segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Fernando Lima e o livro “Na sombra da presidência”

O livro de Fernando Lima, ex-assessor de Cavaco Silva em Belém para a Comunicação Social, chegou às livrarias no passado dia 8 de setembro. Com o título Na sombra da Presidência – relato de 10 anos em Belém”, esta edição da Porto Editora faz a descrição do caso dum Chefe de Estado cada vez mais fechado no seu reduto”, num palácio onde existia “a paranoia com o segredo”, e que acabou por sair sem glória, sem carisma, inseguro e frágil. O autor declara categoricamente não se sentir isolado na apreciação do homem que somou vitória sobre vitória:
“Não fui o único em Belém que assistiu, com grande frustração, à desconstrução da figura de Cavaco Silva, sem que aparentemente nada fosse feito no círculo para travar a degradação da sua imagem”.
Alegadamente, trata-se de livro de memórias sobre o decénio belemita de Cavaco a definhar no tempo, mas é sobretudo o testemunho e a autojustificação do arredado da função de assessoria e da ribalta da cena. A ser verdade que, por consequência do “caso das escutas” ao Palácio alegadamente à ordem do Governo, o assessor foi despedido da função e mantido em Belém “no sótão” a redigir notas políticas e outras sem efeito algum, tendo até deixado de lhe ser solicitada opinião “sobre os assuntos da comunicação do Presidente”, o jornalista de quatro costados teria pedido e forçado a sua exoneração. Homem que se preze não aceitaria ficar de espectador de sótão com vista para o Tejo ou a servir de bibelô. Optar “pela total discrição, num ambiente onde ainda imperava o receio” é timbre de conselheiro mais fraco do que o “aconselhado”.
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Agora, que o ex-Presidente, sem popularidade, mas inatingível, recolheu ao convento do Sacramento para exercer “funções” de ex-Chefe do Estado, o ex-assessor reabilitará a imagem do conselheiro diminuído, destituído de pelouro, ressentido e sobretudo esquecido de que o exercício de funções de bastidores é para manter no recato do tempo? Passam muito poucos meses sobre o termo do mandato do Senhor de Boliqueime. É muito cedo para a escrita de “memórias” sobre aquele decénio, que ainda não está curtido pelo krónos.
Que temos nós a ver com aquele episódio “verdadeiramente chocante” para Lima e esposa protagonizado por Aníbal e Maria quando passaram por eles, no fim do almoço do Dia de Portugal, em 2010, ignorando-os numa altura em que “Sócrates estava por perto”?
É óbvio que, se os assessores das Casas do Presidente (Casa Civil e Casa Militar) eram da têmpera de Lima – o que não é de acreditar – Cavaco Silva tinha de se tornar num “político diferente, quase irreconhecível”. O certo é que Aníbal não tinha só conselheiros da estirpe de Lima nem era tão resistente como se fez crer quando era Chefe do Governo. Depois, por maior que fosse a pressão e o poderio dos governos de Sócrates, Belém teria de estar vacinado para oferecer ao país outro lado consistente do poder. Provavelmente por isso é que, depois de Sócrates deixar o Governo em 2011, a Presidência não ganhou uma “nova energia, livre que ficara de quem lhe movia uma guerra de usura que inegavelmente o fragilizara”, mas apenas o estado de distensão.
Não se percebe como é que a presença de Lima, isolada e silenciosa, se tornava tão incómoda. Será tal incómodo que gerou a “fragilidade flagrante” ou “os desacertos de Cavaco Silva, a insegurança patente em muitos atos públicos, a fraqueza política de que dava mostras, em claro contraste com o líder afirmativo e determinado que se impusera” durante 20 anos?
Depois, Lima repete aquilo que os portugueses estão fartos de saber: as declarações de Cavaco sobre pensões e a sua incapacidade de gerir as crises.
E, a julgar que fica mais feliz na fotografia, o ex-assessor lança o lugar-comum de tantos: “Nada me pesa na consciência”. Talvez para justificar ter dedicado 4 dos 19 capítulos do livro ao “caso das escutas”, o autor acusa Sócrates de ter construído “poderosa e invisível máquina”, “para denegrir quem se “atravessasse” no seu caminho, sublinhando que ao PS não interessava um “poder forte em Belém”.
