cáritas de Assis.
Os refugiados almoçaram com o Papa no refeitório do Sacro Convento dos Franciscanos; em seguida, uma refugiada oriunda de Alepo (Síria) e refugiada na região da Toscana subiu ao palco para tomar a palavra. A tarde começou com uma série de encontros pessoais entre o Papa e os diversos líderes religiosos; e, pelas 16 horas, os participantes procederam à oração ecuménica pela paz, na Basílica Inferior de São Francisco, (Igrejas e comunidades cristãs) e noutros locais (outras religiões) – como prepararam a Fraternidade Franciscana e a Comunidade de Santo Egídio.
A Praça de São Francisco acolheu a cerimónia conclusiva, com testemunhos de vítimas da guerra, de responsáveis religiosos, do fundador da Comunidade de Santo Egídio, e com a meditação e o discurso do Papa. E o encontro terminou com a proclamação de um “Apelo de Paz” – assinado pelo Papa e pelos representantes das várias confissões religiosas –, depois entregue a crianças de vários países, para o distribuírem pelos líderes políticos e diplomáticos ali presentes, após um momento de silêncio pelas vítimas das guerras. Foram acesas velas pela paz, num candelabro, e trocado o abraço entre os presentes. E, antes de partirem, os vários responsáveis religiosos largaram dois balões de papel iluminados e a trocar o abraço da paz.
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A meditação do Papa centrou-se na sede de Jesus crucificado (cf Jo 19,28), no pressuposto de que a sede é, mais que a fome, a necessidade extrema do homem e representa a sua extrema miséria”. Ora, contemplando “o mistério do Deus Altíssimo, que Se tornou, por misericórdia, miserável entre os homens”, Francisco interrogou-se “de que tem sede o Senhor”. E respondeu:
“Certamente de água, elemento essencial para a vida; mas sobretudo de amor, elemento não menos essencial para se viver. Tem sede de nos dar a água viva do seu amor, mas também de receber o nosso amor.”
Jeremias “expressou o comprazimento de Deus pelo nosso amor”, mas também deu voz “ao sofrimento divino, quando o homem, ingrato, abandonou o amor”. E aí surgiu o drama do ‘coração árido’, do amor não correspondido, “drama que se renova no Evangelho, quando à sede de Jesus o homem responde com vinagre”. Este drama do “amor não amado” turvava São Francisco de Assis. E Santa Teresa de Calcutá quis que, nas capelas de cada comunidade, estivesse escrito perto do Crucifixo, “Tenho Sede”, como apelo ao compromisso para “apagar a sede de amor de Jesus na cruz, através do serviço aos mais pobres dos pobres”. Com efeito, no Juízo final, Ele chamará ‘benditos’ aos que “deram de beber a quem tinha sede”, aos que “ofereceram amor concreto a quem estava necessitado”. E o Papa frisou:
“As palavras de Jesus interpelam-nos, pedem acolhimento no coração e resposta com a vida. Na sua exclamação ‘tenho sede’, podemos ouvir a voz dos que sofrem, o grito escondido dos pequenos inocentes a quem é negada a luz deste mundo, a súplica instante dos pobres e dos mais necessitados de paz. Imploram paz as vítimas das guerras que poluem os povos de ódio e a terra de armas; imploram paz os irmãos e irmãs que vivem sob a ameaça dos bombardeamentos ou são forçados a deixar a casa e emigrar para o desconhecido, despojados de tudo. Todos eles são irmãos e irmãs do Crucificado, pequeninos do seu Reino, membros feridos e sedentos da sua carne.”
E Francisco interroga-se, denunciando a indiferença, o egoísmo e a frieza de tantos:
“Quem os ouve? Quem se preocupa em responder-lhes? Deparam-se muitas vezes com o silêncio ensurdecedor da indiferença, o egoísmo de quem se sente incomodado, a frieza de quem apaga o seu grito de ajuda com mesma facilidade com que muda de canal na televisão.”
E, neste sentido, confiando em Maria presente ao pé da Cruz, conclui:
“À vista de Cristo crucificado, ‘poder e sabedoria de Deus’ (1Cor 1,24), nós, cristãos, somos chamados a contemplar o mistério do Amor não amado e a derramar misericórdia sobre o mundo. Na cruz, árvore de vida, o mal foi transformado em bem; também nós, discípulos do Crucificado, somos chamados a ser ‘árvores de vida’, que absorvem a poluição da indiferença e restituem ao mundo o oxigénio do amor. Do lado de Cristo, na cruz, saiu água, símbolo do Espírito que dá a vida (cf Jo 19,34); do mesmo modo saia de nós, seus fiéis, compaixão por todos os sedentos de hoje.”
