O
colunista do semanário O Diabo João
José Brandão Ferreira publicou, na edição de 13 de setembro, um artigo de
opinião a que deu o título “O caos no Vaticano?”, sobre o qual me apraz tecer
algumas considerações.
Nem
sempre concordo com as opiniões do oficial piloto-aviador (creio
que tenente-coronel),
mas devo reconhecer que, ao falar da vertente militar da Nação, muitas das
vezes coloca as questões no termo certo mesmo que a contracorrente.
O
colunista começa por definir caos
como “a ausência ou desintegração de qualquer ordem”, acabando por, a seguir,
trazer à liça a evolução do conceito que, segundo ele, “correntes tidas como progressistas, revolucionárias ou
relativistas” terão feito evoluir o conceito para “a coexistência igualitária
de opostos”. Depois, afirma que “este igualitarismo tenderá para o absoluto”. E
é com base neste
duplo pressuposto que faz a sua análise do que pensa estar a passar-se no
Vaticano, mormente escalpelizando a renúncia de Bento XVI e as causas
apresentadas para tal decisão.
***
Porém, antes
de atentarmos no objeto em análise, convém enquadrar um pouco melhor o conceito
de caos (em grego:
χάος – caos, imensidade do espaço, tempo ilimitado). Caos
significa, pois, desordem,
confusão (de todos os elementos antes de se ter criado o mundo – vd Gn 1,2) e tudo o que está em desequilíbrio. É um conceito evolutivo (pela
negativa) que acusa a degradação da
imensidade para a desordem ou confusão. Está relacionado com o verbo χαίνω, que
significa abrir-se, entreabrir-se, abrir a boca, ficar de boca aberta. Também o
significado do verbo grego acusa degradação de conceito: abrir a boca ou ficar
de boca aberta pelo pior motivo, a desordem, e analogicamente separar ou ver a
separação.
Para a
mitologia grega, Caos é considerado o
deus
primordial do universo, em conformidade com a narrativa do poeta
grego Hesíodo, na sua Teogonia. Inicialmente,
Caos seria interpretado como o
“vazio” ou o “ar” que preenchia o espaço entre a Terra e o Éter (céu superior).
A relação de
Caos com a desordem e o desequilíbrio
só foi equacionada pelo poeta romano Ovídio, em Metamorfoses.
Caos passou a
ser visto como um oposto de Eros, seu
filho. Ou seja, enquanto Eros
representava a união das forças e elementos, exercendo uma função demiúrgica, Caos simbolizava a quebra, cisão e
separação – oposto ao Cosmos.
A versão da
história mitológica de Hesídio e de Ovídio refere que, antes da criação de Eros, o universo vivia em constante
desordem, vazio e informidade. Todos as componentes necessárias para a criação
estavam dispersas e desorganizadas. A partir de então, Caos passou a ser reconhecido como o deus da desordem.
Com base nos conceitos de desordem e de oposição correlacionados
pela mitologia greco-romana, construiu-se a teoria do Caos, que assenta no
princípio segundo o qual uma pequena alteração ou mudança no início dum evento se
transforma, no decorrer deste processo, em alterações com consequências
desproporcionais e imprevisíveis.
O precursor
dos estudos científicos referentes a esta teoria, que outros aprofundaram, foi
o meteorologista americano Edward Lorenz, responsável por descobrir que
pequenos fatores, a princípio considerados banais, tendem a modificar
drasticamente as consequências futuras. As observações feitas por Lorenz deram
origem ao chamado Efeito Borboleta, devido à sua
explicação simplificada sobre o que seria a Teoria do Caos: o bater de asas de
uma borboleta num determinado ponto do orbe terrestre poderia desencadear uma
sequência de eventos meteorológicos imprevisíveis a longa distância, como um
tornado, por exemplo. O “bater de asas da borboleta” seria um fator
inicialmente insignificante, enquanto o “tornado” corresponderia à sua
consequência caótica.
– (vd Martha Solange Perrusi, “A apropriação
do conceito grego de Caos no pensamento de Castoríadis”, in SymposiuM de
FilosofiaVol. 1 – n.º 1, julho/dezembro-98: 34-41)
***
O
articulista de O Diabo não aponta ao
Vaticano a situação de Caos como
desordem, mas no sentido assumido pelas ditas correntes progressistas. E
centra-se no facto da renúncia de Bento XVI (anunciada a 11 de fevereiro de 2013
e tornada efetiva a 28), cujas
motivações, em seu entender, “não são claras e deixam as maiores dúvidas”. Não
tem dúvidas sobre a licitude do ato de renúncia do Pontífice, até porque o
código de direito canónico é bem explícito sobre isso:
“Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao
cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente e
devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém” (vd cân
232, §
2).
