É um forte enunciado doutrinal e um sério aviso que o Papa
Francisco deixa aos cerca de 170 bispos nomeados durante o último ano, que se
encontraram com ele no fim da manhã do passado dia 16, no âmbito de um encontro
de formação para o ministério episcopal promovido pela Congregação para os
Bispos e pela Congregação para as Igrejas Orientais.
Na sua alocução, o Pontífice tocou várias vertentes da
doutrina que parece querer guindar a critérios de espiritualidade e de ação
pastoral. E o próprio aviso enunciado em epígrafe se inscreve nesse quadro. Com
efeito, pode existir a tentação de o cristão e sobretudo o Pastor se
considerarem protagonistas da caridade e da misericórdia. Havia até um bispo
que se definia como profissional da caridade.
Como sabemos das Escrituras, é Deus que toma a iniciativa do
amor (cf 1Jo 4,19). Por isso, o Papa, ao estimular os
bispos ao amor de Deus e do próximo, afirma que Deus os precede (vai à frente deles) no seu amoroso conhecimento. Assim,
os Pastores foram pescados pelo coração de Deus para serem guias do Seu Povo
santo. Pescou-os Deus, na sua admirável condescendência, com o anzol da
surpreendente e infinita misericórdia divina cujas redes se foram apertando
misteriosamente e os “pescados” nada mais puderam fazer que deixar-se capturar.
Quanto à misericórdia, só Deus é capaz de fazer a
misericórdia de que o mundo precisa. Só Ele é o autor e o verdadeiro promotor
da misericórdia. Só Ele é a Misericórdia. E Cristo, como perfeito autorretrato
visível do Deus invisível, é o rosto visível do coração misericordioso do Pai.
Cabe ao crente o múnus da misericórdia, como o do amor, em primeiro lugar, como
imitação ou réplica para com o próximo e, por outro lado, como resposta ao amor
e misericórdia de Deus para connosco.
No contexto do Ano da Misericórdia, Francisco sugere aos
bispos a travessia do coração de Cristo, a verdadeira Porta da Misericórdia,
vivendo “intensamente uma experiência pessoal de gratidão, reconciliação,
confiança total, entrega sem reservas da própria vida ao Pastor dos Pastores”,
colocando “o vosso olhar no seu olhar” e deixando que “Ele vos toque miserando
atque elegendo”. Depois, assegurando que “a mais
preciosa riqueza que podem levar de Roma” no início do ministério episcopal é
“a consciência da misericórdia” com que foram “olhados e escolhidos”,
pediu-lhes que não deixem enferrujar o tesouro da certeza de que não ficam
entregues unicamente às próprias forças:
“Sois
bispos da Igreja, participantes dum único Episcopado, membros dum indivisível
Colégio, solidamente enxertados como humildes sarmentos na videira, sem a qual
nada podeis fazer (cf Jo 15,48). E, já que, doravante não podeis andar sós em
parte algum, porque trazeis convosco a Esposa que vos foi confiada como um selo
impresso na vossa alma, ao atravessardes a Porta santa, fazei-o carregando aos
ombros o vosso rebanho, não sós, mas com o rebanho aos ombros e levando no
coração o coração da vossa Esposa, a vossa Igreja.”
***
Francisco, desenvolvendo o tema do calafrio que eles sentiram
ao serem chamados à voz da Esposa, refere que tal calafrio o sentiram outras
personagens na História da Salvação.
