As
notícias vindas a lume sobre a obra do professor de fundamentados créditos
helenistas dão por um lado a informação de que Frederico Lourenço está a
empreender a tradução da Bíblia grega para português, o que é de saudar. Porém,
outras notícias aludem a uma alegada tradução da versão dos LXX e sublinham que
é a primeira vez que aparecerá uma tradução para português a partir desta
versão grega, o que também é verdade. Porém, esta segunda afirmação está contida
na primeira.
Usualmente
as traduções da bíblia utilizadas em Portugal eram feitas a partir da Vulgata
latina, a qual, por sua vez, era feita a partir da bíblia grega, que incluía a
versão dos LXX (Septuaginta), mas que obviamente não se
cingia a ela, mas abrangia todo o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testamento (NT), sendo que este foi totalmente
redigido em grego, embora os estudiosos entendam que previamente ao Evangelho
de Marcos, o primeiro a ser redigido, tenha circulado nas comunidades cristãs os
Ta logía tou Kyríou (Τα
λογία του Κυρίου),
“os ditos do Senhor” em aramaico. A Vulgata baseia-se no trabalho de São
Jerónimo, que traduziu a bíblia grega para latim, muito embora tivesse consigo
a bíblia hebraica para efeitos de comparação e eventual dissipação de dúvidas.
O
que o professor Lourenço quer fazer é a tradução de toda a bíblia grega – o AT (toda a versão dos LXX,
que corresponde à Bíblia hebraica, mais os livros escritos em grego na fase
helenista) e o NT.
Assim,
dizer-se que a versão dos LXX nunca foi traduzida para português europeu é
inteiramente verdade. Dizer que a bíblia grega não foi traduzida para português
não o é. As versões existentes em português que dizem corresponder aos
originais, foram traduzidas a partir da bíblia hebraica na edição massorética (TM) – isto é, em hebraico com a
inserção das vogais e sinais diacríticos para melhor leitura do texto
originário com os carateres hebraicos consonânticos – e dos textos gregos
correspondentes ao original grego do tempo do helenismo (não
os havia em hebraico)
e o NT totalmente redigido em grego. Digo correspondentes aos originais, dado
que os originais qua tali já não
existem: o que chegou até nós são vários códices ou manuscritos em que se
detetam diferenças de pormenor, raramente de substância.
A
versão dos LXX pretendeu pôr em letra de forma uma versão a partir do original
hebraico (só com carateres consonânticos) uma versão grega em dialeto
comum – hê koiné diálektos – para que
os judeus da diáspora no tempo do helenismo pudessem ter acesso ao tesouro da Torah, dos Profetas e dos Escritos e
o pudessem ler e entender na língua que todos conheciam, o grego como língua
franca naquele mundo. Por isso, é que os estudiosos consideram autêntica do
ponto de vista doutrina e até inspirada a versão dos LXX. Hoje, o interesse
pela bíblia hebraica vai no sentido inverso: perceber pelas imagens construídas
no quadro da pobreza lexical da língua hebraica a riqueza e a preciosidade de
muitos conceitos bíblicos.
De
qualquer modo, o trabalho de Frederico Lourenço é um trabalho tremendamente
meritório porque nos dará uma versão arejada e sem pruridos ideoteológicos de
toda a bíblia grega incluindo alguns livros ditos apócrifos pelos católicos,
mas de interesse mítico-literário.
***
A
versão dos LXX foi obra de diversos tradutores em Alexandria para judeus da
diáspora de língua grega, vindo a tornar-se a bíblia oficial de todo o judaísmo
da diáspora. Começou-se pelo Pentateuco (Génesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronómio)
ou Torah, provavelmente sob Ptolomeu
II, Filadelfo, cerca de 250 aC, facto a que se refere a carta de Aristeias. E
os demais livros foram sendo traduzidos aos poucos, até que em 150 aC a bíblia
hebraica estava toda traduzida: Profetas anteriores (Josué,
Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis); Profetas posteriores (Isaías, Jeremias,
Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias,
Ageu, Zacarias e Malaquias);
e escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cântico dos Cânticos, Rute,
Lamentações, Eclesiastes ou Qohélet, Ester, Daniel 1-12, Esdras, Neemias, I
Crónicas e II Crónicas).
