sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Documento judaico encontrado na Covilhã há 10 anos vai ser exposto

Foi divulgada ontem, dia 15, por diversos órgãos de comunicação social, a notícia de que foi descoberta, na Covilhã, uma Torah com mais de 400 anos. A Câmara Municipal deu a conhecer o achamento daquele documento judaico escrito integralmente em hebraico, em muito bom estado de conservação, que foi descoberto por um empreiteiro, há 10 anos, durante a demolição de um edifício naquela cidade sede do município.
Em conferência de imprensa adrede convocada, Vítor Pereira, Presidente da autarquia, declarou: 
“Estamos a falar de um documento muito, muito raro, podemos mesmo dizer que é uma joia da cultura portuguesa e da história sefardita mundial e, portanto, entendemos que é da maior importância darmos a conhecer esse documento”.
O autarca referiu que o achado sucedeu há cerca de 10 anos, durante a demolição de um edifício no centro da cidade. Porém, na ocasião, o empreiteiro não terá tido consciência da importância do objeto, limitando-se a guardá-lo: “Enrolou-o num lençol e num plástico e assim o guardou em casa durante estes 10 anos” – justificou. Entretanto, há 6 meses, por causa duma outra obra, o empreiteiro falou do achado e mostrou-o aos arqueólogos do Departamento Cultural da Câmara. Ficou então a saber que tinha nas mãos uma Torah com cerca de 400 anos, depois de os técnicos terem procedido a uma análise sumária do achado, um “pergaminho com 30 metros de comprimento, 60 de altura, provavelmente escrito com tinta ferrogálica e com suporte de apoio em rolos de madeira”.
A autenticidade deste documento em “peça única”, em muito bom estado de conservação, viu a sua autenticidade confirmada por Javier Castaño, professor e investigador no departamento de Estudos Judaicos e Culturais do Mediterrâneo e do Oriente Próximo. A este respeito, o predito autarca especificou:
“Segundo nos referiu, esta peça terá mais de 400 anos e terá sido escrita no período filipino, dos cristãos-novos, quando o culto da religião judaica era proibido em Portugal, mas mantido dentro de portas e no segredo da família”.
Segundo o autarca, esta descoberta é mais um elemento de confirmação da importância que o judaísmo teve no concelho, bem como da existência de uma judiaria na cidade. Porém, Carlos Madaleno, coordenador dos museus municipais da Covilhã, explicou:
“Sendo do século XVI/XVII, já não podemos falar que pertencessem a judiarias, mas sim a cristãos novos. Esta Torah foi descoberta junto do local onde existiu uma antiga igreja [católica] que era frequentada por cristãos-novos e que foi construída no século XVI. Estava numa casa particular, portanto o culto seria secreto”.
E acrescentou:
“Muitos historiadores dizem que estes cristãos-novos não se faziam enterrar no mesmo local dos cristãos-velhos, tinha de ser em terra-virgem, pelo que este seria o local ideal para os sepultamentos”.
O responsável pelos museus municipais assegurou que o pergaminho tem as dimensões normais para este tipo de documento, sendo de estranhar “as boas condições em que o documento foi encontrado”, pois “a grafia está completamente intacta”. E, referindo-se aos cerca de 10 anos em que esteve enrolada no lençol na casa do construtor civil, disse que a Torah “esteve bem acondicionada, apesar de não ser esta a condição ideal”, comentando que, “nos 400 anos anteriores, é que não esteve devidamente protegida”. No atinente à preservação do documento, o Presidente da autarquia revelou que foi estabelecido um protocolo com o empreiteiro para ser a autarquia a guardá-lo e a conservá-lo, embora a posse legal continue a ser de quem o encontrou.
E Carlos Madaleno revelou que, depois da exposição nos Paços do Conselho, a preciosidade ficará devidamente guardada no Arquivo Municipal da Covilhã, com climatização e controlo da humidade, vindo a ser alvo de mais estudos.
Para já, esta Torah com mais de 400 anos será exposta ao público entre o dia 16 e o final do mês, no edifício dos Paços do Concelho, no âmbito das Jornadas Europeias do Património.
Depois, segundo autarca, o município continuará a “aprofundar a análise” do documento a fim de recolher mais informação e obter dados científicos e históricos sobre o mesmo, explicitando:
“Sensibilizaremos o Ministério da Cultura para a importância deste documento e vamos tentar que ele fique disponível para os cientistas e historiadores poderem analisar e apreciar, sendo certo que não pode ser manuseado para que continuemos a garantir a sua preservação”.
Relativamente às Jornadas Europeias do Património, a iniciativa arranca dia 22, às 22 horas, no salão Nobre dos Paços do Concelho, com a apresentação do Fundo Fotográfico Antigo do Arquivo Municipal, seguindo-se no segundo dia, às 10,30 horas, um momento musical e a apresentação do memorial às vítimas da Inquisição, naturais e residentes no concelho acusadas de judaísmo. Segue-se, às 11 horas, a apresentação da Torah.
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Essencialmente Torah (Lei, em português) significa, em hebraico, ensinamento e refere-se ao Pentateuco (designação grega da versão dos LXX da Bíblia), ou seja, os 5 primeiros livros da Bíblia.