O “caso das escutas” foi, desencadeado em 18 de agosto de 2009 com uma notícia do jornal Público, segundo a qual a Presidência suspeitava estar a ser vigiada. lembrando que na desconfiança da “possível vigilância a Belém” não era uma “voz isolada”, citando denúncias de deputados, advogados, juízes e magistrados de “processos incómodos para Sócrates”, Lima pormenoriza situações que lhe permitiram confirmar que se encontrava “sob a mira do poder socialista”, recuando a abril de 2007, quando a revista do Expresso publicou texto que lhe fazia “referências insultuosas”, embora sem mencionar o seu nome. Um mês após a predita notícia do Público, o DN revelou que a fonte do Público era Fernando Lima, publicando um e-mail dum jornalista do Público, que chegou ao DN, segundo Lima agora escreve, por “um intermediário político, ligado ao poder socrático que o transportou”.
Tudo começou no período pré-eleitoral de 2009. Nas legislativas de setembro, Ferreira Leite, no PSD, desafiava Sócrates, no poder desde 2005. Agosto prenunciava guerra política com dirigentes do PS, como Junqueiro e Vitalino Canas a suspeitarem de haver assessores da Casa Civil do Presidente a participar na elaboração do programa eleitoral do PSD. A notícia do Público exibiaPresidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo, baseada na declaração dum “membro da Casa Civil”, não identificado, que perguntava se estariam os assessores da Presidência a ser vigiados. E, na página 2, o texto interrogava: “Está o Palácio de Belém sob escuta ou sob vigilância?”. E a resposta era: “Fontes da Casa Civil recorrem a um episódio recente para alimentar a dúvida”.
As declarações da fonte anónima de Belém eram a reação aos comentários recentes daqueles dirigentes socialistas. Com esta citação, em cima das eleições, estava lançada a guerra entre Governo e Presidente com muitos episódios e desenvolvimentos a partir da notícia. A fonte anónima era Fernando Lima, que, num programa da SIC, Francisco Louçã, coordenador do Bloco de Esquerda, já tinha adiantado como tal. Fugas de informação não autorizadas ou declarações a jornais passíveis de ser interpretadas como sendo em seu nome, era das coisas que mais detestava Cavaco, tendo dificuldade em perdoar. No caso, o experiente assessor dava o flanco ao adversário – Sócrates e o PS – que, a seguir, lhe desferiu toda a artilharia disponível.
Lima só falou em público da polémica, passados 3 meses, em janeiro de 2010, num artigo publicado no Expresso intitulado “A minha verdade”, classificando a “intriga” como “teia bem urdida pelo fértil imaginário dos criadores de factos políticos”. Nesse texto o assessor justificou as declarações anónimas com a insistência dos jornalistas em querer saber se havia membros da Casa Civil a participar na elaboração do programa eleitoral do PSD. Então, formulou a questão, não exatamente como o Público o citara, mas assim: “Se não há registo de participação pública, como é que sabem o que faz cada um na sua vida privada? Andam a vigiar os assessores?”.
Caiu na armadilha, que funcionou. Belém ficou manietado numa campanha eleitoral em que Sócrates lutava para não perder a maioria.
Ora, pelos vistos, Lima não quis sair de Belém para não dar a entender que assumia culpa que não tinha. Todavia, nada ficou esclarecido. E o assessor, na ocasião, escreveu um texto em que porfiava que o Presidente não estava envolvido no caso, o que agora conta de outra forma.
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O autor do livro assegura que a diabolização da sua pessoa integrava a estratégia socrática para dominar o espaço informativo da reta final da campanha eleitoral. Por outro lado, denuncia a alegada ação da “central de intoxicação socrática”, em outras situações, contra o possível poder forte e impoluto em Belém. Aduzindo que Sócrates soubera “cercar o Presidente”, lembra como as notícias sobre as mais-valias no âmbito do BPN marcaram Cavaco e família. A exceção era o genro, Luís Montez, que não podia, segundo Lima, deixar de “ter a confiança do poder socialista”, já que no negócio PT/TVI previa-se ser-lhe atribuída uma rádio da Media Capital.
