domingo, 4 de setembro de 2016

Santa Teresa de Calcutá: contemplar, adorar e servir Jesus Cristo sorrindo

Provavelmente muitas pessoas não esperavam que Francisco, depois de toda a caminhada eclesial e de outras pessoas de boa vontade em torno das celebrações da canonização de Santa Teresa de Calcutá, viesse na recitação do Angelus de hoje, 4 de setembro, com a multidão reunida na Praça de São Pedro, a recomendar, sobretudo ao voluntariado, a prece para que Ela ensine a contemplar, adorar e servir Jesus Cristo. Contemplar e adorar e servir Jesus Cristo! Então, e os pobres, os que não são amados podem esperar?
Primeiro, do meu ponto de vista, é necessário reconhecer que ao Papa assiste a mesma simplicidade discursiva, gestual e factual quando requer uma Igreja em saída para as periferias existenciais – dos pobres, esquecidos, doentes, sós e explorados – como quando manda olhar para o centro para recarregar baterias e contrair o reforço de energias ou prega misericórdia e o cuidado com a Casa comum de todos, ou ainda quando canoniza um santo ou santa. Tudo se insere no dever de confirmar os irmãos. Depois, Francisco sabe e tem dito que a tábua dos critérios de julgamento no fim dos tempos será o dar de comer aos famintos e de beber aos sequiosos, vestir os nus, acolher os peregrinos, os sem teto e os refugiados, cuidar dos doentes e visitar os presos, como sabe e tem dito que fazer tudo isso ou deixar de o fazer ao mínimo dos irmãos é fazê-lo ou deixar de o fazer ao próprio Jesus. Por isso, proclamou, em dia de canonização de Teresa de Calcutá, a trilogia da ação cristã perfeita: contemplar, adorar e servir Cristo Crucificado nos pobres e necessitados. Não se pode viver a alegria do Ressuscitado se não reconhecermos que Ele pagou por nós morrendo. Depois, é preciso contemplar o Crucificado e reconhecê-Lo nos outros, sobretudo nos pobres, doentes e carecidos de outras prerrogativas humanas, como vida, saúde, liberdade, segurança e conforto. Reconhecendo-O, é preciso servi-Lo. E só se serve quem se adora!
Credo! Só se adora a Deus – lá diz o livro santo (cf Mt 4,10; Lc 4,8). Pois, mas o livro santo diz: “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele prestarás culto”. E que significa adorar? Se adorar significa prestar culto, só podemos adorar a Deus; mas, se adorar significa aproximar a boca (ad+orare os oris significa boca) do rosto de Deus e contemplá-Lo, é preciso adorar ou contemplar também os pobres, doentes, não amados e necessitados de qualquer ordem. Se não olharmos para eles com olhos de ver e com afeto, como é que os serviremos? Ora, a medida desta contemplação, deste amor, desta adoração e deste serviço é-nos dada por Cristo na Sua entrega por nós na Última Ceia: Cristo transforma o pão e o vinho no seu Corpo e Sangue, manda-nos comungar para nos transformarmos em Jesus adorador, servo e pobre. Bento XVI explicita este sentido na homilia da Missa de encerramento da primeira JMJ que acompanhou em 21 de agosto de 2005, na Alemanha. Dizia o Pontífice alemão:
“Encontro uma alusão muito bela neste novo trecho que a Última Ceia nos concedeu na aceção diferente que a palavra adoração tem em grego e em latim. A palavra grega ressoa proskynesis. Significa o gesto da submissão, o reconhecimento de Deus como a nossa verdadeira medida, cuja norma aceitamos seguir. Significa que liberdade não quer dizer gozar a vida, considerar-se absolutamente autónomo, mas orientar-se segundo a medida da verdade e do bem, para, desta forma, nos tornarmos nós próprios verdadeiros e bons. Este gesto é necessário, mesmo se a nossa ambição de liberdade num primeiro momento resiste a esta perspetiva. Fazê-la completamente nossa só será possível na segunda passagem que a Última Ceia nos apresenta. A palavra latina para adoração é ad-oratio contacto boca a boca, beijo, abraço e, por conseguinte, fundamentalmente amor. A submissão torna-se união, porque Aquele ao qual nos submetemos é Amor. Assim, submissão adquire um sentido, porque não nos impõe coisas alheias, mas liberta-nos em função da verdade mais íntima do nosso ser.
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Em 19 de outubro de 2003, João Paulo II, na homilia da celebração Eucarística da beatificação de Teresa, apontava-lhe a capacidade de serviço, radicada no Evangelho.Quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se servo de todos” (Mc 10,44) – são palavras de Jesus que apontam a via que leva à “grandeza” evangélica, via que o Senhor percorreu até à Cruz. É o seu itinerário de amor e de serviço contrário a qualquer lógica humana. Teresa de Calcutá, fundadora dos Missionários e das Missionárias da Caridade, segundo o Papa polaco, deixou-se guiar pela lógica do Evangelho. Tornou-se pela coragem o Ícone do Bom Samaritano: “ia a toda a parte para servir Cristo nos mais pobres entre os pobres”. Para ela, conflitos e guerras não constituíam impedimento. Wojtyla considerou “significativo que a sua beatificação” se tenha realizado no dia que a Igreja celebra como o Dia Missionário Mundial, pois, com o testemunho da sua vida, Teresa recordou a todos “que a missão evangelizadora da Igreja passa através da caridade, alimentada na oração e na escuta da palavra de Deus”. E chamou a atenção para a índole emblemática duma das imagens da Santa: com uma das mãos, segura uma criança e, com a outra, desfia o rosário. A santa albanesa e indiana faz a síntese da vida cristã – contemplação e ação, evangelização e promoção humana.
O brado de Jesus na cruz, “Tenho sede (Jo 19,28), que exprime o desejo que o homem tem de Deus, calou fundo no coração Teresa tendo ali encontrado “terreno fértil”. Assim se tornou um imperativo de vida satisfazer a sede que Jesus tem de amor e de almas, em união com Maria, Sua Mãe – o que induzia a Madre a “ir depressa” dum lado a outro do mundo, para se “comprometer pela salvação e santificação dos mais pobres”.
Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes (Mt 25,40). Este segmento do Evangelho, tão fundamental para compreender o serviço de Teresa aos pobres, estava na base da sua convicção de fé de que, “ao tocar os corpos enfraquecidos dos pobres, tocava o corpo de Cristo”, destinando o seu serviço ao próprio Jesus, oculto sob as angustiantes vestes dos mais pobres. A sua personalidade configura o significado mais profundo do serviço: gesto de amor prestado aos famintos, sequiosos, estrangeiros, nus ou rotos, doentes, presos (cf Mt 25, 34-36) é feito a Cristo. Ao reconhecê-Lo, servia-O devota e devotadamente e exprimia a delicadeza do seu amor esponsal a Cristo. E, no dom total de si a Deus e ao próximo, encontrou a sua satisfação mais nobre e viveu as qualidades mais elevadas da sua feminilidade.
No momento da recitação do Angelus, João Paulo II indicou Maria Santíssima fora sempre o modelo de Santa Teresa de Calcutá.
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Agnes Gonxha Bojaxhiu nasceu a 27 de agosto de 1910 em Skopje, na Albânia, e foi batizada um dia depois do nascimento. A família pertencia à minoria albanesa que vivia no sul da antiga Jugoslávia. Pouco se sabe da infância, adolescência e juventude da Santa, já que não gostava de falar de si mesma. Aos 18 anos, sentiu-se chamada à consagração total a Deus na vida religiosa. Obtido o consentimento dos pais e por indicação do sacerdote que a orientava, no dia 29 de setembro de 1928, ingressou na Casa Mãe das Irmãs de Nossa Senhora de Loreto, na Irlanda.
Não obstante, o seu sonho era o trabalho missionário com os pobres na Índia. Cientes disso, as superioras enviaram-na para fazer o noviciado já no campo do apostolado. Agnes partiu para a Índia e, a 24 de maio de 1931, fez a profissão religiosa escolhendo o nome de Teresa com a intenção de se parecer com Teresa do Menino Jesus, a humilde carmelita de Lisieux, dedicada pela oração às Missões. Transferida para Calcutá, seguiu a carreira docente, cercada de meninas filhas das famílias mais tradicionais de Calcutá. Porém, impressionava-se com o que via ao sair às ruas: os bairros pobres da cidade cheios de mulheres, crianças e idosos – marcados de miséria, fome e inúmeras doenças.
Neste contexto, o 10 de setembro de 1946 ficou marcado como o “Dia da Inspiração” na história das Missionárias da Caridade – congregação fundada por Madre Teresa. Teresa, durante uma viagem de comboio ao noviciado do Himalaia, deparou com um irmão pobre de rua que lhe disse: “Tenho sede!”. A partir de então, percebeu a clareza da sua missão: dedicar toda a sua vida aos mais pobres dos pobres. E, após um tempo de discernimento, com o auxílio do Arcebispo de Calcutá e da sua madre superiora, saiu da congregação do Loreto para dar início ao trabalho missionário nas ruas de Calcutá. Começou por reunir um grupo de 5 crianças num bairro pobre às quais começou a ensinar numa escola improvisada. Pouco a pouco, o grupo foi crescendo. Dez dias depois, eram cerca de 50 crianças.
O início foi muito desafiante e exigente, mas Deus foi abençoando a obra e começaram as vocações a surgir entre as suas antigas alunas. Em 1949, Madre Teresa começou a escrever as constituições das Missionárias da Caridade e, no dia 7 de outubro de 1950, a congregação fundada por ela foi aprovada pela Santa Sé, expandindo-se por toda a Índia e pelo mundo inteiro, anos mais tarde. Primeiro, teve de demover a convicção de Pio XII quanto à não criação de mais congregações; depois, recebeu o apoio claro e ativo de Paulo VI e de João Paulo II.
Em 1979, foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz e o Papa polaco recebeu-a em audiência privada e tornou-a a sua melhor “embaixadora” em todas as nações, fóruns e assembleias de todo o mundo.
Com saúde debilitada e depois duma vida inteira de amor e doação aos excluídos e abandonados – reconhecida e admirada por líderes doutras religiões, presidentes, universidades e mesmo por alguns países de regime marxista – Teresa foi encontrar-se definitivamente com o Senhor da sua vida e missão no dia 5 de setembro de 1997. A sua despedida atraiu e comoveu milhares de pessoas de todo o mundo durante vários dias, tendo presidido às exéquias solenes em sua homenagem um cardeal enviado especial do Papa.
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Hoje, o Papa Francisco, na homilia da Missa da canonização, comentando a interrogação do livro da Sabedoria, “Qual o homem que conhece os desígnios de Deus?” (Sb 9,13), referiu que a sabedoria nos apresenta “a nossa vida como um mistério, cuja chave de interpretação não está em nós”. Estando Deus dum lado e os homens do outro, “a nossa missão é perceber a chamada de Deus e aceitar a sua vontade”. Mas, para isso, temos de nos interrogar sobre a vontade de Deus a nosso respeito. Por outro lado, o texto sapiencial dá-nos uma pista ao indicar que “os homens foram instruídos no que é do Vosso agrado” (Sb 9,18). Ora, para verificar o sentido da vocação, devemos tentar entender o que Lhe agrada. Neste aspeto, a mensagem dos profetas encontra a síntese na expressão: “Quero a misericórdia, não sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13). Porque aos olhos de Deus todas as obras de misericórdia são agradáveis, pois reconhecemos o rosto de Deus que mais ninguém vê no irmão que ajudamos (cf Jo 1,18). E sempre que nos inclinamos às necessidades do irmão, “damos de comer e beber a Jesus, vestimos, apoiamos e visitamos o Filho de Deus” (cf Mt 25,40), ou seja, tocamos a carne de Cristo. É que estamos chamados a praticar o que pedimos na oração e professamos na fé. Não se encontra alternativa à caridade, pois quem serve os irmãos ama a Deus (cf 1 Jo 3,16-18; Tg 2,14-18). No entanto, a vida cristã não é uma simples ajuda oferecida nos momentos de necessidade. Esta seria certamente “um belo sentimento de solidariedade” a provocar um benefício imediato, mas careceria de raízes. O compromisso que o Senhor pede é o de uma vocação para a caridade em que o discípulo de Cristo põe ao seu serviço a própria vida.
O Evangelho aponta o facto de grandes multidões seguirem Jesus (cf Lc 14,25). Diz o Papa que “a grande multidão” é hoje representada pelo vasto mundo do voluntariado ali reunido por ocasião do Jubileu da Misericórdia e cujo serviço dedicado ao próximo “manifesta a misericórdia do Pai que se faz próximo dos que passam por necessidade”. Seguir Jesus implica “um compromisso sério e alegre; exige a radicalidade e a coragem para reconhecer o Mestre no mais pobre e descartado da vida e colocar-se ao seu serviço. Por isso, os voluntários que servem os últimos e necessitados por amor de Jesus não esperam qualquer agradecimento ou gratificação: ao invés, “renunciam a tudo isso porque encontraram o amor verdadeiro”.
Depois, apresentou Madre Teresa como “dispensadora generosa da misericórdia divina”, disponível a todos “através do acolhimento e defesa da vida humana, dos nascituros e dos abandonados e descartados”, comprometendo-se totalmente “na defesa da vida, proclamando incessantemente que “quem ainda não nasceu é o mais fraco, o menor, o mais miserável”. E prosseguiu o Pontífice:
“Inclinou-se sobre as pessoas indefesas, deixadas moribundas à beira da estrada, reconhecendo a dignidade que Deus lhes dera; fez ouvir a sua voz aos poderosos da terra, para que reconhecessem a sua culpa diante dos crimes – diante dos crimes! – da pobreza criada por eles mesmos. A misericórdia foi para ela o ‘sal’, que dava sabor a todas as suas obras, e a luz que iluminava a escuridão de todos aqueles que nem sequer tinham mais lágrimas para chorar pela sua pobreza e sofrimento.”
Enaltecendo “a sua missão nas periferias das cidades e nas periferias existenciais”, que permanece hoje “como um testemunho eloquente da proximidade de Deus junto dos mais pobres entre os pobres”, Francisco declarou o legado papal:
“Hoje entrego a todo o mundo do voluntariado esta figura emblemática de mulher e de consagrada: que ela seja o vosso modelo de santidade! Parece-me que teremos talvez um pouco de dificuldade em chamá-la Santa Teresa: a sua santidade é tão próxima de nós, tão tenra e fecunda, que espontaneamente continuaremos a chamá-la ‘Madre Teresa’.”  
E fez o seguinte voto e apelo:
“Que esta incansável agente de misericórdia nos ajude a entender mais e mais que o nosso único critério de ação é o amor gratuito, livre de qualquer ideologia e de qualquer vínculo e que é derramado sobre todos sem distinção de língua, cultura, raça ou religião. […]. Levemos no coração o seu sorriso e o ofereçamos a quem encontremos no nosso caminho, especialmente àqueles que sofrem. Assim abriremos horizontes de alegria e de esperança numa humanidade tão desesperançada e necessitada de compreensão e ternura.
E, à recitação do Angelus, a todos os presentes na Praça de São Pedro, de modo particular às Missionárias e Missionários da Caridade que são a família espiritual de Madre Teresa, o Papa rogou: “Que a vossa fundadora vos conceda a graça de permanecerdes sempre fiéis a Deus, à Igreja e aos pobres”. Por fim, recordou os que dedicam a vida ao serviço dos irmãos em contextos difíceis e perigosos, especialmente as Religiosas que se entregam ao serviço dos outros e, de modo particular, a Irmã Isabel que foi assassinada há dois dias no Haiti.

2016.09-04 – Louro de Carvalho

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