Cerca
de 130 aC, o neto de Jesus, filho se Sirach dá conta de que, além da Torah,
circulavam em grego os demais livros. E os autores do NT citam esta versão, que
se tornou o AT dos cristãos (os judeus não aceitam o NT), continuando a ser o texto
oficial da atual Igreja grega. Porém, no século II, a versão dos LXX perdeu
interesse na sinagoga e procedeu-se a uma tradução grega mais consonante com a
bíblia hebraica, no hebraico daquele tempo.
***
A
bíblia grega dos LXX é encontrada por Orígenes com muitas imperfeições no
estado e nas divergências dos manuscritos chegados ao seu tempo, pelo que este
escritor empreendeu uma tentativa de grande envergadura para conseguir a
unidade e o restabelecimento da possível pureza original. Na sua bíblia
sêxtupla (hexapla) colocou em 6 colunas paralelas
vários textos com o mesmo conteúdo: 1) texto hebraico em letras hebraicas; 2) texto
hebraico em letras gregas; 3) tradução de Áquila; 4) tradução de Símaco; 5)
versão dos LXX; e 6) tradução de Teodocião. A coluna 5) era a mais importante,
porque Orígenes indicou nela por sinais diacríticos, conhecidos ao tempo, a
relação da sua versão dos LXX com o original hebraico. Se o texto de Orígenes
tinha coisas a menos, tal era colmatado com elementos da tradução de Áquila, Símaco
ou de Teodocião, com a aposição de asterisco (*); se tinha elementos a mais
eram assinalados com um óbelo (- ou .); e ambos os tipos de
passagens eram assinalados com um metóbolo (/ ou ﮲/.).
Porém,
o trabalho de Orígenes não teve em conta que o hebraico a que ele teve acesso
era diferente do utilizado pelos construtores da versão dos LXX e copistas
posteriores omitiram muitos dos sinais diacríticos. De tudo isto, aliado ao
grande tamanho da hexapla, resultou
que nunca esta foi copiada na íntegra. Várias tentativas se fizeram para
melhorar a versão grega dos LXX, mas sem que qualquer delas fosse perfeita ou,
pelo menos, hegemónica. Entretanto, cerca do ano 300, o presbítero Luciano de
Antioquia editou o seu texto, a correção do grego dos LXX, que se caraterizava
por maior fidelidade ao hebraico e tendência de dar uma versão o mais completa
possível. Também por volta desse mesmo ano, segundo noticia São Jerónimo, surge
a versão de Hesíquio, de caraterísticas similares, a mais divulgada no Egito.
Da
versão dos LXX que nos foi guardada em 1550 manuscritos, mas cujo número ainda
vem aumentando, os mais importantes (os principais e mais
antigos) são os
códices Vaticano, Sinaítico e Alexandrino e os papiros Chester Beatty. (cf
Born, A. Van Den. Dicionário
Enciclopédico da Bíblia. Vozes, 1985: 1428-1429).
***
A
versão dos LXX é primeiramente mencionada na Carta de Aristeias ao seu irmão
Filócrates. Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito (287-247 aC) criara uma valiosa biblioteca
em Alexandria. Ptolomeu, para ganhar as boas graças do povo, a conselho de
Aristeias, oficial da guarda real, egípcio de nascimento e pagão por religião,
emancipou 100 mil escravos de diversas regiões do seu reino. Persuadido por
Demétrio de Fálaro, responsável pela biblioteca, a enriquecê-la com a cópia dos
livros sagrados dos judeus, enviou representantes – entre eles, Aristeias – a
Jerusalém a solicitar ao sumo sacerdote Eliazar que lhe fornecesse uma cópia da
Torah e judeus capazes de a
traduzirem para grego. A legação foi coroada de êxito: foi enviada ao Egito uma
cópia da Torah ricamente ornamentada,
acompanhada por 72 israelitas – 6 de cada uma das 12 tribos – para corresponder
à solicitação régia. Recebidos com grande pompa, surpreenderam a todos, durante
7 dias pela sabedoria que mostravam nas respostas que deram a 72 questões.