Mas não o
convence a alegação das razões de idade e de saúde, sobretudo por comparação
com o seu predecessor, que a voz do povo e as entidades eclesiásticas
competentes elevaram às honras dos altares: a multidão reunida na Praça de São
Pedro clamava: “Santo subito!”. E
Bento XVI o beatificou e Francisco o canonizou.
O colunista
em referência entende que “morrer no seu posto é o destino natural dos Reis e
por maioria de razão, o dos Papas”. Mas os reis, por vezes, abdicam e não
deixam a família real nem perdem as insígnias honoríficas – apenas as conexas
com o exercício!
Não
obstante, recordo, o espetáculo dos últimos dias do Papa polaco oferecido pelas
cadeias de televisão, que foi deprimente sem necessidade, embora marcado pela
eminente transparência não usual no Vaticano.
Do meu ponto
de vista, Bento XVI, homem de profundidade teológica e notável estatuto
académico, é uma figura menos pragmática e menos dada ao espetáculo (menos
teatral) que João Paulo II. Contudo, não se
podem ignorar os rasgos práticos de abertura e prestação multímoda do seu
exercício pontifical fustigado por sérios problemas. E nem os pormenores da sua
declaratio de renúncia lida aos
cardeais, nem as graves circunstâncias por que o Vaticano passou nos últimos
meses do seu pontificado, nem as declarações posteriores permitem pôr em causa
a liberdade da sua decisão e a clareza da sua comunicação, cuja inobservância (por coação, obstrução
ou confusão) tornaria
ilegítima a renúncia. E os alegados rumores não passam de rumores.
Eis o teor
da declaratio, datada de 10 de
fevereiro e comunicada a 11:
“Depois de ter
examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza
de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para
exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este
ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras
e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no
mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande
relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o
Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor
este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de
reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me
foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena
liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma.”
Não vale
apontar a suposta boa aparência atual do Papa emérito, “quando aparece nas
pantalhas”, o facto de publicar um novo livro ou o de se reunir com antigos
alunos. As razões de saúde a ter em conta são as verificáveis ao tempo e não as
atuais. Nem me parece que o pontífice emérito mostre hoje tão boas condições de
saúde como alguns podem supor. Tem, além de mui acentuada deficiência de visão,
uma enorme dificuldade de locomoção, que faz lembrar o andarilho fabricado
adrede para vencer percursos de cortejo litúrgico e paralitúrgico.
É certo que
Bento XVI falou ultimamente de uma razão que o afetou e que julgo questionável.
Se acredito
que a magnitude dos problemas – nomeadamente a venda de informação ou o abuso
sexual de menores por clérigos com o suposto encobrimento de bispos e
superiores maiores – o tenham afetado em termos da sanidade física e psíquica,
já não vejo razoável a aproximação da JMJ, no Brasil, a que se sentia impedido de
presidir por não resistir à mudança de fuso horário. Embora apreciável, a
presença papal não é essencial e Bento poderia muito bem fazer-se representar
por enviado especial e comunicar por videoconferência ou mensagem televisiva em
direto. Aliás, João Paulo II ficou impedido de presidir diretamente ao
Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981 (por via do atentado sofrido a 13 de
maio na Praça de São Pedro) e não iria
presidir à JMJ em 2005, em Colónia, se ainda fosse o Papa.
***
Porém,
Brandão Ferreira opina que, sendo legal e consumada a renúncia, seria natural
que o “Papa resignatário passasse novamente a Cardeal Ratzinger, deixasse de
vestir de branco e de ser tratado pelo nome papal e apelidado de Sua Santidade” ou de dar “bênçãos
apostólicas a quem lhe escreve”. E não concorda com a criação da “figura de
‘Papa Emérito’ sobre a qual não existe qualquer tradição na Igreja, nem
doutrina que o suporte”.
Em primeiro
lugar, é preciso dizer que tradição é que a Igreja tem de atender. Não é
qualquer tradição eclesiástica que está em causa, mas a tradição da Divina
Revelação que antecede, acompanha e se segue à Sagrada Escritura (sem a
contradizer). De resto,
tradição eclesiástica, como a que instituiu o cardinalato, vale o que vale e é
respeitável se estabelece doutrina e/ou orientação moral. Não havia a tradição
do bispo emérito, que o Concílio Vaticano II estabeleceu e já nos habituamos a
tal instituição. E eles ajudam os bispos diocesanos e usam da palavra!
Não vejo que
Bento tivesse de voltar ao cardinalato e com o nome de Ratzinger, já que não
lhe cabe o aconselhamento do Papa nem o cumprimento estável ou esporádico de
missões confiadas pelo Sumo Pontífice. A singeleza do hábito talar branco, sem
faixa nem qualquer outra insígnia, contrasta perfeitamente com as vestes
prelatícias papais de que o emérito se fazia adereçar.
Quanto às
bênçãos apostólicas, Bento XVI não perdeu o caráter episcopal que recebeu pelo
sacramento da Ordem, superior em grau ao de presbítero (padre). Ele deixou o encargo de Bispo de Roma e o exercício
do ministério petrino sobre toda a Igreja; não deixou de ser bispo.
Não há dois
papas, muito menos em exercício (e é o exercício que legitima a
função), mesmo que Bento continuasse a
aparecer em público com regularidade e usasse publicamente da palavra, que não
é o caso. Não há, pois, qualquer problema com “o princípio fundamental da
hierarquia e do magistério da Igreja”.
Nem se pode
falar de dois papas no sentido real. Um, e só um, atua como Papa: é Francisco.
O próprio Bento o referiu a quem o tentava importunar. Porém, nada impede que
Francisco convide Bento, o visite, se relacione bem com ele e até o ouça; e
Bento pode, no segredo e discrição, dar opinião a Francisco e até usar da
palavra em círculos restritos, mas não como Bispo de Roma nem como Pastor
Universal. Chamar Papa orante a Bento não é legítimo. O Papado, embora o Papa necessária
e gostosamente reze, carateriza-se pelo exercício e não propriamente pela
oração. Não há cismas nem dramas vaticanos. O que há é a luta contra reformas e
inovações, não da parte de Bento, mas de outros!
E Bento, na
sua declaratio, não se propôs como
Papa orante, mas como desejando contribuir para o serviço da Igreja pela oração
(Papa, quando
muito, num sentido místico e de imolação):
“Pelo que me diz
respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida
consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus”.
Escrever um
livro, dar entrevistas… Qual é o mal? Querem silenciá-lo?
Depois, o Arcebispo
alemão Georg Gänswein, que é o Secretário pessoal do Papa Emérito, acumula
com o cargo oficial de Perfeito da Casa Pontifícia, para cujo cargo foi
designado em 7 de dezembro de 2012. E porque não, se Francisco o confirmou e mantém no cargo? Mas não cabe a Gänswein, secretário particular e prefeito do Palácio, clarificar a definição do estatuto do Papa ou do Papa Emérito. Não é o porta-voz do Papa.
E é verdade
que Bento XVI não abandonou o Papado como o Papa Celestino V, no século XIII,
mas também não o é que tenha pensado “continuar o seu ofício de Pedro numa
maneira mais apropriada dada a sua fragilidade”, como refere, citando, Brandão
Ferreira. Bento foi lúcido, despediu-se, falou aos colaboradores e às multidões.
Não fugiu… Ao invés, preparou cautelosamente o anúncio e a efetivação da
renúncia!
***
Recordo o
essencial da missão papal: confirmar na fé os irmãos (cf Lc 22,32); apascentar os cordeiros do Senhor, apascentar as ovelhas
do Senhor (cf Jo 21,15.16.17); ser a
pedra sobe a qual Jesus edifica a Sua Igreja (cf Mt 16,18); falar em nome dos demais apóstolos (cf At 2,14…;
3,12…; 10,34…; 15,7…); e fazer o
discernimento em nome da Igreja (cf At 10,9…; 11,1…).
Tudo isto
passou a ser atribuição de Francisco e já não é de Bento XVI, que muito
contribuiu para a reperspetivação do Sumo Pontificado, incluindo a presença
física nos sínodos.
2016.09.14 – Louro de Carvalho
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