Por acórdão divulgado no passado dia
30 de agosto, o TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) condenou Estado português a pagar à revista Visão uma indemnização de 30 mil euros por
violação da liberdade de imprensa e ainda mais 8.919 euros de despesas.
Em causa está um processo interposto,
sem ter usado do direito de resposta, por Pedro Miguel Santana Lopes, que
chefiou o XVI Governo Constitucional de 17 de julho de 2004 a 12 de março de
2015.
Na verdade, Santana Lopes interpôs,
em 2007, um processo contra a Visão e
contra o jornalista Filipe Luís, então seu diretor executivo, por ofensas ao bom
nome do ex-primeiro-ministro.
Com o processo judicial, Santana Lopes tentava ser
ressarcido por danos morais causados por um artigo de opinião publicado em 2004
em que se sentiu visado o então primeiro-ministro.
Sob o título “O
despertar do Presidente”, o ilustre articulista verberava, alegadamente numa
linguagem viva, o absurdo da pretensão legal, aventada pelo Governo de, ao lado
de cada comentador político, colocar um segundo “opinador” para garantir o
exercício do contraditório. Era o contexto da relação polémica entre o ministro
Rui Gomes da Silva (este é que deu a cara) e Marcelo Rebelo de Sousa, muito cáustico, no seu programa dominical de
comentário na TVI, para com o Governo de Santana Lopes.
O tribunal de primeira instância (o da comarca
de Oeiras) condenou, em 2010, os réus (Visão e diretor executivo) ao pagamento duma indemnização de 30 mil euros – 15
mil por Filipe Luís e 15 mil por parte da Medipress – ao autor da ação,
representado pelo escritório de advogados do seu ex-ministro, Rui Gomes da Silva
(parte
interessada no teor do artigo). A
Medipress, que pertence ao universo Impresa e é detentora da Visão, recorreu da decisão, vendo
confirmada a sentença pelo tribunal da Relação de Lisboa e depois pelo Supremo
Tribunal de Justiça. E, em 2012, a Medipress recorreu para o Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem. E é este Tribunal – instituição do Conselho da Europa – que
acaba por dar razão à Visão, condenando o Estado português por violação da
liberdade de imprensa, princípio consagrado na CEDH (Convenção Europeia dos direitos do Homem, art.º 10.º).
O acórdão do TEDH considera que “os tribunais portugueses
não examinaram, como deveriam ter feito, a existência de uma base factual para
a crítica das ‘novas regras do jornalismo’ que faz ao jornalista”. Com efeito, “é
evidente que o jornalista não queria imputar o consumo de drogas ao
primeiro-ministro, nem lançar um rumor desta natureza, mas sim utilizar a
ironia para contestar uma proposta política”.
O Estado português tem agora o direito de pedir uma
revisão do caso a um colégio especial composto por 17 juízes daquele tribunal
no prazo de três meses.
***
O artigo de Filipe Luís, publicado a
7 de outubro de 2004 – que motivou a queixa de Santana Lopes e, agora, a
decisão do TEDH de condenar o Estado português, por violação da liberdade de
imprensa, e a pagar uma indemnização de 30 mil euros à Medipress, proprietária
da revista – é mais abrangente, analisa o quadro das opções de Jorge Sampaio e,
em especial, a sua opção por ter nomeado Santana Lopes como sucessor de Durão
Barroso na liderança da governação, refugiando-se habilmente no artifício da exclamação
e na interrogação retórica (aqui, sobretudo no atinente a Santana), que formalmente não se afasta da ironia, nada
afirmando e nada negando. Por isso, se diz popularmente: “Perguntar não ofende”.
Talvez tenha sido o jeito de usar a interrogação por tudo e por nada – típico de
muitos – a dar relevo à história que se conta do Diretor-Geral de Informação, Rui
Montez, nos tempos do PREC, que mandara comparecer um jornalista no seu
gabinete. E, quando o jornalista se apresentou e perguntou o que desejava o senhor
Diretor-Geral, este desfiou: “Chegou ao meu conhecimento a informação de que o
senhor jornalista costuma responder a uma pergunta com outra pergunta – que me
diz a isto, senhor jornalista?”. Ao que, de pronto, o jornalista, replicou: “E
o senhor Diretor-Geral acredita nisso?”.
Confesso que, ao saber da decisão do
TEDH, fiquei chocado com o “desrespeito europeu” pelos tribunais portugueses. Porém,
ao reler o artigo em causa e a matéria referente à liberdade de expressão
consignada no art.º 10.º da CEDH e no art.º 37.º da CRP, ponderei a minha
opinião.
O que diz o predito
artigo de opinião em relação a Santana Lopes e ao seu governo?
Anota que Santana aplaudiu (por gozo, segundo o articulista) o discurso presidencial do dia 5 de outubro de 2004, que referia não ser “mais
possível esconder a debilidade económica” e denunciava “as crises estruturais”
e a “cegueira política” de quem governa.