E Fernando Lima fala de mais casos, como: o Tratado de Lisboa e a encenação criada para proteger Sócrates de falhar um compromisso eleitoral”, depois de este haver prometido convocar a consulta popular sobre o tratado e tal não se ter concretizado; a “intervenção direta e decisiva do Presidente” para demover o Governo de construir o novo aeroporto na Ota, vista como um “sério revés para o primeiro-ministro”; e “as tentativas do Governo para controlar o setor bancário”, a “finança, o sector judiciário e as informações”.
A viagem à Madeira e as suspeições que causou o facto de um adjunto do gabinete do primeiro-ministro ter integrado a comitiva presidencial à última hora é outro dos episódios referidos no livro de Lima, que supõe que em 2008 o primeiro-ministro estava “descompensado pelos casos que envolveram o seu nome e afetavam a sua auréola de figura intocável”, vendo no Presidente da “uma verdadeira ameaça”. É também abordado o “cerco ao Presidente” no caso BPN e o “desgaste” que a situação de Dias Loureiro provocou em Cavaco, com o antigo assessor a revelar pormenores sobre como a TVI alegadamente colocava questões em coordenação com o Governo sobre o caso. Falando de “ofensiva antiCavaco” para atingir a honorabilidade do Presidente, o ex-assessor recorda o caso PT/TVI e os rumores que circulavam sobre a intenção do Governo de intervir na estação de televisão para alterar a linha editorial. Segundo Lima, foi uma declaração de Cavaco sobre o caso que desferiu o golpe final na intenção governamental, ao preparar-se a entrada da Ongoing no capital de Media Capital, operação que resultaria da conjugação de apoios financeiros entre a PT e o BES. E Lima relata outros casos que o fazem desconfiar de que ele próprio estava sob vigilância. Isto, segundo o autor, confirma as suspeitas que tinha antes de cair em desgraça ante Cavaco Silva: também estava a ser alvo de controlo quando mantinha a influência junto do Presidente, e foram as fugas de informação no sentido de fazer essa denúncia que deitaram tudo a perder. Em 2010, foi abordado na rua por um homem descrito como “um provocador ao serviço de alguém”, que o apontou como “o assessor da Presidência da República que tinha estado envolvido no “caso das escutas”.
A tese de Lima visa responsabilizar a “central de controlo socialista” socrática por espionagem e intimidação. Lima Seria alvo a abater politicamente. Embora não revele o teor das mensagens trocadas por telemóvel para não envolver outros interlocutores, aponta mais uma pista a corroborar os outros sinais: descobriu que os seus SMS apareceram no processo de compra da TVI pela PT. E, no processo “Face Oculta”, as escutas publicadas permitiram-lhe descobrir que os SMS que trocara sobre a tentativa de compra da TVI pela PT tinham sido controlados por gente e da total confiança do primeiro-ministro. E, como guardou os SMS, pôde conferi-los com o teor das escutas.
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O ex-assessor de Belém alega que escreveu o livro que tinha de escrever, e que não gostava de ter escrito, para se defender. Ora, como conselheiro, assessor ou adjunto do Presidente, só teria de se defender se o Presidente, perante quem respondia, o acusasse publicamente de algo, o que parece não ter sucedido. Esperamos que o ex-Presidente nos poupe a acusações públicas a Fernando Lima ou agora à invocação do direito de resposta.
Se o Presidente o descredibilizou, despediu ou ofendeu em privado, que se entenda com ele.
Para se defender desfazendo equívocos, bastava um pequeno artigo de imprensa. Não eram precisas 430 páginas em que dispara em todas as direções por meio de afirmações erráticas e contradições, em que tudo vale.
Será que pretende desresponsabilizar-se pela impopularidade de que se revestiu Cavaco nos últimos tempos de inquilino de Belém? Era ele o único assessor, adjunto ou conselheiro bom e essencial para fazer a boa imagem do Presidente, tendo os demais conspirado para enegrecer a figura presidencial? Ou quererá dizer-nos que Aníbal Cavaco Silva se esforçou por si próprio para construir a imagem negativa que foi editada para a opinião pública?
Omnis periit labor!

2016.09.12 – Louro de Carvalho 

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