O fator de unidade desta coleção é o relato histórico que guia o leitor desde a criação, através da história primitiva da humanidade, da história dos patriarcas, da chegada do povo ao Egito, do Êxodo, da aliança no Sinai, da travessia do deserto, até à chegada à parte oriental do Jordão, ao relato da morte e sepultura de Moisés. Paralelamente à história, e com ela conexo, vem o elenco das leis (daí a designação de Torah dado pelos judeus) e prescrições litúrgicas, que foram concebidas como resultado da revelação divina feita a Moisés e, por consequência, incorporadas na narrativa. Mais nenhum outro livro do Antigo Testamento contém um corpo de leis que obrigue Israel. O modo de escrever de então, mesclando História, Direito e Liturgia, não coincide com o modo atual de historiografar. Ao mostrarem a intervenção de Deus na História, os autores humanos do Pentateuco, querem apresentá-la como exemplo modelar da presença de Deus na História de cada povo. Hoje sabe-se que nenhum destes 5 livros se pode atribuir a um único autor e menos ainda a Moisés, pois todos tiveram uma história literária complexa. Porém, a referência autoral a Moisés significa uma certa autoria moral do libertador e condutor humano do povo em relação ao teor fundamental do Pentateuco e uma homenagem histórica ao chefe.
Marcado pelo cunho moisaico, só conheceu forma definitiva séculos após a sua morte (séc V aC).   
O nome Torah deriva da palavra hebraica Yará – a significar ensinar (instruir, apontar para o alvo, estabelecer uma fundação). É o ensinamento da Lei, termo por que é conhecido o Pentateuco no Novo Testamento. Na tradição judaica existem duas Torah, a escrita e a oral. Porém, a considerada é a fixada na escrita.
A autoria da Lei é atribuída ao próprio Deus de Israel, que a revelou a Moisés no monte Sinai, que a transmitiu, por sua vez, ao povo hebreu durante os 40 anos de peregrinação pelo deserto. Foi no Shavuot, dia especialmente dedicado a Deus, que Deus a entregou ao povo hebreu através de Moisés. Shavuot (Pentecostes) corresponde às 7 semanas subsequente à festa da Páscoa, período durante o qual o povo hebreu estava com Moisés no sopé do monte Sinai para celebrar, no quinquagésimo dia, a festa das semanas.
A Torah escrita também é conhecida como Chumash, nela se encontra os 613 mandamentos.
Os seus livros são designados em hebraico pela sua 1.ª palavra, que indica o tema: Bereshit (Génesis); Shemot (Êxodo); Vaikrá (Levítico); B’midibar (Números); e Devarim (Deuteronómio). Entre parêntesis vêm os nomes gregos. A tradição oral é a explicação ou o conjunto de ensinamentos de como cumprir os mandamentos da Torah escrita, que foi sendo passada, ao longo dos anos, de geração em geração através dos sábios para o povo. De acordo com o pensamento rabínico, não se pode estudar a Torah escrita sem antes conhecer a Torah oral. Moisés recebeu a lei (Torah) no Sinai e transmitiu-a a Josué, Josué, aos anciãos, os anciãos aos profetas, que a transmitiram aos homens da Grande Sinagoga, que diz basicamente 3 coisas: sede ponderados em vossos julgamentos; formai muitos discípulos; e levantai uma cerca em volta da Torah.
É um livro sagrado, que foi revelado pelo próprio Deus a Moisés, havendo nele passagens que foram escritas (melhor, inspiradas) pelo próprio dedo de Deus:
“E deu a Moisés duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus” (Ex 31,18).
A Torah aborda a vida do homem em todos os sentidos e aspetos, desde o modo de vestir, de comer, de trabalhar a relacionar-se com Deus e com o próximo. Nela podemos encontrar todos os segredos do universo, as leis, a moral e a ética. É um livro de sabedoria, pois além de histórias, profecias e reflexões também revela o plano de Deus para a redenção da humanidade.
Toda a Bíblia assenta nos fundamentos da Torah, que não é apenas um rolo ou um livro da lei, mas a própria palavra de Deus revelada aos homens. Todas as profecias são baseadas nas promessas da Torah, todos os salmos e cânticos são inspirados nela, até o Novo Testamento (Brit Hadasha) é fundamentado nela.
Porque ditou ou escreveu Deus a Torah? Segundo Marcelo Miranda, um pensador chinês do século XX (watman Nee) que acreditava na Bíblia, responde a esta questão apresentando 5 fundamentos lógicos: nela encontraremos, em algum lugar, Deus a dizer que é o seu próprio autor; o livro contém um alto padrão moral; o livro falaria do passado, do presente e do futuro; responde às grandes dúvidas do homem sobre o universo, a criação, o porquê de tudo e o sentido da vida; o próprio livro dá uma solução definitiva e eterna para o homem.