Para ilustrar tal asserção, citou o exemplo de Moisés, que
pensava estar sozinho no deserto e se descobriu achado e atraído por Deus, que “lhe
confiou o seu Nome, não para ele, mas para o Seu povo”, continuando hoje a subir
a Deus o grito de dor do povo. Desta vez, o nome que Deus pronunciou é o destes
bispos. O mesmo calafrio sentiu-o Natanael, que avistado ainda debaixo da
figueira, com admiração se vê sob o olhar e a escolha dos céus; sentiu-o a
samaritana, conhecida pelo Mestre no poço de Jacob, que chamou os conterrâneos
para Aquele que possui a Água Viva. E atravessados por tal calafrio ficaram os
apóstolos quando, revelados os pensamentos do seu coração, descobriram o acesso
ao secreto caminho de Deus, que habita nos pequenos e se esconde de quem se
basta a si próprio. Porém, os bispos não podem sentir vergonha de alguma vez se
terem situado longe dos pensamentos Deus, mas devem abandonar a pretensão de
autossuficiência para se entregarem como crianças Àquele que revela o Reino aos
pequeninos. E, sabendo como a vida de tantos se encontra privada desta via de
acesso ao Alto, devem sentir-se olhados de longe para os guiarem para a meta,
sem desfalecimento nem ficando a meio do caminho. Por outro lado, sabem que não
precisam de correr de mar para mar, dado que a Palavra de que as pessoas têm
fome e sede a podem encontrar nos lábios dos Pastores.
Também os fariseus – diz o Papa – se sentiram acossados pelo
dito calafrio, quando foram desmascarados pelo Senhor ao pretenderem medir o
poder de Deus com a estreiteza do próprio olhar e ao blasfemarem murmurando
contra a soberana liberdade do amor salvífico. Contra tentações deste género,
incluindo a domesticação de tal calafrio, tornando-o vão, silenciado ou
inexistente, o Pontífice recomenda a destabilização pessoal do bispo.
É, pois, necessário deixar-se trespassar pelo conhecimento
amoroso de Deus, que sabe quem somos, sem se espantar com a nossa pequenez.
Porém, em vez de construirmos personagens, máscaras e perfis ou tentarmos o protagonismo
pessoal, devemos abandonar-nos à certeza de que será Ele a completar o que Ele
próprio iniciou.
***
Não é fácil
o mister de tornar pastoral a misericórdia, que deve ser implorado a Deus, “rico
em misericórdia”. Todavia, é imperioso que a misericórdia forme e enforme as
estruturas pastorais das Igrejas, não a troco de quebra das exigências ou de
desbarato de pérolas doutrinais e espirituais. A única condição a colocar é
suscitar no coração de quem busca e encontra a pérola do Reino sinta a
necessidade se esforçar por inteiro pela sua posse.
O Papa
deseja que os bispos não tenham receio de “propor a Misericórdia como síntese
de tudo quanto Deus oferece ao mundo”, pois “a mais nada pode aspirar o coração
humano”. Com efeito, é nossa missão “amolecer o que é rígido, aquecer o que é
frio, endireitar o que está torto” ou, por outras palavras, demolir os muros,
construir pontes e rasgar caminhos, suscitar doçura e conforto na solidão e no abandono. E, citando o seu venerado e sábio predecessor, Bento XVI, Francisco
também ensina que “é a misericórdia que põe um limite ao mal”, sendo que “é
nela que se exprime toda a natureza peculiar de Deus – a santidade, o poder da
verdade e do amor”.
Assim,
tornar pastoral a misericórdia é fazer das Igrejas casas que alberguem a
santidade, a verdade e o amor – como hóspedes vindos do Alto de quem não
podemos apoderar-nos, mas a quem devemos servir e pedir como Abraão: “Não passes adiante sem parares na casa do
Vosso servo” (Gn 18,3).