Assim, foram levados para a isolada ilha de Faros e ali iniciaram os trabalhos,
traduzindo a Torah, ajudando-se
mutuamente e comparando as traduções à medida que iam acabando. Ao final de 72
dias, a tarefa colegial estava terminada. A versão dos 72 (conhecida por dos 70, número mais
redondo e simbólico da totalidade)
foi lida na presença de sacerdotes judeus, príncipes e povo reunidos em
Alexandria. Todos a reconheceram e a declararam em perfeita conformidade com o
original hebraico. O rei, profundamente satisfeito com a obra, depositou-a na
biblioteca.
Embora
de caraterísticas lendárias, a narrativa de Aristeias tornou-se credível:
Aristóbulo (170-50 aC),
numa citação feita por Eusébio, diz que “através dos esforços de Demétrios de
Fálero, uma tradução completa da legislação judaica foi realizada nos dias de
Ptolomeu”; o relato de Aristeias é repetido quase literalmente por Flávio
Josefo (Ant.
Jud. XII,2) e
substancialmente por Filo de Alexandria (De
Vita Moysis II,6),
mas omitindo do nome de Aristeias. Carta e relato foram aceites como genuínos
por muitos padres e escritores eclesiásticos até ao início do séc. XVI. Porém, ao
relato de Aristeias foram acrescentados outros pormenores que serviram para
enfatizar a extraordinária origem da versão: os 72 intérpretes foram inspirados
por Deus (Tertuliano, Santo Agostinho, o autor de “Exortação
aos Gregos” [Justino?], entre outros);
durante a tradução eles não se consultaram uns aos outros, pois foram mantidos
em celas separadas, quer individuais, quer em duplas, e as suas versões, quando
cotejadas, estavam em plena concordância com o sentido e expressões utilizadas no texto original e, inclusive, de umas com as outras (cf
“Exortação aos Gregos”, Santo Ireneu, São Clemente de Alexandria - São Jerónimo
rejeitou o relato das celas isoladas afirmando que era fantasioso e falso
(Praef. in Pentateuchum; Adv. Rufinum II, 25); e, ainda os 72 intérpretes traduziram não apenas
os livros do Pentateuco, mas todo o Antigo Testamento hebraico. A autenticidade
da carta, posta em dúvida primeiro por Louis Vivès (1492-1540), professor em Louvain (Ad
S. August. Civ. Dei XVIII, 42),
por Jos Scaliger (+1609), por H. Hody (+1705) e por Dupin (d.
1719), é hoje
comummente negada.
***
Origem comummente aceite.
Os
judeus, nos dois últimos séculos aC, eram tão numerosos no Egito, sobretudo em
Alexandria, que chegaram a constituir 2/5 da população total. Pouco a pouco a
maioria deles deixou de usar o hebraico ou mesmo o esqueceu em grande parte, caindo
no perigo de esquecer a Torah. Por
isso, tornou-se necessário e costumeiro interpretar na língua grega a Torah, lida nas sinagogas; e, após certo
tempo, alguns homens zelosos resolveram compilar uma tradução grega do
Pentateuco. Isto ocorreu por volta de meados do séc. III aC, como se disse. Para
os demais livros hebraicos – proféticos, históricos e hagiográficos – era natural
que os judeus alexandrinos, usando, nas reuniões litúrgicas, o Pentateuco já traduzido,
desejassem também a tradução daqueles. E, gradualmente, todos os livros foram
sendo traduzidos para o grego, que se tornara a língua materna destes judeus. Tal
exigência aumentava conforme o aumento do seu desconhecimento do hebraico. Não
é possível definir com exatidão o tempo ou os eventos que levaram a estas
diferentes traduções; mas é certo que a Lei, os Profetas e, ao menos, parte dos
outros livros (ou seja, os Hagiógrafos ou os Escritos) existiam antes do ano 130 aC,
como aparece no prólogo do Eclesiástico, que não data abaixo deste ano. É ainda
difícil saber onde as diversas traduções foram feitas, pois as informações são
escassas. Ponderando as palavras e expressões egípcias que ocorrem na versão, a
maioria deve ter sido feita no Egito, muito provavelmente em Alexandria. Entretanto,
o livro de Ester foi traduzido em Jerusalém.
