Provavelmente muitas pessoas não esperavam que Francisco, depois de
toda a caminhada eclesial e de outras pessoas de boa vontade em torno das
celebrações da canonização de Santa Teresa de Calcutá, viesse na recitação do Angelus
de hoje, 4 de setembro, com a multidão reunida na Praça de São Pedro, a
recomendar, sobretudo ao voluntariado, a prece para que Ela ensine a contemplar,
adorar e servir Jesus Cristo. Contemplar e adorar e servir Jesus Cristo!
Então, e os pobres, os que não são amados podem esperar?
Primeiro, do meu ponto de vista, é necessário reconhecer que ao Papa
assiste a mesma simplicidade discursiva, gestual e factual quando requer uma
Igreja em saída para as periferias existenciais – dos pobres, esquecidos,
doentes, sós e explorados – como quando manda olhar para o centro para
recarregar baterias e contrair o reforço de energias ou prega misericórdia e o cuidado
com a Casa comum de todos, ou ainda quando canoniza um santo ou santa. Tudo se
insere no dever de confirmar os irmãos. Depois, Francisco sabe e tem dito que a
tábua dos critérios de julgamento no fim dos tempos será o dar de comer aos
famintos e de beber aos sequiosos, vestir os nus, acolher os peregrinos, os sem
teto e os refugiados, cuidar dos doentes e visitar os presos, como sabe e tem
dito que fazer tudo isso ou deixar de o fazer ao mínimo dos irmãos é fazê-lo ou
deixar de o fazer ao próprio Jesus. Por isso, proclamou, em dia de canonização
de Teresa de Calcutá, a trilogia da ação cristã perfeita: contemplar, adorar e
servir Cristo Crucificado nos pobres e necessitados. Não se pode viver a
alegria do Ressuscitado se não reconhecermos que Ele pagou por nós morrendo.
Depois, é preciso contemplar o Crucificado e reconhecê-Lo nos outros, sobretudo
nos pobres, doentes e carecidos de outras prerrogativas humanas, como vida,
saúde, liberdade, segurança e conforto. Reconhecendo-O, é preciso servi-Lo. E
só se serve quem se adora!
Credo! Só se adora a Deus – lá diz o livro santo (cf Mt 4,10;
Lc 4,8). Pois, mas o livro santo diz: “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a
Ele prestarás culto”. E que significa adorar? Se adorar significa prestar
culto, só podemos adorar a Deus; mas, se adorar significa aproximar a boca (ad+orare – os
oris significa boca) do rosto de Deus e contemplá-Lo, é preciso adorar
ou contemplar também os pobres, doentes, não amados e necessitados de qualquer
ordem. Se não olharmos para eles com olhos de ver e com afeto, como é que os
serviremos? Ora, a medida desta contemplação, deste amor, desta adoração e
deste serviço é-nos dada por Cristo na Sua entrega por nós na Última Ceia:
Cristo transforma o pão e o vinho no seu Corpo e Sangue, manda-nos comungar para
nos transformarmos em Jesus adorador, servo e pobre. Bento XVI explicita este
sentido na homilia da Missa de encerramento da primeira JMJ que acompanhou em
21 de agosto de 2005, na Alemanha. Dizia o Pontífice alemão:
“Encontro uma alusão muito bela neste novo trecho que
a Última Ceia nos concedeu na aceção diferente que a palavra adoração tem em
grego e em latim. A palavra grega ressoa proskynesis. Significa o
gesto da submissão, o reconhecimento de Deus como a nossa verdadeira medida,
cuja norma aceitamos seguir. Significa que liberdade não quer dizer gozar a
vida, considerar-se absolutamente autónomo, mas orientar-se segundo a medida da
verdade e do bem, para, desta forma, nos tornarmos nós próprios verdadeiros e
bons. Este gesto é necessário, mesmo se a nossa ambição de liberdade num
primeiro momento resiste a esta perspetiva. Fazê-la completamente nossa só será
possível na segunda passagem que a Última Ceia nos apresenta. A palavra latina
para adoração é ad-oratio contacto boca a boca, beijo, abraço
e, por conseguinte, fundamentalmente amor. A submissão torna-se união, porque
Aquele ao qual nos submetemos é Amor. Assim, submissão adquire um sentido,
porque não nos impõe coisas alheias, mas liberta-nos em função da verdade mais
íntima do nosso ser.
