sexta-feira, 23 de setembro de 2016

“Macaco Infinito”

O Jornal de Notícias, de 21 de setembro, traz uma recensão crítica, por Sérgio Almeida, do novo livro Macaco Infinito de Manuel Jorge Marmelo, um livro que, na senda dos “mais recentes livros do autor de Somos todos um bocado ciganos, constitui “uma interrogação sobre o exercício da escrita”, como o próprio autor admite, concretizando:
“O que fazem os que escrevem livros é semelhante ao macaco infinito: sentar-se em frente ao computador e tentar, partindo de um patamar evolutivo um pouco superior ao do macaco, produzir obras literárias capazes de interessarem a outros”.
O argumento do livro, um romance, o décimo de uma carreira iniciada há 20 anos, inspira-se no teorema do macaco infinito segundo o qual um macaco, digitando aleatoriamente num teclado por um intervalo de tempo infinito, criará certamente um texto qualquer escolhido, como por exemplo a obra completa de William Sakespeare. Pode ainda pensar-se que, de entre infinitos macacos infinitos, algum deles quase certamente criará um texto qualquer escolhido como primeiro texto a ser digitado. Neste contexto, a expressão quase certamente equivale a uma expressão matemática com um significado preciso, ao passo que a designação “macaco” não passa de uma imagem. Não se trata dum verdadeiro símio, mas duma metáfora para um dispositivo abstrato que produza uma sequência aleatória de letras ad infinitum.
O teorema ilustra os riscos do raciocínio sobre o infinito ao imaginar um número muito grande, mas finito, e vice-versa. Assim, a idade do universo é diminuída relativamente pelo tempo que levaria um macaco a obter um texto igual ao Hamlet, o que em sentido físico nunca aconteceria.
Variantes do teorema incluem múltiplos dispositivos de escrita, podendo o texto variar entre uma simples e pequena frase e uma biblioteca inteira. A história deste tipo de afirmações remonta à Metafísica de Aristóteles e ao De natura deorum de Cícero, passando por Blaise Pascal e Jonathan Swift, até às afirmações recentes com os icónicos escritores infinitos. Émile Borel e Arthur Eddington, no início do século XX, usaram o teorema para ilustrar as escalas temporais implícitas nos fundamentos da mecânica estatística. Vários apologetas cristãos, por um lado, e Richard DawKins, por outro, argumentaram sobre a adequação de macacos como metáfora para a evolução. (cf https://pt.wikipedia.org/wiki/Teorema_do_macaco_infinito).
A natureza humana sempre se deixou intrigar pela trilogia sorte, chance e acaso; e o homem, em determinado momento, começou a usar a matemática para tentar explicar estes fenómenos, vindo a descobrir que a teoria da probabilidade permite que se calcule a chance de ocorrência de um resultado numa experimentação aleatória. O lema de Borel-Cantelli, desenvolvido pelos matemáticos probabilistas Borel e Cantelli, é um célebre lema da teoria de probabilidades, lema que garante que, se algo possui uma chance de acontecer e for tentado um número infinito de vezes, acontecerá com 100% de chance, embora tal chance seja ínfima. E o macaco tem uma chance remota de digitar toda obra de Shakespeare corretamente, porém, se tentar infinitas vezes, eventualmente terá mesmo êxito.
É claro que, com o desenvolvimento da tecnologia, alguém iria tentar colocar a teoria em prática. Coube a Jesse Anderson, programador americano, criar um batalhão de macacos virtuais. São efetivamente milhões de programas de computador a digitar randomicamente carateres. De facto, os macacos digitais conseguiram produzir 38 obras de Shakespeare de forma aleatória. O mais curioso é que Anderson afirmou no seu blogue que se inspirou num episódio do desenho ‘Os Simpsons’ para desenvolver o projeto. No episódio “Última saída para Springfield” de 1993, Burns leva Homer a sua casa e revela a existência de mil macacos a digitar em mil máquinas de escrever. E diz ele: “ Em breve eles terão escrito o melhor romance de toda a história. Vamos ver... (pega um texto e começa a ler). ‘Aquele foi o melhor dos tempos, foi o xyzior (n.a.: pior) dos tempos!Seu macaco estúpido!”, numa alusão à frase inicial do célebre livro de Dickens, “Um conto de duas cidades”, publicado em 1859.
O programa desenvolvido por Anderson compara os resultados digitados pelos macacos com os textos de Shakespeare. Se algum trecho ou palavra for identificado como idêntico, este pedaço é marcado e o processo repete-se até que todas as palavras tenham sido criadas de forma aleatória. Especialistas reconhecem que a experimentação não é perfeita e o programador deparou-se com algumas críticas ao longo do caminho. Ciente das limitações do projeto, alegou que fez o que podia de forma criativa com recursos limitados: “É um pequeno passo para um macaco, mas um passo gigante para os primatas virtuais ao redor do mundo”.
Além disso, o teorema do macaco infinito foi abordado diversas vezes pela cultura pop, não só em desenhos animados como “Os Simpsons” mas também em filmes, como O Guia do Mochileiro das Galáxias, anúncios publicitários, séries de TV, cartoons e vários outros meios.
(cf http://obviousmag.org/drinking_wine_and_killing_time/2015/o-teorema-do-macaco-infinito.html)
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Sobre os títulos dos livros em causa, parece-me oportuno recordar que Dom António Ferreira Gomes, então Bispo do Porto, a 10 de julho de 1977, saudou um grupo de alentejanos que participavam na celebração eucarística em que forma ordenados dois presbíteros – o atual pároco de Santa Maria da Feira, Escapães e Sanfins, Padre Eleutério Pais, e o atual Delegado do Pontifício Conselho para a Cultura e membro da Comissão Pontifícia de Arqueologia Sacra do Vaticano e responsável pelos Bens Culturais da Igreja Católica, o Bispo Dom Carlos Azevedo. O prelado portuense disse que em certa medida todos em Portugal somos alentejanos. Obviamente, eu próprio, que estava presente, concluí que isso é uma verdade de La Palisse, pois, qualquer cidadão esteja em que margem do Tejo em que estiver, é alentejano em relação aos que se situem do lado contrário.
Porém, o livro anterior de Jorge Marmelo fala de ciganos. E aí também concordo que somos todos um bocado ciganos, se não pela razão étnica, pelo menos pelo espírito de grupo e por um certo nomadismo de vida que o mundo hodierno nos permite. Quem não gosta de viajar, peregrinar e fazer turismo? Quem é que nunca se sentiu tentado a emigrar ou quem não se sentiu forçado a procurar trabalho algures ou a exercer a sua profissão em lugar não desejado?
Recordo-me de que, um dia pela manhã, um casal de ciganos, acompanhado de outro casal de não ciganos, procurou o pároco da freguesia para ter a gentileza de batizar a filha ciganita.
O pároco, certificado da idoneidade dos padrinhos, não ciganos, e da vontade dos pais, ciganos, ministrou o batismo. No fim, o padrinho perguntou quanto devia pagar, ao que o pároco replicou: menina cigana, pai e mãe ciganos, padrinho e madrinha ciganos, padre cigano – tudo fica entre ciganos. E a única coisa que aceitou foi tomar uma bica com pais e padrinhos.
Quanto a macaco, recuso que todos o sejamos – isto sem refutar a teoria da evolução das espécies darwiniana, mas aceitando religiosamente a intervenção direta de Deus na alteração da espécie e porfiando a diferença essencial – e não só de grau entre homem e macaco. Por isso, não aceitarei, a não ser metaforicamente a posição do macaco na sala ou no museu como ícone de meus antepassados!        
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Quanto ao livro, Marmelo, pegando na teoria, escreveu uma metáfora sobre a criação. Um homem, encerrado numa sala, é punido pelo amo a debitar incessantemente na máquina de escrever até, por milagre ou pelo simples esgotamento de possibilidades, produzir um livro.
Paulo Piconegro é o dono paralítico (e não menos ressabiado) duma casa de meninas; Wakaso é o negro chegado do lado de lá do Mediterrâneo, que o serve, um criado absolutamente disponível e servil, manso e eficaz como um eletrodoméstico. Maria do Socorro, a rapariga mais bonita do Bar Mitzvá, é a sua escrava sexual. Piconegro planeou uma vingança cruel, concentrando em Wakaso o difuso ódio e a misantropia que até aí cultivara como se fora flor morta. Porém, da condição de escravo de Piconegro agrilhoado à máquina de escrever horas e horas a fio e sem fim, Wakaso sairá vencedor.
Como interrogação sobre o exercício da escrita, o livro parte da experiência de Marmelo, que, tantos anos depois, continua a questionar-se regularmente sobre o que anda a fazer”.
Trata-se de uma atividade não fácil e não “de reconhecimento imediato”, que obriga, muitas vezes, a que um livro tenha de ser escrito em horário pós-laboral, numa “luta em permanência contra o sono e o cansaço”. Raramente um escritor sobrevive apenas com base nos ganhos que aufere a parir da escrita literária. O próprio estatuto do autor sofreu mutações consideráveis com a mediatização crescente, pois, como observa, “hoje, para um autor conseguir ser lido é preciso que seja também um bom comunicador. E nem todos os escritores o conseguem”.
No livro em referência, o espaço onde decorre a ação, emblematicamente denominado Bar Mitzvá, é palco de deambulação de personagens marcantes. Assim, Paulo Piconegro, um homem cruel preso na sua cadeira de rodas lembra sem grande esforço o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, como reconhece o romancista. Trata-se duma semelhança que não se deve apenas ao acaso, pois o prostíbulo pretende ser uma alegoria da Europa atual, cujo “fechamento contraria o cosmopolitismo de que nos gostávamos de orgulhar”.
Cético do ambiente “cada vez mais autoritário e austeritário”, o autor critica também a “paranoia securitária, anterior à crise dos refugiados”.
Manuel Jorge Marmelo, a perfazer 20 anos de atividade literária – em que venceu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco e o prémio do Correntes d’Escritas –,  admite que já pouco lhe resta do jovem escritor que se estreou de “modo desarmado e inocente” com a novela O homem que julgou morrer de amor, concluindo:
“Tinha mais certezas na altura do que hoje. A única coisa que queria na altura era escrever, publicar e chegar a pessoas. Hoje, de algum modo, isso não chega”.  
O novo livro, segundo o próprio autor, é “até um pouco cruel” por mostrar que o ser humano, apesar da evolução constante, parece não aproveitar o seu potencial. Afirmou ele à Lusa:
“Parto da ideia de que o homem, sendo uma espécie de mamífero infinito, até hoje ainda não parámos de evoluir, a verdade é que todos os dias assistimos a factos, a notícias que nos põem a pensar que o homem acaba, em determinados momentos, por regredir e não tirar proveito de todas as capacidades que tem e, em vez de se empenhar em melhorar o mundo em que vivemos, acaba por construir muros, cercas e levar crianças a morrer no mar quando tentam atravessar o Mediterrâneo à procura de uma vida melhor”.
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Porém, Jorge Marmelo reconhece que o enredo não tem nada a “ver com isto”, pois refere:
“Há uma personagem que atravessou o Mediterrâneo para chegar à Europa, mas depois, toda a ação do livro, decorre dentro de um prostíbulo, chamado Bar Mitzvá, e é esse prostíbulo fechado por redes que acaba por ser um pouco a metáfora do tempo em que vivemos”.
Com efeito, dentro do prostíbulo, Wakaso, “além de vigiar as prostitutas, limpar e ser o criado do dono” dispõe dum quarto com máquina de escrever “onde tenta comprovar o Teorema do Macaco Infinito porque assim lhe foi imposto pelo patrão”.
Marmelo, antigo jornalista e agora assessor de imprensa da Câmara Municipal de Matosinhos, após dois anos de desemprego, reconhece que a escrita é algo que neste momento lhe “ocupa muito pouco tempo”, faltando por vezes mesmo a “disponibilidade e a frescura para no fim de um dia de trabalho ainda estar em casa a escrever”. Confessa:
“Não é a situação ideal, mas é a situação que tenho e como escrever é algo que sinto necessidade de fazer, que de algum modo me completa, me faz sentir uma pessoa mais plena, vou tentando fazê-lo com as condições que tenho”.
Questionado sobre se estava satisfeito com o mais recente livro, o escritor, que assinala em 2016 os 20 anos de carreira literária, afirmou nunca o estar totalmente:
“No dia em que ficar totalmente satisfeito com o livro provavelmente não volto a escrever porque já consegui o livro perfeito”.
Embora seja “só mais um livro”, o autor atribui-lhe “uma importância simbólica”, por assinalar os 20 anos da sua atividade literária e por tentar “desenvolver e aprofundar algumas questões que têm sido recorrentes nos romances anteriores”.
Assegura ter querido
“Escrever um livro com um enredo confuso e desvairado como o tempo que vivemos e, por isso, também um pouco cru, arisco e doloroso como a imagem de uma criança refugiada morta na praia”.
Por outro lado, explora
“A ideia segundo a qual a imensa capacidade evolutiva do homem, as enormes capacidades que temos, nem sempre é orientada de um modo que pareça racional e humano”.
Segue a perspetiva de que “somos um macaco infinito que frequentemente se perde no caminho e que, acossado, é tomado pela fúria e pela perversidade” e que, “em vez de criar laços e pontes, ocupámo-nos na construção de muro e de cercas”.
Talvez seja conveniente ler o livro e, sobretudo, pensar no que ele significa no contexto português e europeu, mormente quando em Calais se está a levantar o muro da vergonha contra a entrada de refugiados no reino Unido.

2016.09.23 – Louro de Carvalho

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