quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Sobre um eventual tipo de Caos no Vaticano

O colunista do semanário O Diabo João José Brandão Ferreira publicou, na edição de 13 de setembro, um artigo de opinião a que deu o título “O caos no Vaticano?”, sobre o qual me apraz tecer algumas considerações.
Nem sempre concordo com as opiniões do oficial piloto-aviador (creio que tenente-coronel), mas devo reconhecer que, ao falar da vertente militar da Nação, muitas das vezes coloca as questões no termo certo mesmo que a contracorrente.
O colunista começa por definir caos como “a ausência ou desintegração de qualquer ordem”, acabando por, a seguir, trazer à liça a evolução do conceito que, segundo ele, “correntes tidas como progressistas, revolucionárias ou relativistas” terão feito evoluir o conceito para “a coexistência igualitária de opostos”. Depois, afirma que “este igualitarismo tenderá para o absoluto”. E é com base neste duplo pressuposto que faz a sua análise do que pensa estar a passar-se no Vaticano, mormente escalpelizando a renúncia de Bento XVI e as causas apresentadas para tal decisão.
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Porém, antes de atentarmos no objeto em análise, convém enquadrar um pouco melhor o conceito de caos (em grego: χάος – caos, imensidade do espaço, tempo ilimitado). Caos significa, pois,  desordem, confusão (de todos os elementos antes de se ter criado o mundo – vd Gn 1,2) e tudo o que está em desequilíbrio. É um conceito evolutivo (pela negativa) que acusa a degradação da imensidade para a desordem ou confusão. Está relacionado com o verbo χαίνω, que significa abrir-se, entreabrir-se, abrir a boca, ficar de boca aberta. Também o significado do verbo grego acusa degradação de conceito: abrir a boca ou ficar de boca aberta pelo pior motivo, a desordem, e analogicamente separar ou ver a separação.
Para a mitologia grega, Caos é considerado o deus primordial do universo, em conformidade com a narrativa do poeta grego Hesíodo, na sua Teogonia. Inicialmente, Caos seria interpretado como o “vazio” ou o “ar” que preenchia o espaço entre a Terra e o Éter (céu superior).
A relação de Caos com a desordem e o desequilíbrio só foi equacionada pelo poeta romano Ovídio, em Metamorfoses.
Caos passou a ser visto como um oposto de Eros, seu filho. Ou seja, enquanto Eros representava a união das forças e elementos, exercendo uma função demiúrgica, Caos simbolizava a quebra, cisão e separação – oposto ao Cosmos.
A versão da história mitológica de Hesídio e de Ovídio refere que, antes da criação de Eros, o universo vivia em constante desordem, vazio e informidade. Todos as componentes necessárias para a criação estavam dispersas e desorganizadas. A partir de então, Caos passou a ser reconhecido como o deus da desordem.
Com base nos conceitos de desordem e de oposição correlacionados pela mitologia greco-romana, construiu-se a teoria do Caos, que assenta no princípio segundo o qual uma pequena alteração ou mudança no início dum evento se transforma, no decorrer deste processo, em alterações com consequências desproporcionais e imprevisíveis.
O precursor dos estudos científicos referentes a esta teoria, que outros aprofundaram, foi o meteorologista americano Edward Lorenz, responsável por descobrir que pequenos fatores, a princípio considerados banais, tendem a modificar drasticamente as consequências futuras. As observações feitas por Lorenz deram origem ao chamado Efeito Borboleta, devido à sua explicação simplificada sobre o que seria a Teoria do Caos: o bater de asas de uma borboleta num determinado ponto do orbe terrestre poderia desencadear uma sequência de eventos meteorológicos imprevisíveis a longa distância, como um tornado, por exemplo. O “bater de asas da borboleta” seria um fator inicialmente insignificante, enquanto o “tornado” corresponderia à sua consequência caótica.
  – (vd Martha Solange Perrusi, “A apropriação do conceito grego de Caos no pensamento de Castoríadis”, in SymposiuM de FilosofiaVol. 1 – n.º 1, julho/dezembro-98: 34-41)
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O articulista de O Diabo não aponta ao Vaticano a situação de Caos como desordem, mas no sentido assumido pelas ditas correntes progressistas. E centra-se no facto da renúncia de Bento XVI (anunciada a 11 de fevereiro de 2013 e tornada efetiva a 28), cujas motivações, em seu entender, “não são claras e deixam as maiores dúvidas”. Não tem dúvidas sobre a licitude do ato de renúncia do Pontífice, até porque o código de direito canónico é bem explícito sobre isso:
“Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém” (vd cân 232, § 2).
Mas não o convence a alegação das razões de idade e de saúde, sobretudo por comparação com o seu predecessor, que a voz do povo e as entidades eclesiásticas competentes elevaram às honras dos altares: a multidão reunida na Praça de São Pedro clamava: “Santo subito!”. E Bento XVI o beatificou e Francisco o canonizou.
O colunista em referência entende que “morrer no seu posto é o destino natural dos Reis e por maioria de razão, o dos Papas”. Mas os reis, por vezes, abdicam e não deixam a família real nem perdem as insígnias honoríficas – apenas as conexas com o exercício!
Não obstante, recordo, o espetáculo dos últimos dias do Papa polaco oferecido pelas cadeias de televisão, que foi deprimente sem necessidade, embora marcado pela eminente transparência não usual no Vaticano.
Do meu ponto de vista, Bento XVI, homem de profundidade teológica e notável estatuto académico, é uma figura menos pragmática e menos dada ao espetáculo (menos teatral) que João Paulo II. Contudo, não se podem ignorar os rasgos práticos de abertura e prestação multímoda do seu exercício pontifical fustigado por sérios problemas. E nem os pormenores da sua declaratio de renúncia lida aos cardeais, nem as graves circunstâncias por que o Vaticano passou nos últimos meses do seu pontificado, nem as declarações posteriores permitem pôr em causa a liberdade da sua decisão e a clareza da sua comunicação, cuja inobservância (por coação, obstrução ou confusão) tornaria ilegítima a renúncia. E os alegados rumores não passam de rumores.
Eis o teor da declaratio, datada de 10 de fevereiro e comunicada a 11:
“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma.”
Não vale apontar a suposta boa aparência atual do Papa emérito, “quando aparece nas pantalhas”, o facto de publicar um novo livro ou o de se reunir com antigos alunos. As razões de saúde a ter em conta são as verificáveis ao tempo e não as atuais. Nem me parece que o pontífice emérito mostre hoje tão boas condições de saúde como alguns podem supor. Tem, além de mui acentuada deficiência de visão, uma enorme dificuldade de locomoção, que faz lembrar o andarilho fabricado adrede para vencer percursos de cortejo litúrgico e paralitúrgico.
É certo que Bento XVI falou ultimamente de uma razão que o afetou e que julgo questionável.
Se acredito que a magnitude dos problemas – nomeadamente a venda de informação ou o abuso sexual de menores por clérigos com o suposto encobrimento de bispos e superiores maiores – o tenham afetado em termos da sanidade física e psíquica, já não vejo razoável a aproximação da JMJ, no Brasil, a que se sentia impedido de presidir por não resistir à mudança de fuso horário. Embora apreciável, a presença papal não é essencial e Bento poderia muito bem fazer-se representar por enviado especial e comunicar por videoconferência ou mensagem televisiva em direto. Aliás, João Paulo II ficou impedido de presidir diretamente ao Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981 (por via do atentado sofrido a 13 de maio na Praça de São Pedro) e não iria presidir à JMJ em 2005, em Colónia, se ainda fosse o Papa.   
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Porém, Brandão Ferreira opina que, sendo legal e consumada a renúncia, seria natural que o “Papa resignatário passasse novamente a Cardeal Ratzinger, deixasse de vestir de branco e de ser tratado pelo nome papal e apelidado de Sua Santidade” ou de dar “bênçãos apostólicas a quem lhe escreve”. E não concorda com a criação da “figura de ‘Papa Emérito’ sobre a qual não existe qualquer tradição na Igreja, nem doutrina que o suporte”.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que tradição é que a Igreja tem de atender. Não é qualquer tradição eclesiástica que está em causa, mas a tradição da Divina Revelação que antecede, acompanha e se segue à Sagrada Escritura (sem a contradizer). De resto, tradição eclesiástica, como a que instituiu o cardinalato, vale o que vale e é respeitável se estabelece doutrina e/ou orientação moral. Não havia a tradição do bispo emérito, que o Concílio Vaticano II estabeleceu e já nos habituamos a tal instituição. E eles ajudam os bispos diocesanos e usam da palavra!