É
difícil quem e quantos foram os tradutores ou se existe fundamento para o
número 72. Os talmudistas dizem que o Pentateuco foi traduzido por 5
intérpretes. Porém, a história não oferece mais pormenores. Contudo, um exame
do texto aponta para o facto de, em geral, os autores não serem judeus da
Palestina enviados ao Egito; diferenças de terminologia, método etc. sugerem
que os tradutores não eram os mesmos para os diferentes livros. É impossível
também dizer se a obra foi executada oficial ou privativamente, como parece ser
o caso de Eclesiástico; contudo, o complexo dos diversos livros, depois de
traduzidos e ordenados (o autor de Eclesiástico conhecia a
coleção), foi
recebido como oficial pelos judeus de língua grega.
***
A
versão dos LXX oferece em forma e substância o verdadeiro sentido dos Livros
Sagrados, mas difere consideravelmente do atual TM (texto
hebraico massorético).
Tais discrepâncias, contudo, não são de grande importância, mas assunto de
interpretação. Algumas provêm dos tradutores, que tiveram à disposição recensões
hebraicas diferentes das conhecidas como massoréticas (às
vezes os textos variam, outras vezes, os textos são idênticos, mas lidos em
ordem diferente).
Outras discrepâncias devem-se à personalidade dos tradutores, para não se falar
da influência exercida nas obras pelos métodos de interpretação, dificuldades
inerentes à tarefa e maior ou menor conhecimento de grego e hebraico. E, como o
texto hebraico não dispunha de vogais, poderiam suprir as palavras com vogais
diversas das que foram usadas mais tarde pelos massoretas.
Também
não devemos achar que possuímos o texto grego exatamente como foi escrito pelos
tradutores: as frequentes transcrições feitas durante os primeiros séculos e as
correções e adições de Orígenes, Luciano e Hesíquio danificaram (voluntária
ou involuntariamente)
a pureza do texto. Ademais, os copistas geraram a ocorrência de corrupções
textuais, transposições, adições e omissões no texto primitivo da Septuaginta. Em particular, podemos
notar a adição de passagens paralelas, notas explanatórias ou traduções
duvidosas causadas por notas marginais.
(cf Heeren, A. Vander. A Versão Septuaginta.
http://www.universocatolico.com.br/index.php?/pdf/a-versao-septuaginta.pdf).
No
atinente ao NT, em 1964, já vinha na 9.ª edição o Novum Testamentum – graece et
latine, por Augustinus Merk SI, sendo que a sua versão grega segue basicamente
a versão luciana, ao passo que a sua versão latina segue a edição
Sisto-Clementina de 1592.
***
São,
pois, aguardados com natural expectativa e avidez os 6 volumes (4
do AT e 2 do NT) de
F. Lourenço, esperando o seu apuro linguístico e literário na certeza de que
sabe colocar em bom português um bom texto a partir do grego como língua comum (com
hebraísmos e latinismos,
mais que na sua vertente clássica. Por isso, logo que possa, acabarei de ler o
vol. I, Os Evangelhos.
2016.09.26 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário