sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A propósito da suspensão dos cursos de comandos

Logo no seu início, no passado dia 4 de setembro, o 127.º Curso de Comandos ficou assinalado pela morte de um militar e o subsequente internamento de mais cinco, sendo que um deles inspira cuidados excecionais – está em lista de espera para um transplante de fígado, depois de ter entrado em falência hepática. De acordo com as primeiras informações das autoridades militares, o incidente deve-se a um “golpe de calor” e as vítimas – fatal e outras – terão sido surpreendidas pelo golpe de calor em sítios diversos na área de desenvolvimento do curso.
Na verdade desse “golpe de calor” que invadiu o treino dos Comandos, na área de Alcochete, na região de Setúbal, resultou a morte do militar e a necessidade de diversos outros receberem assistência hospitalar, estando ainda internados cinco: um no Curry Cabral, três no Hospital das Forças Armadas (FA) e outro no Hospital da Cruz Vermelha.
Perante a situação, a lamentar, da morte de um jovem de 20 anos, os responsáveis pelo curso, em articulação com as chefias, decidiram pela prossecução do curso com a necessária adaptação às condições atmosféricas, enquanto o general Chefe do Estado-Maior do Exército (CME) ordenou a instauração de um inquérito para verificação das circunstâncias e apuramento de eventuais responsabilidades, a que se juntou a Procuradoria-Geral da República a abrir também um inquérito de investigação criminal para apuramento de eventuais responsabilidades criminais. E sabe-se também que o Exército determinara monitorização clínica mais acurada.  
Entretanto, o Ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, apressou-se a anunciar, embora em articulação com o CEME, que estão suspensos os cursos de Comandos até à conclusão de um inquérito sobre as condições em que decorre a formação dos Comandos. Porém, o Exército diz que o atual continua.
Por outro lado, o Ministro admitira vir a intervir na polémica sobre a morte do predito militar no referido curso de Comandos, mas apenas após a conclusão das duas investigações que decorrem sobre o assunto. Horas depois, anunciou que afinal ia intervir já, anunciando que estavam suspensos todos os cursos até à conclusão de um inquérito técnico sobre a forma como eles decorrem. E, na tarde de ontem, dia 8, o Exército decidiu esclarecer o que tinha sido anunciado pelo Ministro: afinal, estão suspensos todos os cursos futuros, mas não o atual. O 127.º curso dos Comandos vai manter-se de forma “controlada e adaptada”.
O tenente-coronel Vicente Pereira, porta-voz do Exército, explicou à agência Lusa:
“O despacho do Chefe de Estado-Maior do Exército foi para a suspensão dos próximos cursos de Comandos, ou seja, a intenção do Exército é que este curso, o 127.º, termine de forma controlada e adaptada como tem sido feito até agora”.
Segundo o porta-voz, os próximos cursos estão suspensos já que o general CEME pretende “aguardar as conclusões dos inquéritos que estão a decorrer, analisá-las e verificar se há necessidade de proceder a alguma alteração nos próximos”, pelo que “só depois da análise feita é que se determinará o passo seguinte a dar”.
O 127.º curso de Comandos tem a duração de 12 semanas, que decorrem em setembro, outubro e novembro, tendo começado com 67 formandos, dos quais 3 oficiais, 10 sargentos e 57 soldados. Segundo Vicente Pereira, a inspeção técnica extraordinária anunciada ontem pelo Ministro da Defesa Nacional é um processo interno do Exército conduzido pela Inspeção-Geral do Exército.
Também Marcelo terá intervindo invocando a sua condição de comandante supremo das FA. O Presidente da República, cuja articulação com o Ministro da Defesa Nacional e o CEME levou à suspensão dos cursos até haver conclusões, irá com Azeredo Lopes visitar os comandos internados. O Presidente esteve em permanente articulação com o Ministro e com o Chefe do Estado-Maior do Exército e acabaram por decidir a urgência de medidas preventivas até se saber o que se passou. Marcelo esteve esta tarde ao telefone com a mãe do militar que está internado no Curry Cabral com prognóstico bastante reservado. E vai visitá-lo hoje na companhia do ministro da Defesa. Amanhã, Presidente e Ministro visitam os outros militares que estão internados no hospital das Forças Armadas.
Entretanto, Marcelo desmente a sua interferência na decisão de suspender os cursos, aduzindo que esse poder pertence ao CEME, que tem informado o Presidente da República enquanto comandante supremo das FA.
O tenente-coronel Vicente Pereira explicou ao DN que os militares fazem exames clínicos quando ingressam no curso e que as avaliações complementares são determinadas pelos médicos do centro, que farão os exames que acharem necessários.
Os próximos cursos de Comandos estão suspensos indefinidamente até à conclusão de uma inspeção técnica extraordinária às provas de classificação e seleção para os cursos.
Sobre esta suspensão dos cursos de Comandos, Azeredo Lopes declarou:
“Isto não resulta, por ora, na extinção do curso de comandos, mas resulta numa paragem, numa suspensão até se conhecer exatamente aquilo que não propriamente aconteceu no dia que determinou esta morte e estas pessoas feridas [morreu um militar e outros dez foram hospitalizados), mas sobre as condições gerais em que está a ser feito o treino e a formação dos comandos”.
Os Comandos do Exército são uma força especial que voltou ao ativo em 2002, após ter sido em extinta em 1993, com o público desagrado do então Presidente da República Mário Soares, que agraciou o regimento com o grau de Membro Honorário da Ordem Militar de Avis.
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Segundo o que se pode ler na página web do Exército, o Curso de Comandos é realizado pelo Regimento de Comandos (RCMDS), localizado na serra da Carregueira, em Belas, e tem a duração de 12 semanas. A sua finalidade é “habilitar os militares, Oficiais, Sargentos e Praças, com a especialidade ‘Comandos’, transmitindo os conhecimentos e competências necessários para integrar unidades de Comandos”. As unidades de “Comandos” são forças que conduzem operações de combate, de natureza eminentemente ofensiva, de forma independentemente ou em apoio de outras Forças, em condições de elevado risco de exigência.
O curso baseia-se em 3 pilares fundamentais: Técnica de Combate, onde são ensinadas as técnicas, táticas e procedimentos que permitem ao militar atuar como Comando individualmente ou inserido numa equipa ou grupo; Treino Físico, inerente a qualquer força especial, que permite ao militar aguentar e suportar as missões que tem de cumprir; e Tiro de Combate, com espingarda e pistola, onde é ensinado a bater alvos no mínimo tempo possível com o menor número de munições.
O curso está organizado em 3 fases – individual, de equipa e de grupo – e dividido em 2 partes: a primeira parte diz respeito à aquisição de conhecimentos; e a segunda parte, à aplicação desses mesmos conhecimentos, a qual se materializa num exercício final onde os militares colocam em prática tudo o que aprenderam na primeira parte do curso. O exercício final tem uma duração mínima de 12 dias, período em que os militares operam em vários ambientes: planície, montanha, áreas arborizadas e massas de água.
Nos susoditos ambientes do exercício final os militares têm de planear e executar diferentes operações incluindo com meios aéreos e aquáticos.
Em caso de exclusão ou de não aproveitamento, o militar regressa à sua situação anterior. E os militares que concluem com aproveitamento o curso poderão ter de cumprir serviço no RCMDS por um período mínimo de dois anos. 
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Quanto ao que se passa com os Comandos e as FA, cumpre tecer algumas considerações.
Tudo se deve fazer para evitar a morte de quem quer que seja ou para que não surjam sequelas graves para a saúde e integridade física e psíquica das pessoas. Por isso, o aplauso a quem exprime a consternação pela morte dum militar e o estado periclitante de saúde de outros. Também é plausível a instauração de inquéritos de natureza técnica ou outra. Porém, não percebo as hipercríticas de muitos quando não as fazem em caso de mortes em estádio no contexto de desportos de alta competição, nomeadamente o futebol. Lamenta-se, fazem-se homenagens e passa-se adiante sem exigências públicas de inquéritos (que até se instauram), sem suspensão de jogos, jornadas e eventos e sem a rigorosa reavaliação. Será o perfume do dinheiro que manda, mesmo matando, ou o encanto do desporto posto acima de tudo?
Que as FA têm de obedecer “aos órgãos de soberania competentes nos termos da Constituição e da lei” (cf CRP, art.º 275.º/3), mas cabe-lhes “a defesa militar da República” (cf CRP, art.º 275.º/1). Por outro lado, o comando supremo das FA pertence ao Presidente da República e a direção da política de defesa cabe ao Governo, que tem como órgão de consulta o Conselho Superior de Defesa Nacional, sendo que a gestão corrente da relação do Governo com as FA se faz entre o Ministro da Defesa Nacional, ou pelo competente Secretário de Estado, e as altas Chefias das FA. Isto quer dizer que o comandante supremo não detém qualquer função de comando operacional, mas de comando supremo, participando e até liderando as opções políticas sobre as FA. Também o Ministro e o Governo não podem interferir nas formas de dar cumprimento das missões concretas que entregam às FA ou de implementar as estratégias políticas por si definidas e muito menos nas táticas e técnicas de execução e avaliação.
Depois, entendo que o Presidente e o Ministro fazem bem em manifestar publicamente o interesse pelas questões das FA e estar perto das pessoas, mas devem evitar tudo o que pareça interferência na autonomia das FA, ultrapassagem da cadeia de comando ou ato de puxão de orelhas. É que a autonomia, a disciplina inquebrável do exterior e a exigência são indispensáveis ao cumprimento do preceito constitucional de assegurar “a defesa militar da República”. E nem o Presidente nem o Ministro têm acautelado devidamente postura prudencial. Não lhes cabe dar ordens diretas aos militares nem inquiri-los. E a PGR poderia ter esperado que os inquéritos internos estivessem concluídos, o que não se pode dizer da PJ, que fez bem em pôr-se alerta.
Quanto às FA, discordei das supressão do serviço militar obrigatório e/ou do equivalente serviço cívico, pelo que significou de desdém político pelas FA, pela defesa nacional e pela cidadania ativa. Aí, o país tem de refletir se quer ou não as FA e sobre o que espera delas. Depois, o Governo tem de as equipar com suficiência em pessoal e meios, deixando de ser tão avaro em termos orçamentais em relação às FA e à defesa militar da República.
Além disso, temos de considerar dois tipos de FA: as tropas de quadrícula e as tropas especiais.
Às primeiras, cabe a progressão e a manutenção da luta no terreno; às segundas, cabe a especial intervenção em situações mais graves e perigosas, no apoio a outras unidades e em ocasiões em que muitas das vezes é urgente “varrer” para dissuadir ou aniquilar o inimigo.
Os “comandos”, como se pode verificar pelo teor do curso a que são sujeitos, acima referido, constituem uma força especial, a par dos para-quedistas, das operações especiais (Quem não se lembras dos antigos rangers?) e dos fuzileiros.
Ora o recrutamento para tropas especiais não se compadece com a obrigatoriedade, com a conscrição. O regime tem de ser de voluntariado absoluto. Para isso, há que disponibilizar contrapartidas – monetárias e sociais. Depois, tem de se fazer a promoção publicitária sem inibições e sem ocultamento e, sobretudo, sujeitar os candidatos a uma boa bateria de testes clínicos físicos e psicológicos e prover o desenvolvimento dos cursos e o exercício subsequente com as necessárias e suficientes ações de monitorização e avaliação contínua do estado clínico, bem como repensar o figurino dos cursos, tendo em conta as necessidades e as finalidades da formação militar. Combate é combate. E faz-se em boas e em más condições, embora estas se devam evitar em contexto de combate, não em contexto de preparação, pelo que devem estar mobilizados permanentemente todos os serviços de apoio.
E ao público convém deixar a informação de que o facto de não estamos em iminência de guerra não dispensa da promoção de uma boa preparação militar, quer da tropa comum quer da tropa especial. Ao invés, a instrução deve ser ainda mais intensa e marcante (sem aleijar), porque não se sabe do momento em que é preciso intervir, podendo ser no imediato ou a muito longo prazo.  
É certo que os tempos são de facilitismo e de excesso de compaixão (nem a classificação na disciplina de Educação Física conta para a média de classificação do ensino secundário e de cada um dos seus anos de escolaridade), em que todos dão palpites. Estamos, em nome do politicamente correto, a dar sinais errados à nossa juventude sobre a pretensa bondade do mundo. Oxalá não se voltem contra nós!

2016.09.09 – Louro de Carvalho

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