Rabi Eleazar, filho de Azaryah dizia:
“Se não existe a Torah, não há saber viver; se não há saber viver, não existe a Torah. Se não existe sabedoria, não existe adoração; se não existe adoração, não existe sabedoria. Se não existe saber, não existe inteligência; se não existe Torah, não existe alimento (Pirkêi Avót, Tratado dos Pais, pg 3,17). Nem só de pão vive o homem, mas de tudo que procede da boca do Senhor (Dt 8,3).”
O conhecimento da Torah, alinhado com a revelação da Palavra de Deus, é a ligação entre o natural e o sobre natural, o infinito e o finito, o físico e o espiritual. Os grandes sábios também dizem que a Torah não se restringe apenas à forma escrita e oral, mas também espiritual, pois ela existe antes da fundação do mundo e as bases do universo foram feitas por Deus através dela. Ora, se a Torah é a palavra de Deus, tudo o que foi criado foi feito através da Torah.
Davar” ou “dabhar”, no pensamento hebraico, significa palavra, que tem no grego a correspondente “logos”. Ora, todo o universo é sustentado por leis naturais que foram instituídas através da palavra. Por exemplo, Deus disse, “Faça-se a luz”, e a luz fez-se. O mesmo sucedeu com as estrelas (cf Gn 1,3.6.14).
Porém, antes de a Torah ser revelada no Sinai a Moisés, já havia homens que a conheciam e lhe obedeciam. Noé é um exemplo de homem que, embora vivesse num mundo corrompido pelo pecado, não andava segundo as práticas desse mundo. Enoch, de forma semelhante, andava na observância da lei de Deus, ao ponto de ser arrebatado. Abraão também já obedecia à Lei e caminhava por ela: “Abraão obedeceu à minha voz e cumpriu os meus mandamentos, os meus preceitos e as minhas leis” (Gn 26,5).
A Lei estava no coração de Abraão, que era homem justo, reto e íntegro. Enquanto as pessoas do seu tempo se afundavam na idolatria e se perdiam no paganismo e na adoração de deuses, Abraão estava disposto a servir apenas a um único Deus. Então o Criador dos céus e da terra firmou um pacto com Abraão para que, através da sua fidelidade, todas as nações conhecessem a Torah e fossem abençoadas por ela através da sua descendência. A Sagrada Escritura afirma que um dia o “Messias” virá à terra para ensinar a lei de Deus e colocá-la no coração do homem. Todos os povos de todas as nações subirão a Jerusalém para aprender a Torah e andar nas leis do Deus de Israel.
Mas, nos últimos dias, acontecerá que o monte da casa do Senhor será estabelecido no cume dos montes, e se elevará sobre os outeiros, e concorrerão a ele os povos. E irão muitas nações, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, e à casa do Deus de Jacob, para que nos ensine os seus caminhos, e nós andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá à Lei (Torah) e a palavra do Senhor de Jerusalém (Is 2,2-4; cf Mq 4,1). Porque este é o concerto que, depois daqueles dias, farei com a casa de Israel, diz o Senhor: Porei as minhas leis no seu entendimento e em seu coração as escreverei; e eu serei para eles Deus e eles serão para mim um povo” (Heb 8,10).
Caminhar com Deus é andar em obediência à sua palavra. A Torah é o caminho que revela os propósitos de Deus para a vida do homem. A sua base é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo com a si mesmo, tanto assim que os primeiros mandamentos dizem respeito à relação do homem com Deus e os demais à relação do homem com o seu próximo.
“É manifesto que vós sois a carta do Messias, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração” (2Cor 3,3).
Tendo o povo hebreu ficado escravo no Egito por mais de 400 anos, lá os filhos de Abraão foram contaminados pelo pecado e pelas práticas pagãs. Porém, Deus outorgou a Moisés a Torah para relembrar ao povo hebreu que ele era um povo escolhido e separado por Deus para carregar a Santa Torah nos seus corações.
É vontade de Deus que a Lei more no coração do homem e não em tábuas, pedras, rolos ou livros. Por isso, o sentido e a aplicação da Lei são espirituais e a palavra de Deus não é carnal, já que não foi estabelecida pelo homem. Desde o princípio, a vontade do Eterno é que o homem viva e caminhe pela palavra, que é vida plena.
“E estes mandamentos que hoje te imponho, estarão no teu coração; repeti-los-ás aos teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa, andando pelo caminho, deitando-te e levantando-te […]. E o Senhor mandou que observássemos todos estes estatutos, para temer ao Senhor, nosso Deus, para o nosso perpétuo bem, para nos guardar em vida, como no dia de hoje. E desse modo seremos justos, porque teremos o cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o Senhor, nosso Deus, como nos mandou.” (Dt 6,6-7.24-25).
Porém, aqueles que não tiveram acesso à revelação divina, não ficam desculpados, pois:
O que de Deus se pode conhecer está à vista deles, já que Deus lho manifestou. De factoto, o que é invisível nele – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência nas suas obras desde a criação do mundo.” (Rm 1,19-20).
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Oxalá que, a partir da descoberta da Torah na Covilhã, surja um grupo de estudiosos que estudem a língua hebraica e trabalhem para que a Bíblia Hebraica forneça nova luz para uma interpretação mais rigorosa e atualizável dos Livros Santos.

2016.09.16 – Louro de Carvalho

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