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No seu discurso, Francisco referiu trazermos connosco e colocarmos diante de Deus “os anseios e as angústias de muitos povos e pessoas”. E porfiou a “sede de paz”, “o desejo de testemunhar a paz”, e a “necessidade de rezar pela paz, porque a paz é dom de Deus”, cabendo-nos “invocá-la, acolhê-la e construí-la cada dia com a sua ajuda”. Dom de Deus, ela é nosso pedido e esforço. E, evocando o longo percurso que muitos fizeram para chegarem a Assis, o Papa proclamou “Felizes os pacificadores” (Mt 5,9), reconhecendo que
“Sair, pôr-se a caminho, encontrar-se em conjunto, trabalhar pela paz: não são movimentos apenas físicos, mas sobretudo da alma; são respostas espirituais concretas para superar os fechamentos, abrindo-se a Deus e aos irmãos. É Deus que no-lo pede, exortando-nos a enfrentar a grande doença do nosso tempo: a indiferença.”
A indiferença é para o Pontífice “um vírus que paralisa, torna inertes e insensíveis; um morbo que afeta o próprio centro da religiosidade produzindo um novo e tristíssimo paganismo: o paganismo da indiferença”. E, contra a indiferença, é preciso reconhecer que “o mundo tem uma sede ardente de paz”, quando, em tantos países, se sofre “por guerras, tantas vezes esquecidas, mas sempre causa de sofrimento e pobreza”. E vieram à tona da reflexão os olhos dos refugiados, que espelham o sofrimento da guerra; a angústia de povos sedentos de paz; as famílias, cuja vida foi transtornada; as crianças, que na vida só conheceram violência; os idosos, forçados a deixar as suas terras. São tragédias que não podem cair “no esquecimento”. É preciso “dar voz em conjunto a quantos sofrem, a quantos se encontram sem voz e sem escuta”, pois “não há qualquer amanhã na guerra” e “a violência das armas destrói a alegria da vida”.
Quem não tem armas, como nós, acredita na força da oração viva. E, mesmo com as diferenças de tradição, vemos que “a diferença não é motivo de conflito”. E o Papa declarou:
“Hoje não rezamos uns contra os outros, como às vezes infelizmente sucedeu na História. Ao contrário, sem sincretismos nem relativismos, rezamos uns ao lado dos outros, uns pelos outros. São João Paulo II disse neste mesmo lugar: “Talvez nunca antes na história da humanidade, como agora, o laço intrínseco que existe entre uma atitude autenticamente religiosa e o grande bem da paz se tenha tornado evidente a todos” (Discurso, Praça inferior da Basílica de São Francisco, 27 de outubro de 1986).
Sabendo que “a oração e a vontade de colaborar comprometem numa paz verdadeira”, os presentes rejeitam: a “tranquilidade de quem se esquiva às dificuldades e vira a cara para o lado”; o “cinismo de quem lava as mãos ante os problemas alheios”; a “abordagem virtual de quem julga tudo e todos no teclado dum computador, sem abrir os olhos às necessidades dos irmãos nem sujar as mãos em prol de quem passa necessidade”. A estrada “é mergulhar nas situações e dar o primeiro lugar aos que sofrem; assumir os conflitos e saná-los a partir de dentro; percorrer com coerência caminhos de bem, recusando os atalhos do mal; empreender pacientemente, com a ajuda de Deus e a boa vontade, processos de paz”.
E definiu a paz como: um “fio de esperança que liga a terra ao céu”; o “perdão que, fruto da conversão e da oração, nasce de dentro e, em nome de Deus, torna possível a cura das feridas do passado; o “acolhimento, disponibilidade para o diálogo, superação dos fechamentos, que não são estratégias de segurança, mas pontes sobre o vazio”; a “colaboração, intercâmbio vivo e concreto com o outro; e a “educação”, como apelo a “aprender todos os dias a arte difícil da comunhão, a adquirir a cultura do encontro, purificando a consciência de qualquer tentação de violência e rigidez, contrárias ao nome de Deus e à dignidade do ser humano”.
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Em relação ao Apelo, subscrito pelos diversos líderes religiosos, é de considerar a rejeição do terrorismo e do fundamentalismo, que “se opõem ao verdadeiro espírito religioso”, e a luta pela promoção da paz, pois:
“A paz é o nome de Deus. Quem invoca o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra, não caminha pela sua estrada: a guerra em nome da religião torna-se uma guerra contra a própria religião.”
No ‘Apelo pela Paz 2016’, os signatários manifestam o seu firme propósito nestes termos:
“Colocamo-nos à escuta da voz dos pobres, das crianças, das gerações jovens, das mulheres e de tantos irmãos e irmãs que sofrem por causa da guerra; com eles, bradamos: Não à guerra!”.
Evocando “o grito de dor de tantos inocentes”, pedem à comunidade internacional que trave “a ganância de quem trafica armas” e combatam situações de “pobreza, injustiça e desigualdade”.
O texto deixa ainda votos para que se abra um “tempo novo” para que o mundo globalizado se torne uma “família de povos” e proclama:
“Nada é impossível, se nos dirigimos a Deus na oração. Todos podem ser artesãos de paz; a partir de Assis, renovamos com convicção o nosso compromisso de o sermos, com a ajuda de Deus, juntamente com todos os homens e mulheres de boa vontade.”.

2016.09.21 – Louro de Carvalho

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