***
Para tornar
pastoral a misericórdia – ou seja, para que ela pelo ministério episcopal se
torne acessível, tangível e encontrável – o Bispo dos bispos enuncia três
requisitos:
Primeiro, os bispos devem ser capazes de encantar e atrair,
mas sem seduzir o coração dos homens para eles mesmos, pois o mundo está cansado
de ‘encantadores mentirosos’ e as pessoas bem topam os narcisistas, manipuladores,
defensores de seus interesses. Depois, devem capacitar-se para “iniciar no
abismo do amor os que lhes foram confiados’. Nestes termos:
“A sua
única perspetiva seja ver os seus fiéis em sua unicidade, fazendo tudo para
chegar até eles e não poupar nenhum esforço para os recuperar. Pensem na
emergência educativa, na transmissão de conteúdos e valores, no analfabetismo
afetivo, nos caminhos vocacionais, no discernimento nas famílias, na busca da
paz. Tudo isso requer iniciação e percursos guiados com perseverança, paciência
e constância, que são os sinais que distinguem o bom pastor de um mercenário”.
Recomenda ainda aos novos bispos que mantenham a sua
intimidade com Deus e cuidem com atenção especial das estruturas de iniciação
das Igrejas, especialmente dos seminários:
“Não se
deixem tentar pelos números e pela quantidade das vocações, mas procurem a
qualidade; não privem os seminaristas da firme e carinhosa paternidade; façam-nos
crescer até que se sintam ‘tranquilos como crianças nos braços de suas mães’,
livres de acatar o desejo de Deus, mesmo quando não lhes parece doce como estar
no ventre materno”.
Por fim, o Papa apontou uma terceira e última consideração
para tornar pastoral a Misericórdia: o verbo ‘acompanhar’. “Acompanhar
primeiramente, com paciência, solicitude e alegria, o clero, tentando reavivar
nos sacerdotes a consciência de que Cristo é a ‘sua parte e fonte de herança’”;
e “acompanhar, com prudência e responsabilidade, o acolhimento de candidatos à
incardinação nas suas Igrejas, uma vez que “a relação ente uma Igreja local e os
seus sacerdotes é incindível, não se aceita o ‘clero vagante’, que transita dum
lugar para outro”. A pari, vem o adequado
acompanhamento, alegre e assíduo de todas as famílias, principalmente as mais
feridas, sem ‘passar além’ das suas fragilidades: “Aproximai-vos sem medo, fazei-lhes companhia no discernimento e com
empatia” – recomendou.
***
E o Bispo de
Roma – apontando-lhes, como arquétipo da prática da misericórdia, a parábola do
bom samaritano, que se faz próximo do ferido (seja ele quem for), o vê, trata, transporta e manda cuidar – exorta os
novos bispos a colocarem diante dos olhos a alegria do amor autêntico e da
graça com que Deus eleva cada um à participação do próprio Amor. Diz o Pontífice:
“Tantos têm necessidade de a descobrir, outros já não a conhecem, alguns
esperam resgatá-la e não poucos deverão carregar sobre si o peso de a terem
irremediavelmente perdida”.
De todos é
preciso aproximarem-se com solicitude alegre, discernente e empática.
A alocução aos novos bispos terminou com a oração em conjunto
e com a bênção de Francisco do fundo do seu coração “de pastor, de pai e de irmão”.
Explicitando que a bênção é sempre “invocação do rosto de Deus sobre nós”,
sublinhou que Jesus Cristo é o rosto de Deus, embora por vezes obnubilado. E,
ao dar a bênção papal, prometeu rogar a Deus que caminhe com estes novos bispos
e lhes “dê a coragem de caminharem com Ele”, visto que “é o seu rosto que nos
atrai, se imprime em nós e nos acompanha”.
***
Porque pode pensar-se que doutrina e recomendações aos bispos
é exclusivamente para eles, quando muitos de nós podemos e devemos aproveitar
bem estes ensinamentos, aqui fica uma periclitante súmula, feita a partir do texto
italiano, embora com outro tipo de considerações. Por outro lado, há que
salientar a importância destes encontros de formação dos novos bispos,
promovidos pelos competentes dicastérios romanos – o que significa que não são
simplesmente mandados como cordeiros para o meio de lobos, mas revestidos da
Graça e da Misericórdia e de alguns recursos humanos, dando-se-lhes o que se
pode.
Prosit!
2016.09.18 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário