São vários os
títulos por que se invoca Nossa Senhora no dia 8 de setembro. Entre os diversos
títulos, devo destacar, por exemplo, o singelo título de Santa Maria, padroeira da vila e freguesia de Santa Maria de Lamas,
do concelho de Santa Maria da Feira, que hoje homenageia a humilde serva de
Deus que disse o “Sim” da viabilização em concreto da Encarnação do Verbo
Divino; e o de Nossa Senhora dos Remédios,
na vetusta e venusta cidade de Lamego, hoje uma só freguesia, do concelho de
Lamego.
Em Santa
Maria de Lamas, a festa é precedida de tríduo preparatório e a solene
celebração Eucarística e a majestosa procissão revestem-se de beleza e
esplendor. Em Lamego, a festa é precedida de novena preparatória, a solene
celebração Eucarística tem, nos últimos anos, sido presidida pelo bispo
diocesano, que profere um sermão cheio de ensinamentos marianos, com suporte
bíblico e histórico conducentes a Jesus por Maria e de Jesus às pessoas e ao
povo também por Maria. Depois, a horas vespertinas, desfila a majestosa
procissão de triunfo, que sai da Igreja das
Chagas (para onde é transportada processionalmente a imagem da Senhora desde o
seu Santuário, no dia 6), percorrendo algumas das principais ruas da cidade, e
termina na Igreja de Santa Cruz. Nela, os andores, que ostentam imagens
sagradas, postos em cima de carros de agricultor, são puxados por juntas de
bois, como manda o uso vigente, estabelecido por autorização da Santa Sé. Nesta
altura, as ruas ficam ricamente ornamentadas, ganhando uma nova dinâmica, onde
a componente religiosa adquire toda a sua plenitude.
***
Porém, para
lá dos títulos, o que está em jogo litúrgico e santoral é a festa da Natividade
(Nascimento) de Maria. A origem desta festa
mariana remonta à dedicação de uma igreja em Jerusalém. A liturgia e piedade
cristã sempre veneraram pessoas e acontecimentos que prepararam a vinda de
Nosso Senhor e/ou a ela correspondem de modo eminente. Maria ocupa um lugar
privilegiado na economia da Salvação e o seu nascimento é motivo de imensa
alegria.
Na predita
Igreja, com o título de basílica que, no século XII, se converteria na Igreja
de Santa Ana – situada sobre o local da Piscina Probática, onde Jesus curara o
paralítico (cf Jo 5,1-9) e onde tradição, atestada por
alguns apócrifos, situava a casa de Joaquim e de Ana – São João Damasceno saudou
a virgem Menina: “Salve, santuário divino
na Mãe de Deus... Salve, Maria, dulcíssima filha de Ana”. E, embora o Novo
Testamento não forneça dados diretos da vida da Virgem Maria, uma tradição
oriental venera o seu nascimento desde meados do século V, fixando-o no local
da atual Basílica de Santa Ana, em Jerusalém. A festa passou para Roma no
século VII sob aprovação do Papa Sérgio I. Não se conhece uma data do
nascimento de Maria, mas a sua celebração serviu de pretexto para que a
celebração da solenidade da Imaculada Conceição fosse celebrada no dia 8 de
dezembro (9 meses antes). O Papa São Pio X retirou esta
festividade do elenco dos dias de preceito.
Na verdade, não existe em parte alguma da Bíblia a
preocupação em saber o dia em que Maria nasceu. Mas a data em si não é
relevante. O que importa é festejar a “natividade” de Maria, que segue
outra lógica. Integra a constelação de celebrações, colocadas no ciclo de um
ano litúrgico, harmonicamente distribuídas, de tal modo que se relacionam entre
si coerentemente. Assim faz a liturgia. Se coloca o nascimento de Jesus no dia
25 de dezembro, põe o nascimento de João Batista no dia 24 de junho, 6 meses
antes, de acordo com o Evangelho de Lucas (vd Lc 1,26.56).
As datas ancoram-se
no Evangelho como seu fundamento, mas repartem-se no calendário de acordo com a
providência da fé, que as recorda e as insere no quotidiano da vida. Desta
sorte, se colocamos a solenidade da “Imaculada Conceição” no dia 8 de dezembro,
é coerente que o nascimento de Maria seja celebrado no dia 8 de setembro, ou
seja, 9 meses do 8 de dezembro. Assim, fica assinalado o facto normal do
nascimento como para qualquer pessoa humana. Todavia, ele fica ressaltado pelo testemunho
do Evangelho, que garante que Maria foi e é a “cheia de graça” (cf Lc 1,28), assegurando a convicção da sua
conceção imaculada.
Depois, estas
celebrações marianas, cada qual com seu valor e sua intenção específica,
mostram o mais importante: o mistério de Cristo, que ilumina toda a realidade e
toda a história, que é vivida ciclicamente em cada ano que passa. É essa luz de
Cristo, “o sol nascente”, que ilumina toda a humanidade, graças ao coração
misericordioso do nosso Deus (cf Lc 1,78-79).
E, como a lua reflete a luz do sol e a torna mais humana e amena, Maria reflete
em Si e projeta para nós, a mesma luz de Cristo, em que podemos reconhecer a nossa
própria vida, antecipando e acompanhando assim o ser e a missão da Igreja,
reflexo visível e atuante de Cristo entre os homens.
***
A predita saudação do Damasceno insere-se numa sua homilia em honra
da natividade da Mãe de Deus, que é um grande panegírico da glória de Maria,
por dela ter nascido o Salvador, com expressões que parecem ter sido proferidas
em estado de êxtase. Evocando dados do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das
Epístolas, da tradição oral, de outros teólogos e da própria liturgia
bizantina, o eminente Doutor da Igreja revisita a importância do nascimento de
Maria para a salvação e para a Igreja, louvando “en passant” os seus pais,
Joaquim e Ana. Um ponto muito importante: chama e afirma – é dos primeiros a
fazê-lo – “Imaculada” a Maria.
Sem deixar de
fazer todo o desfio das tipologias de Maria presentes no Antigo Testamento, o
Damasceno louva Nossa Senhora como poucos o fizeram, fornecendo a base
patrística para muitas das afirmações acerca de Maria e do seu lugar no
mistério da Redenção do homem que vieram a fixar-se mais tarde. Foi enorme a
sua influência na época medieval e a intuição de base do Dogma da Assunção
Corporal de Nossa Senhora ao céu está já presente na obra do Damasceno. Por isso
é que cognominado como o Doctor
Asumptionis.
O Doutor
Damasceno lança o convite a “todas as nações” e aos “homens de todas as raças, línguas
e idades, de todas as condições” a celebrarem com alegria “a natividade da Alegria
do mundo inteiro”. E argumenta:
“Se os gregos destacavam com todo o
tipo de honras – com os dons que cada um podia oferecer – o aniversário das
divindades, impostas aos espíritos por mitos mentirosos que obscureciam a
verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem o flagelo de toda a
existência, que deveríamos nós fazer para honrar o aniversário da Mãe de Deus,
por quem toda a raça mortal foi transformada, por quem o castigo de Eva, nossa
primeira mãe, foi mudada em alegria?”
E infere:
“Com efeito, uma ouviu a sentença
divina: ‘Darás à luz no meio de penas’ (Gn 3,16b);
a outra ouviu, por seu turno: ‘Alegra-te, ó Cheia de Graça’ (Lc 1,28). À primeira disse-se: ‘Inclinar-te-ás para o teu
marido’ (Gn 3,16a), mas à segunda: ‘O Senhor está
contigo’ (Lc 1,28). Que homenagem ofereceremos então
nós à Mãe do Verbo, senão outra palavra? Que a criação inteira se alegre e
festeje, e cante a natividade de uma santa mulher, porque ela gerou para o
mundo um tesouro imperecível de bondade, e porque por ela o Criador mudou toda
a natureza num estado melhor, pela mediação da humanidade. Porque se o homem,
que ocupa o meio entre o espírito e a matéria, é o laço de toda a criação,
visível e invisível, o Verbo criador de Deus, ao unir-se à natureza humana,
uniu-se através dela a toda a criação.”
