O livro de Fernando Lima,
ex-assessor de Cavaco Silva em Belém para a Comunicação Social, chegou às
livrarias no passado dia 8 de setembro. Com o título “Na sombra da
Presidência – relato de 10 anos em Belém”, esta edição da Porto Editora faz
a descrição do caso dum Chefe de Estado cada vez mais fechado no seu reduto”,
num palácio onde existia “a paranoia com o segredo”, e que acabou por sair sem
glória, sem carisma, inseguro e frágil. O autor declara categoricamente não se
sentir isolado na apreciação do homem que somou vitória sobre vitória:
“Não fui o único em Belém que
assistiu, com grande frustração, à desconstrução da figura de Cavaco Silva, sem
que aparentemente nada fosse feito no círculo para travar a degradação da sua
imagem”.
Alegadamente, trata-se de livro de memórias sobre o
decénio belemita de Cavaco a definhar no tempo, mas é sobretudo o testemunho e
a autojustificação do arredado da função de assessoria e da ribalta da cena. A
ser verdade que, por consequência do “caso das escutas” ao Palácio alegadamente
à ordem do Governo, o assessor foi despedido da função e mantido em Belém “no
sótão” a redigir notas políticas e outras sem efeito algum, tendo até deixado
de lhe ser solicitada opinião “sobre os assuntos da comunicação do Presidente”,
o jornalista de quatro costados teria pedido e forçado a sua exoneração. Homem
que se preze não aceitaria ficar de espectador de sótão com vista para o Tejo
ou a servir de bibelô. Optar “pela total discrição, num ambiente onde ainda
imperava o receio” é timbre de conselheiro mais fraco do que o “aconselhado”.
***
Agora, que o ex-Presidente, sem popularidade, mas
inatingível, recolheu ao convento do Sacramento para exercer “funções” de ex-Chefe
do Estado, o ex-assessor reabilitará a imagem do conselheiro diminuído,
destituído de pelouro, ressentido e sobretudo esquecido de que o exercício de
funções de bastidores é para manter no recato do tempo? Passam muito poucos
meses sobre o termo do mandato do Senhor de Boliqueime. É muito cedo para a
escrita de “memórias” sobre aquele decénio, que ainda não está curtido pelo krónos.
Que temos nós a ver com aquele episódio
“verdadeiramente chocante” para Lima e esposa protagonizado por Aníbal e Maria
quando passaram por eles, no fim do almoço do Dia de Portugal, em 2010,
ignorando-os numa altura em que “Sócrates estava por perto”?
É óbvio que, se os assessores das Casas do Presidente (Casa Civil e
Casa Militar) eram da
têmpera de Lima – o que não é de acreditar – Cavaco Silva tinha de se tornar
num “político diferente, quase irreconhecível”. O certo é que Aníbal não tinha
só conselheiros da estirpe de Lima nem era tão resistente como se fez crer
quando era Chefe do Governo. Depois, por maior que fosse a pressão e o poderio
dos governos de Sócrates, Belém teria de estar vacinado para oferecer ao país
outro lado consistente do poder. Provavelmente por isso é que, depois de Sócrates
deixar o Governo em 2011, a Presidência não ganhou uma “nova energia, livre que
ficara de quem lhe movia uma guerra de usura que inegavelmente o fragilizara”,
mas apenas o estado de distensão.
Não se percebe como é que a presença de Lima, isolada e silenciosa, se
tornava tão incómoda. Será tal incómodo que gerou a “fragilidade flagrante” ou
“os desacertos de Cavaco Silva, a insegurança patente em muitos atos públicos,
a fraqueza política de que dava mostras, em claro contraste com o líder
afirmativo e determinado que se impusera” durante 20 anos?
Depois, Lima repete aquilo que os portugueses estão fartos de saber: as
declarações de Cavaco sobre pensões e a sua incapacidade de gerir as crises.
E, a julgar que fica mais feliz na fotografia, o ex-assessor lança o
lugar-comum de tantos: “Nada me pesa na
consciência”. Talvez para justificar ter dedicado 4 dos 19 capítulos do
livro ao “caso das escutas”, o autor acusa Sócrates de ter construído “poderosa
e invisível máquina”, “para denegrir quem se “atravessasse” no seu caminho,
sublinhando que ao PS não interessava um “poder forte em Belém”.
O “caso das escutas” foi, desencadeado em 18 de agosto de 2009 com uma
notícia do jornal Público, segundo a
qual a Presidência suspeitava estar a ser vigiada. lembrando que na
desconfiança da “possível vigilância a Belém” não era uma “voz isolada”,
citando denúncias de deputados, advogados, juízes e magistrados de “processos
incómodos para Sócrates”, Lima pormenoriza situações que lhe permitiram
confirmar que se encontrava “sob a mira do poder socialista”, recuando a abril
de 2007, quando a revista do Expresso publicou
texto que lhe fazia “referências insultuosas”, embora sem mencionar o seu nome.
Um mês após a predita notícia do Público,
o DN revelou que a fonte do Público era Fernando Lima, publicando um
e-mail dum jornalista do Público, que chegou ao DN, segundo Lima agora escreve, por “um
intermediário político, ligado ao poder socrático que o transportou”.
Tudo começou no
período pré-eleitoral de 2009. Nas legislativas de setembro, Ferreira Leite, no
PSD, desafiava Sócrates, no poder desde 2005. Agosto prenunciava guerra
política com dirigentes do PS, como Junqueiro e Vitalino Canas a suspeitarem de
haver assessores da Casa Civil do Presidente a participar na elaboração do
programa eleitoral do PSD. A notícia do Público
exibia “Presidência suspeita
estar a ser vigiada pelo Governo”, baseada na
declaração dum “membro da Casa Civil”, não identificado, que perguntava se
estariam os assessores da Presidência a ser vigiados. E, na página 2, o texto
interrogava: “Está o Palácio de Belém sob escuta ou sob vigilância?”. E a
resposta era: “Fontes da Casa Civil recorrem a um episódio recente para
alimentar a dúvida”.
As
declarações da fonte anónima de Belém eram a reação aos comentários recentes
daqueles dirigentes socialistas. Com esta citação, em cima
das eleições, estava lançada a guerra entre Governo e Presidente com muitos
episódios e desenvolvimentos a partir da notícia. A fonte anónima era Fernando
Lima, que, num programa da SIC, Francisco Louçã,
coordenador do Bloco de Esquerda, já tinha adiantado como tal.
Fugas de informação não autorizadas ou declarações a jornais passíveis de ser
interpretadas como sendo em seu nome, era das coisas que mais detestava Cavaco,
tendo dificuldade em perdoar. No caso, o experiente assessor dava o flanco ao
adversário – Sócrates e o PS – que, a seguir, lhe desferiu toda a artilharia
disponível.
Lima só falou
em público da polémica, passados 3 meses, em janeiro de 2010, num artigo
publicado no Expresso intitulado “A minha verdade”, classificando a
“intriga” como “teia bem
urdida pelo fértil imaginário dos criadores de factos políticos”.
Nesse texto o assessor justificou as declarações anónimas com a insistência dos
jornalistas em querer saber se havia membros da Casa Civil a participar na
elaboração do programa eleitoral do PSD. Então, formulou a questão, não
exatamente como o Público o citara,
mas assim: “Se não há
registo de participação pública, como é que sabem o que faz cada um na sua vida
privada? Andam a vigiar os assessores?”.
Caiu na
armadilha, que funcionou. Belém ficou manietado numa campanha eleitoral em que Sócrates
lutava para não perder a maioria.
Ora, pelos vistos, Lima não quis sair de Belém para não dar a entender que
assumia culpa que não tinha. Todavia, nada ficou esclarecido. E o assessor, na
ocasião, escreveu um texto em que porfiava que o Presidente não estava
envolvido no caso, o que agora conta de outra forma.
***
O autor do livro assegura que a diabolização da sua pessoa integrava a
estratégia socrática para dominar o espaço informativo da reta final da
campanha eleitoral. Por outro lado, denuncia a alegada ação da “central de
intoxicação socrática”, em outras situações, contra o possível poder forte e
impoluto em Belém. Aduzindo que Sócrates soubera “cercar o Presidente”, lembra
como as notícias sobre as mais-valias no âmbito do BPN marcaram Cavaco e
família. A exceção era o genro, Luís Montez, que não podia, segundo Lima, deixar
de “ter a confiança do poder socialista”, já que no negócio PT/TVI previa-se
ser-lhe atribuída uma rádio da Media Capital.
E Fernando Lima fala de mais casos, como: o Tratado de Lisboa e a encenação
criada para proteger Sócrates de falhar um compromisso eleitoral”, depois de
este haver prometido convocar a consulta popular sobre o tratado e tal não se
ter concretizado; a “intervenção direta e decisiva do Presidente” para demover
o Governo de construir o novo aeroporto na Ota, vista como um “sério revés para
o primeiro-ministro”; e “as tentativas do Governo para controlar o setor
bancário”, a “finança, o sector judiciário e as informações”.
A viagem à Madeira e as suspeições que causou o facto de um adjunto do
gabinete do primeiro-ministro ter integrado a comitiva presidencial à última
hora é outro dos episódios referidos no livro de Lima, que supõe que em 2008 o
primeiro-ministro estava “descompensado pelos casos que envolveram o seu nome e
afetavam a sua auréola de figura intocável”, vendo no Presidente da “uma
verdadeira ameaça”. É também abordado o “cerco ao Presidente” no caso BPN e o “desgaste”
que a situação de Dias Loureiro provocou em Cavaco, com o antigo assessor a
revelar pormenores sobre como a TVI alegadamente colocava questões em
coordenação com o Governo sobre o caso. Falando de “ofensiva antiCavaco” para
atingir a honorabilidade do Presidente, o ex-assessor recorda o caso PT/TVI e
os rumores que circulavam sobre a intenção do Governo de intervir na estação de
televisão para alterar a linha editorial. Segundo Lima, foi uma declaração de
Cavaco sobre o caso que desferiu o golpe final na intenção governamental, ao
preparar-se a entrada da Ongoing no capital de Media Capital, operação que
resultaria da conjugação de apoios financeiros entre a PT e o BES. E Lima relata outros casos que o
fazem desconfiar de que ele próprio estava sob vigilância. Isto, segundo o
autor, confirma as suspeitas que tinha antes de cair em desgraça ante Cavaco
Silva: também estava a ser alvo de controlo quando mantinha a influência junto
do Presidente, e foram as fugas de informação no sentido de fazer essa denúncia
que deitaram tudo a perder. Em 2010, foi abordado na rua por um homem descrito como “um provocador ao serviço de
alguém”, que o apontou como
“o assessor da Presidência da República que tinha estado envolvido no “caso das
escutas”.
A tese de Lima
visa responsabilizar a “central de controlo socialista” socrática por espionagem
e intimidação. Lima Seria alvo a abater politicamente. Embora não revele o teor
das mensagens trocadas por telemóvel para não envolver outros interlocutores,
aponta mais uma pista a corroborar os outros sinais: descobriu que os seus SMS
apareceram no processo de compra da TVI pela PT. E, no processo “Face Oculta”,
as escutas publicadas permitiram-lhe descobrir que os SMS que trocara sobre a
tentativa de compra da TVI pela PT tinham sido controlados por gente e da total
confiança do primeiro-ministro. E, como guardou os SMS, pôde conferi-los com o
teor das escutas.
***
O ex-assessor de Belém alega que escreveu o livro que tinha de escrever, e
que não gostava de ter escrito, para se defender. Ora, como conselheiro,
assessor ou adjunto do Presidente, só teria de se defender se o Presidente,
perante quem respondia, o acusasse publicamente de algo, o que parece não ter
sucedido. Esperamos que o ex-Presidente nos poupe a acusações públicas a
Fernando Lima ou agora à invocação do direito de resposta.
Se o Presidente o descredibilizou, despediu ou ofendeu em privado, que se entenda
com ele.
Para se defender desfazendo equívocos, bastava um pequeno artigo de
imprensa. Não eram precisas 430 páginas em que dispara em todas as direções por
meio de afirmações erráticas e contradições, em que tudo vale.
Será que pretende desresponsabilizar-se pela impopularidade de que se
revestiu Cavaco nos últimos tempos de inquilino de Belém? Era ele o único
assessor, adjunto ou conselheiro bom e essencial para fazer a boa imagem do Presidente,
tendo os demais conspirado para enegrecer a figura presidencial? Ou quererá
dizer-nos que Aníbal Cavaco Silva se esforçou por si próprio para construir a
imagem negativa que foi editada para a opinião pública?
Omnis periit labor!
2016.09.12 – Louro de Carvalho
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