Quanto a Marcelo, diz que “encheu o copo de fel do
Governo, com o seu último comentário na TVI”. E, “descontando-lhe alguma
leviandade imaginativa e factos políticos cozinhados no seu laboratório de cientista maluco”, diz que o comentador tem
sido certeiro ao laborar “sobre os factos e sobre as asneiras”, “do Governo e
da oposição”. E talvez, por causa do problema Santana-Marcelo, o
primeiro-ministro terá mandado (um tanto ou quanto covardemente) “o seu mais fiel servidor, Rui Gomes da Silva,
ministro dos Assuntos Parlamentares, acusar Marcelo de mentiroso e deturpador,
ameaçando com queixas à Alta Autoridade”. E depois:
“É apenas porque não se pode voltar
aos tempos da censura que já se propõe que, na futura regulação da Comunicação
Social, se preveja o princípio do contraditório para... o comentário político!
Ou seja, a opinião deixa de ser subjetiva para ter de submeter-se às regras das
notícias! Uma lei à medida para Marcelo!”.
Porém, o que mais terá chocado Santana e amigos são os
segmentos abaixo transcritos, nomeadamente o primeiro:
“Será um delírio provocado por consumo de drogas duras, uma nova
originalidade nacional ou apenas um disparate sem nome? No meio de tudo
isto, quem é digno de pena é Rui Gomes da Silva. Esta foi uma grande maldade
que Santana lhe fez. Como se verá, domingo, quando uma serpente chamada Marcelo
se deliciar a destilar todo o seu veneno sobre o pobre?”
Não esqueço que Marcelo foi
demasiado duro e excessivo para o Governo, a ponto de dizer que num determinado
momento era o pior do pior de Guterres. Mas lido o artigo, pergunto-me porque
terá sido que apenas Santana (e só em 2007) se queixou
e não também Sampaio.
Quanto aos nosso tribunais, penso
que andaram com pouca cautela, lidando mal com o não discernimento entre
insulto e ironia zombeteira – o artigo tem subjacente as duas coisas – e sobretudo
sabendo que, não havendo provas, não há condenação e in dubio standum est pro reo.
Quanto ao TEDH, parece-me excessivo
dizer que o Estado português violou a liberdade de expressão. Se alguma
condenação o Estado merece, é pela alegada punição indevida do exercício em
concreto dessa liberdade, já que não se verificam hic et nunc os pressupostos que a limitem. De resto, a liberdade de
expressão, consagrada na nossa CRP e na CEDH, não é ilimitada (por mais que
se pense o contrário) nem se sobrepõe
a outros direitos fundamentais, nomeadamente o bom nome, a vida, as demais liberdades,
a segurança do Estado e a independência dos tribunais, além de outros valores. Veja-se
o teor do art.º 10.º da CEDH:
“1.
Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a
liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou
ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem
considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os
Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão
a um regime de autorização prévia.
“2.
O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades,
pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções,
previstas pela lei, que constituam providências
necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a
integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção
do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos
de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para
garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.”
Também o n.º 3 e
o n.º 4 do art.º 37.º da CRP estabelecem:
“3. As infrações cometidas no exercício
destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou
do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência
dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos
da lei.
“4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas,
é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de
retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.”
***
Assim vai a justiça portuguesa e
a europeia: morosa, cara, imprudente, injusta. Um caso (é
apenas mais um) que
vai a tribunal, é julgado, há condenação, absolvição; e aí começa a rota cavalgada
do dinheiro. Primeira instância, Relação, Supremo, TC, Tribunal Europeu. Depois
disto, ainda pode apelar-se para 17 juízes podem rever o processo… E que se
seguirá?
O Estado é condenado por erro dos
seus órgãos de poder mais supostamente prestigiados. Quem paga? Paga Zé, não é?
Quanto custará esta caranguejola ao contribuinte?
Trata-se de uma guerra entre o
cidadão com direitos e uma comunicação social que, para além dos direitos,
também tem deveres, que não observa. Mas
a letra da lei e a do artigo de opinião não acolhem, em última instância, a
condenação dos réus, mesmo que todos saibam que a sua intenção era apoucar e
insultar.
A liberdade de expressão não é
ilimitada nem pode servir para causar danos irreversíveis em pessoas ou
entidades que a posteriori podem ser
declarados inocentes. Ao confrontarmo-nos com a nossa “verdade”, podemos
exibi-la, mas não afirmá-la sem mais. Acorrentada a ela vai muitas vezes a
calúnia, a mentira, a intenção criminosa. A comunicação social tem o dever de
não utilizar o sensacionalismo na mira do lucro quando essa postura pode ferir de
morte a honra, o bom nome das pessoas. Chamada a provar o que comunica deve ser
obrigada a fazê-lo, não se ocultando cobardemente por detrás de uma falsa
deontologia ou da ironia ambivalente. Liberdade exige mesmo responsabilidade.
O desfecho do caso decidido pelo
TEDH poderá fazer correr ainda muita tinta e muito dinheiro. A luta dos “monstros
sagrados” da advocacia promete. Quem ficará satisfeito? Zé paga tudo!
2016.09.02 –
Louro de Carvalho
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