***
Em 19 de outubro de 2003, João Paulo II, na homilia da celebração
Eucarística da beatificação de Teresa, apontava-lhe a capacidade de serviço,
radicada no Evangelho. “Quem quiser ser o primeiro entre vós,
faça-se servo de todos” (Mc 10,44) – são palavras
de Jesus que apontam a via que leva à “grandeza” evangélica, via que o Senhor
percorreu até à Cruz. É o seu itinerário de amor e de serviço contrário a
qualquer lógica humana. Teresa
de Calcutá, fundadora dos
Missionários e das Missionárias da Caridade, segundo o Papa polaco, deixou-se
guiar pela lógica do Evangelho. Tornou-se pela coragem o Ícone do Bom Samaritano: “ia
a toda a parte para servir Cristo nos mais pobres entre os pobres”. Para ela, conflitos
e guerras não constituíam impedimento.
Wojtyla considerou “significativo que a sua beatificação” se tenha
realizado no dia que a Igreja celebra como o Dia
Missionário Mundial, pois, com
o testemunho da sua vida, Teresa recordou a todos “que a missão evangelizadora da Igreja
passa através da caridade, alimentada na oração e na escuta da palavra de
Deus”. E chamou a atenção para a índole emblemática duma das imagens da Santa:
com uma das mãos, segura uma criança e, com a outra, desfia o rosário. A santa albanesa e indiana faz a
síntese da vida cristã – contemplação e ação, evangelização e promoção humana.
O brado de
Jesus na cruz, “Tenho sede” (Jo 19,28),
que exprime o desejo que o homem tem de Deus, calou fundo no coração Teresa
tendo ali encontrado “terreno fértil”. Assim se tornou
um imperativo de vida satisfazer a sede que Jesus tem de amor e de almas,
em união com Maria, Sua Mãe – o que induzia a Madre a “ir depressa” dum lado a
outro do mundo, para se “comprometer pela salvação e santificação dos mais
pobres”.
“Sempre
que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes” (Mt 25,40).
Este segmento do Evangelho, tão fundamental para compreender o serviço de
Teresa aos pobres, estava na base da sua convicção de fé de que, “ao tocar os corpos enfraquecidos
dos pobres, tocava o corpo de
Cristo”, destinando o seu serviço ao próprio Jesus, oculto sob as angustiantes
vestes dos mais pobres. A sua personalidade configura o significado mais profundo
do serviço: gesto de amor prestado aos famintos, sequiosos, estrangeiros, nus
ou rotos, doentes, presos (cf Mt 25, 34-36) é feito a Cristo. Ao reconhecê-Lo,
servia-O devota e devotadamente e exprimia a delicadeza do seu amor esponsal a
Cristo. E, no dom total de si a Deus e ao próximo, encontrou a sua satisfação
mais nobre e viveu as
qualidades mais elevadas da sua feminilidade.
No momento da
recitação do Angelus, João Paulo II indicou
Maria Santíssima fora sempre o modelo de Santa Teresa de Calcutá.
***
Agnes Gonxha Bojaxhiu nasceu a 27 de agosto de 1910 em
Skopje, na Albânia, e foi batizada um dia depois do nascimento. A família
pertencia à minoria albanesa que vivia no sul da antiga Jugoslávia. Pouco se
sabe da infância, adolescência e juventude da Santa, já que não gostava de falar
de si mesma. Aos 18 anos, sentiu-se chamada à consagração total a Deus na vida
religiosa. Obtido o consentimento dos pais e por indicação do sacerdote que a
orientava, no dia 29 de setembro de 1928, ingressou na Casa Mãe das Irmãs de Nossa Senhora de Loreto, na
Irlanda.
Não obstante, o seu sonho era o trabalho missionário
com os pobres na Índia. Cientes disso, as superioras enviaram-na para fazer o
noviciado já no campo do apostolado. Agnes partiu para a Índia e, a 24 de maio
de 1931, fez a profissão religiosa escolhendo o nome de Teresa com a intenção
de se parecer com Teresa do Menino Jesus, a humilde carmelita de Lisieux,
dedicada pela oração às Missões. Transferida para Calcutá, seguiu a carreira
docente, cercada de meninas filhas das famílias mais tradicionais de Calcutá.
Porém, impressionava-se com o que via ao sair às ruas: os bairros pobres da
cidade cheios de mulheres, crianças e idosos – marcados de miséria, fome e
inúmeras doenças.
Neste contexto, o 10 de setembro de 1946 ficou marcado
como o “Dia da Inspiração” na
história das Missionárias da Caridade
– congregação fundada por Madre Teresa. Teresa, durante uma viagem de comboio
ao noviciado do Himalaia, deparou com um irmão pobre de rua que lhe disse: “Tenho sede!”. A partir de então,
percebeu a clareza da sua missão: dedicar
toda a sua vida aos mais pobres dos pobres. E, após um tempo de
discernimento, com o auxílio do Arcebispo de Calcutá e da sua madre superiora,
saiu da congregação do Loreto para dar início ao trabalho missionário nas ruas
de Calcutá. Começou por reunir um grupo de 5 crianças num bairro pobre às quais
começou a ensinar numa escola improvisada. Pouco a pouco, o grupo foi
crescendo. Dez dias depois, eram cerca de 50 crianças.
O início foi muito desafiante e exigente, mas Deus foi
abençoando a obra e começaram as vocações a surgir entre as suas antigas
alunas. Em 1949, Madre Teresa começou a escrever as constituições das Missionárias da Caridade e, no dia 7 de
outubro de 1950, a congregação fundada por ela foi aprovada pela Santa Sé,
expandindo-se por toda a Índia e pelo mundo inteiro, anos mais tarde. Primeiro,
teve de demover a convicção de Pio XII quanto à não criação de mais congregações;
depois, recebeu o apoio claro e ativo de Paulo VI e de João Paulo II.
Em 1979, foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz e o
Papa polaco recebeu-a em audiência privada e tornou-a a sua melhor “embaixadora”
em todas as nações, fóruns e assembleias de todo o mundo.
Com saúde debilitada e depois duma vida inteira de
amor e doação aos excluídos e abandonados – reconhecida e admirada por líderes
doutras religiões, presidentes, universidades e mesmo por alguns países de regime
marxista – Teresa foi encontrar-se definitivamente com o Senhor da sua vida e
missão no dia 5 de setembro de 1997. A sua despedida atraiu e comoveu milhares
de pessoas de todo o mundo durante vários dias, tendo presidido às exéquias
solenes em sua homenagem um cardeal enviado especial do Papa.
***
Hoje, o Papa
Francisco, na homilia da Missa da canonização, comentando a interrogação do
livro da Sabedoria, “Qual o homem que
conhece os desígnios de Deus?” (Sb 9,13), referiu que a sabedoria nos apresenta “a nossa vida
como um mistério, cuja chave de interpretação não está em nós”. Estando Deus dum
lado e os homens do outro, “a nossa missão é perceber a chamada de Deus e
aceitar a sua vontade”. Mas, para isso, temos de nos interrogar sobre a vontade
de Deus a nosso respeito. Por outro lado, o texto sapiencial dá-nos uma pista ao
indicar que “os homens foram instruídos
no que é do Vosso agrado” (Sb 9,18). Ora,
para verificar o sentido da vocação, devemos tentar entender o que Lhe agrada.
Neste aspeto, a mensagem dos profetas encontra a síntese na expressão: “Quero a misericórdia, não sacrifício” (Os 6,6; Mt 9,13). Porque aos olhos de Deus todas as
obras de misericórdia são agradáveis, pois reconhecemos o rosto de Deus que mais
ninguém vê no irmão que ajudamos (cf Jo 1,18). E sempre que nos inclinamos às necessidades
do irmão, “damos de comer e beber a Jesus, vestimos, apoiamos e visitamos o
Filho de Deus” (cf Mt 25,40), ou seja, tocamos a carne de
Cristo. É que estamos chamados a praticar o que pedimos na oração e professamos
na fé. Não se encontra alternativa à caridade, pois quem serve os irmãos ama a
Deus (cf 1 Jo 3,16-18; Tg 2,14-18). No entanto, a vida cristã não é uma simples ajuda
oferecida nos momentos de necessidade. Esta seria certamente “um belo sentimento
de solidariedade” a provocar um benefício imediato, mas careceria de raízes. O
compromisso que o Senhor pede é o de uma vocação
para a caridade em que o
discípulo de Cristo põe ao seu serviço a própria vida.
O Evangelho aponta
o facto de grandes multidões seguirem Jesus (cf Lc 14,25). Diz o Papa que “a grande multidão”
é hoje representada pelo vasto mundo do voluntariado ali reunido por ocasião do
Jubileu da Misericórdia e cujo serviço dedicado ao próximo “manifesta a
misericórdia do Pai que se faz próximo dos que passam por necessidade”. Seguir
Jesus implica “um compromisso sério e alegre; exige a radicalidade e a coragem
para reconhecer o Mestre no mais pobre e descartado da vida e colocar-se ao seu
serviço. Por isso, os voluntários que servem os últimos e necessitados por amor
de Jesus não esperam qualquer agradecimento ou gratificação: ao invés, “renunciam
a tudo isso porque encontraram o amor verdadeiro”.
Depois, apresentou
Madre Teresa como “dispensadora generosa da misericórdia divina”, disponível a
todos “através do acolhimento e defesa da vida humana, dos nascituros e dos
abandonados e descartados”, comprometendo-se totalmente “na defesa da vida, proclamando
incessantemente que “quem ainda não
nasceu é o mais fraco, o menor, o mais miserável”. E prosseguiu o
Pontífice:
“Inclinou-se sobre as pessoas
indefesas, deixadas moribundas à beira da estrada, reconhecendo a dignidade que
Deus lhes dera; fez ouvir a sua voz aos poderosos da terra, para que
reconhecessem a sua culpa diante dos crimes – diante dos crimes! – da pobreza
criada por eles mesmos. A misericórdia
foi para ela o ‘sal’, que dava sabor a todas as suas obras, e a luz que
iluminava a escuridão de todos aqueles que nem sequer tinham mais lágrimas para
chorar pela sua pobreza e sofrimento.”
Enaltecendo
“a sua missão nas periferias das cidades e nas periferias existenciais”, que
permanece hoje “como um testemunho eloquente da proximidade de Deus junto dos
mais pobres entre os pobres”, Francisco declarou o legado papal:
“Hoje entrego a todo o mundo do voluntariado esta figura emblemática de
mulher e de consagrada: que ela seja o vosso modelo de santidade! Parece-me que
teremos talvez um pouco de dificuldade em chamá-la Santa Teresa: a sua
santidade é tão próxima de nós, tão tenra e fecunda, que espontaneamente
continuaremos a chamá-la ‘Madre Teresa’.”
E fez o seguinte
voto e apelo:
“Que esta incansável agente de
misericórdia nos ajude a entender mais e mais que o nosso único critério de
ação é o amor gratuito, livre de qualquer ideologia e de qualquer vínculo e que
é derramado sobre todos sem distinção de língua, cultura, raça ou religião. […].
Levemos no coração o seu sorriso e o
ofereçamos a quem encontremos no nosso caminho, especialmente àqueles que
sofrem. Assim abriremos horizontes de alegria e de esperança numa humanidade
tão desesperançada e necessitada de compreensão e ternura.”
E, à recitação do Angelus,
a todos os presentes na Praça de São Pedro, de modo particular às Missionárias e Missionários da Caridade
que são a família espiritual de Madre Teresa, o Papa rogou: “Que a vossa fundadora vos conceda a graça de
permanecerdes sempre fiéis a Deus, à Igreja e aos pobres”. Por fim, recordou
os que dedicam a vida ao serviço dos irmãos em contextos difíceis e perigosos,
especialmente as Religiosas que se entregam ao serviço dos outros e, de modo
particular, a Irmã Isabel que foi assassinada há dois dias no Haiti.
2016.09-04 – Louro de Carvalho
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