Fontes: Agnus Dei, Diocese de Jales e Fátima.com
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Santo André de Creta, monge e bispo do século VIII, no Sermão 1 para a
Natividade da Mãe de Deus (PG 97, 812-816), chama a Maria, primícias da nova criação. Diz o santo bispo:
“No princípio, o
homem foi formado de uma terra pura e sem mancha (cf Gn 2,7); mas a sua
natureza viu-se privada da dignidade inata, logo que foi despojada da graça
pela queda da desobediência e afastada do país da vida. Em vez do paraíso de
delícias, já não tinha senão uma vida corrutível a transmitir-nos como
património hereditário uma vida da qual decorreria, como consequência, a morte
e a corrupção da raça. Preferimos o mundo daqui de baixo ao mundo do alto. Não
restava qualquer esperança de salvação; a situação da nossa natureza apelava ao
socorro do céu. Não havia lei que pudesse curar a nossa enfermidade. [...]
Finalmente, em seu beneplácito, o Artífice Divino do Universo decidiu fazer
surgir um mundo novo, cheio de harmonia e juventude, do qual seria repelido o
contágio do pecado e da morte, sua companheira. Ser-nos-ia oferecida uma vida
totalmente nova, livre e resgatada, e encontraríamos no batismo um novo
nascimento, todo divino. [...]
“E como levar a cabo
este desígnio? Não convinha que uma virgem puríssima e sem mancha se colocasse
primeiramente ao serviço deste plano misterioso e se tornasse grávida do Ser
Infinito, de um modo que transcendesse as leis naturais? [...] Tal como, no
paraíso, o Criador tinha tirado da terra virgem e sem mancha um pouco de barro
para modelar o primeiro Adão, assim também no momento de realizar a sua própria
Encarnação Se serviu duma outra terra, por assim dizer, a desta Virgem pura e
imaculada, escolhida entre todas as criaturas. Foi nela que nos restabeleceu de
novo a partir da nossa própria substância e Se tornou um novo Adão, Ele, que
fora o Criador de Adão, a fim de que o antigo fosse salvo pelo novo, que é
eterno.”
***
Por
Maria, com Maria e em Maria, realiza-se o protoevangelho dos primórdios da
história da Salvação, que mostra como Deus não abandona o homem ao seu pecado:
“Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.” (Gn
3,15).
Nesta
descendência, vemos em primeiro lugar Cristo e a Igreja que entronca no lado
aberto de Cristo; e, de modo eminente, Maria como mãe do Senhor, protótipo e
mãe dos discípulos do Senhor – a Igreja.
Na
verdade, “associada, na descendência de Adão, a todos os homens necessitados de
salvação (LG 53),
Maria, pelo dom da maternidade divina, está imensamente acima de todos os
filhos de Adão. Realizando Nela, com o seu poder e graça, a obra maravilhosa da
Encarnação do Filho de Deus, o Espírito Santo insere, por nós, homens e para
nossa salvação, a Virgem Santa Maria na ordem de comunicação pessoal com a
Divindade. E Ela dá-nos a mão para que nos coloquemos no caminho para o Pai,
que nos faz entrar no mistério da comunhão trinitária. E esse caminho é Jesus.
É contemplando assim o ser e a missão da mãe de Jesus que Eadmero, no século
XII, diz a Maria: “Acima de Ti, só Deus; abaixo de Ti, tudo quanto não é Deus”.
2016.09.08 – Louro de Carvalho
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