sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Por ocasião da Festa da Natividade de Santa Maria Mãe de Deus

São vários os títulos por que se invoca Nossa Senhora no dia 8 de setembro. Entre os diversos títulos, devo destacar, por exemplo, o singelo título de Santa Maria, padroeira da vila e freguesia de Santa Maria de Lamas, do concelho de Santa Maria da Feira, que hoje homenageia a humilde serva de Deus que disse o “Sim” da viabilização em concreto da Encarnação do Verbo Divino; e o de Nossa Senhora dos Remédios, na vetusta e venusta cidade de Lamego, hoje uma só freguesia, do concelho de Lamego.
Em Santa Maria de Lamas, a festa é precedida de tríduo preparatório e a solene celebração Eucarística e a majestosa procissão revestem-se de beleza e esplendor. Em Lamego, a festa é precedida de novena preparatória, a solene celebração Eucarística tem, nos últimos anos, sido presidida pelo bispo diocesano, que profere um sermão cheio de ensinamentos marianos, com suporte bíblico e histórico conducentes a Jesus por Maria e de Jesus às pessoas e ao povo também por Maria. Depois, a horas vespertinas, desfila a majestosa procissão de triunfo, que sai da Igreja das Chagas (para onde é transportada processionalmente a imagem da Senhora desde o seu Santuário, no dia 6), percorrendo algumas das principais ruas da cidade, e termina na Igreja de Santa Cruz. Nela, os andores, que ostentam imagens sagradas, postos em cima de carros de agricultor, são puxados por juntas de bois, como manda o uso vigente, estabelecido por autorização da Santa Sé. Nesta altura, as ruas ficam ricamente ornamentadas, ganhando uma nova dinâmica, onde a componente religiosa adquire toda a sua plenitude.
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Porém, para lá dos títulos, o que está em jogo litúrgico e santoral é a festa da Natividade (Nascimento) de Maria. A origem desta festa mariana remonta à dedicação de uma igreja em Jerusalém. A liturgia e piedade cristã sempre veneraram pessoas e acontecimentos que prepararam a vinda de Nosso Senhor e/ou a ela correspondem de modo eminente. Maria ocupa um lugar privilegiado na economia da Salvação e o seu nascimento é motivo de imensa alegria.
Na predita Igreja, com o título de basílica que, no século XII, se converteria na Igreja de Santa Ana – situada sobre o local da Piscina Probática, onde Jesus curara o paralítico (cf Jo 5,1-9) e onde tradição, atestada por alguns apócrifos, situava a casa de Joaquim e de Ana – São João Damasceno saudou a virgem Menina: “Salve, santuário divino na Mãe de Deus... Salve, Maria, dulcíssima filha de Ana”. E, embora o Novo Testamento não forneça dados diretos da vida da Virgem Maria, uma tradição oriental venera o seu nascimento desde meados do século V, fixando-o no local da atual Basílica de Santa Ana, em Jerusalém. A festa passou para Roma no século VII sob aprovação do Papa Sérgio I. Não se conhece uma data do nascimento de Maria, mas a sua celebração serviu de pretexto para que a celebração da solenidade da Imaculada Conceição fosse celebrada no dia 8 de dezembro (9 meses antes). O Papa São Pio X retirou esta festividade do elenco dos dias de preceito.
Na verdade, não existe em parte alguma da Bíblia a preocupação em saber o dia em que Maria nasceu. Mas a data em si não é relevante.  O que importa é festejar a “natividade” de Maria, que segue outra lógica. Integra a constelação de celebrações, colocadas no ciclo de um ano litúrgico, harmonicamente distribuídas, de tal modo que se relacionam entre si coerentemente. Assim faz a liturgia. Se coloca o nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro, põe o nascimento de João Batista no dia 24 de junho, 6 meses antes, de acordo com o Evangelho de Lucas (vd Lc 1,26.56).
As datas ancoram-se no Evangelho como seu fundamento, mas repartem-se no calendário de acordo com a providência da fé, que as recorda e as insere no quotidiano da vida. Desta sorte, se colocamos a solenidade da “Imaculada Conceição” no dia 8 de dezembro, é coerente que o nascimento de Maria seja celebrado no dia 8 de setembro, ou seja, 9 meses do 8 de dezembro. Assim, fica assinalado o facto normal do nascimento como para qualquer pessoa humana. Todavia, ele fica ressaltado pelo testemunho do Evangelho, que garante que Maria foi e é a “cheia de graça” (cf Lc 1,28), assegurando a convicção da sua conceção imaculada.
Depois, estas celebrações marianas, cada qual com seu valor e sua intenção específica, mostram o mais importante: o mistério de Cristo, que ilumina toda a realidade e toda a história, que é vivida ciclicamente em cada ano que passa. É essa luz de Cristo, “o sol nascente”, que ilumina toda a humanidade, graças ao coração misericordioso do nosso Deus (cf Lc 1,78-79).  E, como a lua reflete a luz do sol e a torna mais humana e amena, Maria reflete em Si e projeta para nós, a mesma luz de Cristo, em que podemos reconhecer a nossa própria vida, antecipando e acompanhando assim o ser e a missão da Igreja, reflexo visível e atuante de Cristo entre os homens.
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A predita saudação do Damasceno insere-se numa sua homilia em honra da natividade da Mãe de Deus, que é um grande panegírico da glória de Maria, por dela ter nascido o Salvador, com expressões que parecem ter sido proferidas em estado de êxtase. Evocando dados do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Epístolas, da tradição oral, de outros teólogos e da própria liturgia bizantina, o eminente Doutor da Igreja revisita a importância do nascimento de Maria para a salvação e para a Igreja, louvando “en passant” os seus pais, Joaquim e Ana. Um ponto muito importante: chama e afirma – é dos primeiros a fazê-lo – “Imaculada” a Maria.