Não vejo que Bento tivesse de voltar ao cardinalato e com o nome de Ratzinger, já que não lhe cabe o aconselhamento do Papa nem o cumprimento estável ou esporádico de missões confiadas pelo Sumo Pontífice. A singeleza do hábito talar branco, sem faixa nem qualquer outra insígnia, contrasta perfeitamente com as vestes prelatícias papais de que o emérito se fazia adereçar.
Quanto às bênçãos apostólicas, Bento XVI não perdeu o caráter episcopal que recebeu pelo sacramento da Ordem, superior em grau ao de presbítero (padre). Ele deixou o encargo de Bispo de Roma e o exercício do ministério petrino sobre toda a Igreja; não deixou de ser bispo.    
Não há dois papas, muito menos em exercício (e é o exercício que legitima a função), mesmo que Bento continuasse a aparecer em público com regularidade e usasse publicamente da palavra, que não é o caso. Não há, pois, qualquer problema com “o princípio fundamental da hierarquia e do magistério da Igreja”.
Nem se pode falar de dois papas no sentido real. Um, e só um, atua como Papa: é Francisco. O próprio Bento o referiu a quem o tentava importunar. Porém, nada impede que Francisco convide Bento, o visite, se relacione bem com ele e até o ouça; e Bento pode, no segredo e discrição, dar opinião a Francisco e até usar da palavra em círculos restritos, mas não como Bispo de Roma nem como Pastor Universal. Chamar Papa orante a Bento não é legítimo. O Papado, embora o Papa necessária e gostosamente reze, carateriza-se pelo exercício e não propriamente pela oração. Não há cismas nem dramas vaticanos. O que há é a luta contra reformas e inovações, não da parte de Bento, mas de outros!
E Bento, na sua declaratio, não se propôs como Papa orante, mas como desejando contribuir para o serviço da Igreja pela oração (Papa, quando muito, num sentido místico e de imolação):
“Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.
Escrever um livro, dar entrevistas… Qual é o mal? Querem silenciá-lo?
Depois, o Arcebispo alemão Georg Gänswein, que é o Secretário pessoal do Papa Emérito, acumula com o cargo oficial de Perfeito da Casa Pontifícia, para cujo cargo foi designado em 7 de dezembro de 2012. E porque não, se Francisco o confirmou e mantém no cargo? Mas não cabe a Gänswein, secretário particular e prefeito do Palácio, clarificar a definição do estatuto do Papa ou do Papa Emérito. Não é o porta-voz do Papa. 
E é verdade que Bento XVI não abandonou o Papado como o Papa Celestino V, no século XIII, mas também não o é que tenha pensado “continuar o seu ofício de Pedro numa maneira mais apropriada dada a sua fragilidade”, como refere, citando, Brandão Ferreira. Bento foi lúcido, despediu-se, falou aos colaboradores e às multidões. Não fugiu… Ao invés, preparou cautelosamente o anúncio e a efetivação da renúncia!
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Recordo o essencial da missão papal: confirmar na fé os irmãos (cf Lc 22,32); apascentar os cordeiros do Senhor, apascentar as ovelhas do Senhor (cf Jo 21,15.16.17); ser a pedra sobe a qual Jesus edifica a Sua Igreja (cf Mt 16,18); falar em nome dos demais apóstolos (cf At 2,14…; 3,12…; 10,34…; 15,7…); e fazer o discernimento em nome da Igreja (cf At 10,9…; 11,1…).
Tudo isto passou a ser atribuição de Francisco e já não é de Bento XVI, que muito contribuiu para a reperspetivação do Sumo Pontificado, incluindo a presença física nos sínodos.

2016.09.14 – Louro de Carvalho

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