A passagem
pela capela de São Sebastião, em Castro Daire, no passado dia 3 de setembro,
fez-me recordar uma visita que fiz, em 1999, à igreja de São Roque em Montpellier,
acompanhado por um cristão não católico do município de Jacou, que nos falava
de São Roque com enorme enlevo. Com efeito, um
costume pluricentenário consiste numa distribuição de água tirada do poço de São
Roque, vestígio da sua casa natal, à rue de Soge, em Montpellier, na região do
Midi na França. Uma grande procissão e uma série de missas marcam essa jornada
que atrai milhares de peregrinos. Acreditam que essa água previne doenças.
O culto de São Roque em Montpellier data do século em
que ele viveu. Todavia, foi apenas em de janeiro de 1828 que a velha igreja
dedicada a São Paulo lhe foi consagrada, na sua cidade natal, passando a ser o
templo de São Roque.
Em França, corre
um provérbio tradicional que diz, a propósito de dois amigos inseparáveis: “Como
São Roque e seu cachorro”. E os agricultores, costumam dizer: “Quem ama São
Roque, ama o seu cachorro”.
De modo
similar me recordei, em Castro Daire, da singelíssima capelinha de São Roque, num
lugar-quinta da mesma denominação na freguesia de Vila da Ponte, no município
de Sernancelhe. E, depois, o pensamento deambulou pela Igreja de São Roque em
Lisboa, hoje entregue à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas que fora da
administração da Companhia de Jesus desde a sua vinda para Portugal até à sua expulsão
do país.
Quem é São
Roque?
É um santo da
Igreja Católica, protetor contra a peste e
padroeiro dos inválidos e cirurgiões. Também algumas comunidades católicas o invocam
como protetor do gado e contra as doenças contagiosas em geral. Dada a sua grande
popularidade, mercê da sua intercessão contra a peste, é orago de múltiplas comunidades em todo o
mundo e padroeiro de diversas profissões ligadas à medicina, ao tratamento de
animais e seus produtos e, em especial, aos cães. A sua memória litúrgica
celebra-se a 16 de agosto.
Devido à escassez de informações sobre a sua vida, muitos dos seus dados
biográficos permanecem envoltos em nebuloso mistério. Até persistem dúvidas sobre o seu
verdadeiro nome, já que Roch (aportuguesado para Roque) seria nome de família, não de batismo
(é documentada a
existência no século XII duma
família com aquele apelido na cidade de Montpellier).
Embora haja
variação dos biógrafos nas datas indicadas para o nascimento e morte, Roque terá nascido em Montpellier, cidade capital do departamento
Hérault e da região
do Languedoc-Roussillon, na costa sul de França, por volta de 1350, e falecido na mesma cidade em 1379 (outra versão biográfica dá-o como
falecido no mesmo ano na Lombardia). Sabe-se, contudo, que terá falecido jovem.
Era filho de João,
mercador rico e senhor de grandes domínios, que tinha funções governativas na
cidade, e de sua mulher Libéria. Estava ligado a famílias importantes de
Montpellier, sendo herdeiro de considerável fortuna. Diz a lenda que Roque
teria nascido com um sinal em forma de cruz avermelhada na pele do peito, o que
o predestinaria à santidade.
Ficou órfão
de pai e mãe muito jovem, pelo que a sua educação foi confiada a um tio. Tendo
estudado medicina na sua cidade natal, não concluiu os estudos, de que se
desinteressou para abraçar desde muito cedo uma vida ascética e de prática da
caridade para com os menos afortunados. E, ao atingir a maioridade, por volta
dos 20 anos, resolveu distribuir os bens pelos pobres, confiando uma pequena
parte à administração do tio, e partiu em peregrinação a Roma, no decurso de cuja
viagem, encontrou a cidade de Acquapendente, perto de Viterbo, assediada pela
peste (a grande epidemia
da Peste Negra de 1348). De imediato, ofereceu-se como
voluntário na assistência aos doentes, operando as primeiras curas milagrosas,
servindo-se apenas dum bisturi e do
sinal da cruz. A seguir, visitou Cesena e
outras cidades vizinhas, como Mântua, Modena, Parma, além de outras cidades e
aldeias, de modo que onde surgisse foco de peste, lá estava Roque a ajudar e a
curar os doentes, revelando-se como místico e taumaturgo. Depois, visitou Roma,
onde rezou sobre o túmulo de São Pedro e
onde curou vítimas da peste.
Na viagem de
regresso a Montpellier, ao chegar a Piacenza, foi ele próprio contagiado pela
doença, que o impediu de prosseguir a sua obra de assistência. Para não
contagiar alguém, isolou-se na floresta próxima da cidade, onde teria morrido
de fome se um cão não lhe trouxesse diariamente um pão e se da terra não tivesse nascido uma
fonte de água para lhe matar a sede. O cão pertenceria a Gottardo Palastrelli, um
rico-homem, o qual, apercebendo-se, por milagre, da presença de Roque, o terá
ajudado – ajuda de que resultou a sua conversão e a emenda de vida.
Regressado a
Montpellier miraculosamente curado, foi logo preso, no contexto de guerra que grassava
pela França, e levado ao governador, que alguns biógrafos afirmam ser um seu
tio materno, que declarou não o conhecer. Roque foi considerado espião e passou
alguns anos numa prisão (alguns
biógrafos dizem 5 anos)
até morrer, abandonado e esquecido de todos, sendo reconhecido após a morte,
pela cruz que tinha marcada no peito. Versão alternativa situa o local da
prisão em Angera, próximo do Lago Maggiore, afirmando que fora mandado prender
pelo duque de Milão sob a acusação
de espionagem a soldo do Papa. Não se podendo livrar da acusação de espionagem ou
de disseminar a peste, morreu prisioneiro naquela cidade (diz-se que em 1379). Embora não haja consenso sobre o
local da morte, é certo que morreu na prisão, após um largo período de
encarceramento. Embora sem provas que o consubstanciem, afirma-se que Roque
terá pertencido à Ordem Terceira de São Francisco.
Descoberta a
cruz no peito, a fama da sua santidade rapidamente se espalhou por todo o sul
de França e pelo norte de Itália, sendo-lhe atribuídos inúmeros milagres.
Passou a ser invocado em casos de epidemia, popularizando-se como o protetor
contra a peste e a pestilência. O primeiro milagre póstumo que lhe é atribuído
foi a cura do seu carcereiro Justino, que coxeava. Ao tocar com a perna no
corpo de Roque, para verificar se estaria realmente morto, a perna ficou efetivamente
curada. Não se conhece a data da canonização, a que se terá procedido por
devoção popular e não por decisão eclesiástica expressa, como aliás era comum
na época. A primeira decisão oficial da Igreja sobre o culto a São Roque
aconteceu em 1414, quando no decurso do Concílio de Constança se declarou uma
epidemia de peste. Levados pela fé popular, os padres conciliares ordenaram
preces e procissões em sua honra, tendo de imediato o contágio cessado. O Papa Urbano VIII aprovou os
ofícios eclesiásticos para serem recitados a 16 de agosto. Paulo III erigiu uma confraria sob a
invocação de São Roque para administrar a igreja e o hospital erigidos em Roma
durante o pontificado de Alexandre VI. A confraria cresceu rapidamente, de tal
forma que Paulo IV a elevou a
arquiconfraria, com a faculdade de agregar outras confrarias da mesma invocação
que tinham surgido noutras cidades. A confraria tinha um cardeal protetor (ver Reg.
et Const. Societatis S. Rochi) e vários papas a obsequiaram com a concessão de privilégios,
nomeadamente Pio IV (1561), Gregório XIII (1577) e Gregório XIV (1591).
O culto de
São Roque, que tinha declinado ao longo dos anos, reavivou-se com a aprovação
papal da respetiva confraria e surgiram igrejas dedicadas ao santo em todas as
capitais católicas, recrudescendo a devoção sempre que surgiam epidemias. O
último grande ressurgimento ocorreu com a cólera nos
princípios do século XIX.
Com
o transporte dos seus restos mortais para Veneza em 1485, tornou-se ali objeto de
grande veneração e culto. A magnificente igreja seiscentista que as alberga (a
Scuola Grande di San Rocco),
foi decorada por Tintoretto. A
cidade dedica-lhe a festa anual (uma das obras de Canaletto retrata a saída da
procissão de São Roque em Veneza). Também em Palmi, na Itália, a 16 de agosto é feita a “festa
de San Rocco”, com inúmeras tradições. Assim, durante a procissão com
a sua imagem pelas ruas, portadores de ofertas votivas desfilam despidos da
cintura para cima, com uma capa feita de espinhos de vassoura selvagem
(chamados de “spalas”). A procissão dura 4 horas e meia e abrange 7 quilómetros
de estrada, com uma participação de cerca de 30 mil devotos. Outra forma de
oferenda é cera humano-anatómica como um sinal de gratidão por cura
milagrosa. Nos dias da festa correm pelas ruas ao ritmo de tambores dois gigantes de
papelão chamado de “Mata” e “Grifone”.
Também as cidades
de Antuérpia, Arles e Lisboa guardam algumas das suas relíquias.
São Roque é
geralmente representado em trajes de peregrino,
com a vieira típica dos peregrinos de Santiago de Compostela e
com um longo bordão de que
pende a cabaça. Um dos joelhos e perna
são geralmente desnudados, sendo aí visível uma ferida (bubão da peste). Por vezes, é acompanhado por um cão, que aparece a
seu lado trazendo-lhe na boca um pão.
A novena de São
Roque
Da Historiadora
Helena Gonçalves Pinto pode ler-se no site
da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa uma boa referência à novena e sua
fundamentação.
Na verdade, a
Europa descobriu, no século XV, um exemplo de caridade em São Roque: um
peregrino dedicado aos desamparados na angústia das enfermidades. Após tal
descoberta, passou a ser o santo invocado pelo povo, sobretudo em momentos de calamidade, tornando-se um
exemplo pelos gestos de solidariedade e de caridade máxima ao expor-se ao
perigo de contágio na dedicação ao cuidado dos doentes, principalmente dos mais
desprotegidos e rejeitados. Em breve se multiplicaram os gestos de comunhão mais
explícita do povo com o “Santo”, buscando uns a proteção e agradecendo outros as
curas alcançadas por sua intercessão.
Aponta a Historiadora
a existência, em Lisboa, junto da ermida de São Roque, dumas casas térreas em
que se “recolhia o capellam do Sancto e o ermitam, e outra que servia a
alguma pessoa devota que vinha fazer novena ao Sancto” (“História
dos Mosteiros Conventos e Casas Religiosas de Lisboa”, 1962: 220). Assim, todos os anos, era renovado o ato de
compromisso, mantendo-se viva a prática e as obrigações que eram assumidas em
comunidade. Na base do compromisso está o Evangelho, reanimado diariamente na
partilha e na dedicação aos outros, renovando a prática de misericórdia: de dar
como forma de entrega. A novena fazia parte das celebrações em honra do Santo,
que incluíam as Vésperas Solenes e,
no dia do Santo, uma Liturgia particular com introito, oração, epístola,
evangelho, acompanhada de música instrumental e de cânticos. Em 1734, Joseph
Antonio da Silva imprimiu, em Lisboa, a “Novena
do Glorioso S. Roque, advogado contra a peste, ou outro qualquer mal Epidemico,
e contagioso, especialmente de bexigas”. E, no século XIX, fizeram-se novas
edições da novena sob o patrocínio da Irmandade de São Roque e de outros
mecenas e editores particulares, quase sempre acompanhando os ciclos epidémicos
que assolaram Portugal. Deste período, ganhou difusão a “Novena do Glorioso S. Roque por ocasião da epidemia Cholera-Morbus no
anno de 1832”, que inclui uma gravura de São Roque, de 1800, que a
Irmandade encomendou a Frei Mattheus da Assumpção Brandão (1778-1837), que acabaria por assumir um vínculo com a
Irmandade, assumindo compromisso a 15 de agosto de 1831. E a obra musical foi
entregue a Fr. José de Santa Rita Marques e Silva (1782-1837), considerada uma das mais importantes figuras da
época no domínio da música sacra em Lisboa, que igualmente se tornaria Irmão de
São Roque, com compromisso datado de 15 de agosto de 1832.
A Novena de
São Roque recuperada para as festas de São Roque, desde o ano de 2006, é uma
versão atualizada do texto de 1832, que procura divulgar as práticas da
misericórdia, que é exercida sem esperar retribuição: “dar como forma de
partilhar”.
Igreja de
São Roque em Lisboa
No século
XVI, o local onde se situa a Igreja ficava isolado fora das muralhas da cidade,
pelo que foi escolhido para cemitério onde se enterravam as vítimas da peste.
Em 1506, construiu-se ali uma ermida dedicada a São Roque, protetor dos
pestíferos. Foi então instituída a Irmandade de São Roque, com estatutos
próprios e apoiada pela casa real, pela nobreza e pelo povo. Em 1553, a
Companhia de Jesus tomou conta do local e mandou construir o templo que se
mantém na atualidade, com obrigação de manter a Capela de São Roque no
interior.
De fachada
austera, em conformidade com os cânones jesuítas, o interior é surpreendente.
Ao entrar, depara-se com um espaço amplo de estrutura maneirista, cuja
decoração é o testemunho do mecenato real, sobretudo de D. João V. Combinam o
mármore, a talha dourada, as telas e os painéis de azulejo para a criação dum
ambiente cénico realçado pelo jogo de claro/escuro maneirista e pelos meticulosos
efeitos de iluminação.
O plano da
Igreja é de Filipe Terzi, arquiteto régio de Filipe II de Portugal (III de Espanha). No interior, existem obras de grande qualidade e
valor artístico, entre as quais se destacam a capela-mor com iconografia
representativa da Companhia de Jesus, as pinturas em perspetiva do teto (1588-89), da autoria do pintor português Francisco Venegas,
os painéis de Francisco de Matos na Capela de São Roque datados de 1584 (uma das
primeiras experiências azulejares portuguesas da técnica da majólica), os Altares laterais das Relíquias e a Capela de São
João Baptista, de fabrico italiano.
Em 1768, a
Companhia de Jesus foi expulsa do território português por carta régia. A igreja
e os respetivos bens foram então entregues à Misericórdia de Lisboa. Atualmente
pertencem à Santa Casa da Misericórdia que os expõe no Museu de São Roque, ao
lado do templo.
***
Em Ano
Jubilar Extraordinário da Misericórdia parece bem recordar mais um eminente obreiro
da misericórdia, que é exercida sem esperar retribuição – “dar como forma de
partilhar”, dar-se até ao limite das forças como Cristo fez e quer que façamos.
Roque suportou a calúnia da espionagem e o absurdo de disseminar a peste. Estranha
gratidão para alguém que se entregou totalmente até à vitimização sob a doença,
recebendo como recompensa a prisão e a morte.
2016.09.07 – Louro e Carvalho
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