Sem deixar de fazer todo o desfio das tipologias de Maria presentes no Antigo Testamento, o Damasceno louva Nossa Senhora como poucos o fizeram, fornecendo a base patrística para muitas das afirmações acerca de Maria e do seu lugar no mistério da Redenção do homem que vieram a fixar-se mais tarde. Foi enorme a sua influência na época medieval e a intuição de base do Dogma da Assunção Corporal de Nossa Senhora ao céu está já presente na obra do Damasceno. Por isso é que cognominado como o Doctor Asumptionis.
O Doutor Damasceno lança o convite a “todas as nações” e aos “homens de todas as raças, línguas e idades, de todas as condições” a celebrarem com alegria “a natividade da Alegria do mundo inteiro”. E argumenta:
“Se os gregos destacavam com todo o tipo de honras – com os dons que cada um podia oferecer – o aniversário das divindades, impostas aos espíritos por mitos mentirosos que obscureciam a verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem o flagelo de toda a existência, que deveríamos nós fazer para honrar o aniversário da Mãe de Deus, por quem toda a raça mortal foi transformada, por quem o castigo de Eva, nossa primeira mãe, foi mudada em alegria?”
E infere:
“Com efeito, uma ouviu a sentença divina: ‘Darás à luz no meio de penas’ (Gn 3,16b); a outra ouviu, por seu turno: ‘Alegra-te, ó Cheia de Graça’ (Lc 1,28). À primeira disse-se: ‘Inclinar-te-ás para o teu marido’ (Gn 3,16a), mas à segunda: ‘O Senhor está contigo’ (Lc 1,28). Que homenagem ofereceremos então nós à Mãe do Verbo, senão outra palavra? Que a criação inteira se alegre e festeje, e cante a natividade de uma santa mulher, porque ela gerou para o mundo um tesouro imperecível de bondade, e porque por ela o Criador mudou toda a natureza num estado melhor, pela mediação da humanidade. Porque se o homem, que ocupa o meio entre o espírito e a matéria, é o laço de toda a criação, visível e invisível, o Verbo criador de Deus, ao unir-se à natureza humana, uniu-se através dela a toda a criação.”
Fontes: Agnus Dei, Diocese de Jales e Fátima.com
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Santo André de Creta, monge e bispo do século VIII, no Sermão 1 para a Natividade da Mãe de Deus (PG 97, 812-816), chama a Maria, primícias da nova criação. Diz o santo bispo:
“No princípio, o homem foi formado de uma terra pura e sem mancha (cf Gn 2,7); mas a sua natureza viu-se privada da dignidade inata, logo que foi despojada da graça pela queda da desobediência e afastada do país da vida. Em vez do paraíso de delícias, já não tinha senão uma vida corrutível a transmitir-nos como património hereditário uma vida da qual decorreria, como consequência, a morte e a corrupção da raça. Preferimos o mundo daqui de baixo ao mundo do alto. Não restava qualquer esperança de salvação; a situação da nossa natureza apelava ao socorro do céu. Não havia lei que pudesse curar a nossa enfermidade. [...] Finalmente, em seu beneplácito, o Artífice Divino do Universo decidiu fazer surgir um mundo novo, cheio de harmonia e juventude, do qual seria repelido o contágio do pecado e da morte, sua companheira. Ser-nos-ia oferecida uma vida totalmente nova, livre e resgatada, e encontraríamos no batismo um novo nascimento, todo divino. [...]
“E como levar a cabo este desígnio? Não convinha que uma virgem puríssima e sem mancha se colocasse primeiramente ao serviço deste plano misterioso e se tornasse grávida do Ser Infinito, de um modo que transcendesse as leis naturais? [...] Tal como, no paraíso, o Criador tinha tirado da terra virgem e sem mancha um pouco de barro para modelar o primeiro Adão, assim também no momento de realizar a sua própria Encarnação Se serviu duma outra terra, por assim dizer, a desta Virgem pura e imaculada, escolhida entre todas as criaturas. Foi nela que nos restabeleceu de novo a partir da nossa própria substância e Se tornou um novo Adão, Ele, que fora o Criador de Adão, a fim de que o antigo fosse salvo pelo novo, que é eterno.”
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Por Maria, com Maria e em Maria, realiza-se o protoevangelho dos primórdios da história da Salvação, que mostra como Deus não abandona o homem ao seu pecado:
“Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.” (Gn 3,15).
Nesta descendência, vemos em primeiro lugar Cristo e a Igreja que entronca no lado aberto de Cristo; e, de modo eminente, Maria como mãe do Senhor, protótipo e mãe dos discípulos do Senhor – a Igreja.
Na verdade, “associada, na descendência de Adão, a todos os homens necessitados de salvação (LG 53), Maria, pelo dom da maternidade divina, está imensamente acima de todos os filhos de Adão. Realizando Nela, com o seu poder e graça, a obra maravilhosa da Encarnação do Filho de Deus, o Espírito Santo insere, por nós, homens e para nossa salvação, a Virgem Santa Maria na ordem de comunicação pessoal com a Divindade. E Ela dá-nos a mão para que nos coloquemos no caminho para o Pai, que nos faz entrar no mistério da comunhão trinitária. E esse caminho é Jesus. É contemplando assim o ser e a missão da mãe de Jesus que Eadmero, no século XII, diz a Maria: “Acima de Ti, só Deus; abaixo de Ti, tudo quanto não é Deus”.

2016.09.08 – Louro de Carvalho

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