segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Sobre a tradução da Bíblia por Frederico Lourenço

As notícias vindas a lume sobre a obra do professor de fundamentados créditos helenistas dão por um lado a informação de que Frederico Lourenço está a empreender a tradução da Bíblia grega para português, o que é de saudar. Porém, outras notícias aludem a uma alegada tradução da versão dos LXX e sublinham que é a primeira vez que aparecerá uma tradução para português a partir desta versão grega, o que também é verdade. Porém, esta segunda afirmação está contida na primeira.
Usualmente as traduções da bíblia utilizadas em Portugal eram feitas a partir da Vulgata latina, a qual, por sua vez, era feita a partir da bíblia grega, que incluía a versão dos LXX (Septuaginta), mas que obviamente não se cingia a ela, mas abrangia todo o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testamento (NT), sendo que este foi totalmente redigido em grego, embora os estudiosos entendam que previamente ao Evangelho de Marcos, o primeiro a ser redigido, tenha circulado nas comunidades cristãs os Ta logía tou Kyríou (Τα λογία του Κυρίου), “os ditos do Senhor” em aramaico. A Vulgata baseia-se no trabalho de São Jerónimo, que traduziu a bíblia grega para latim, muito embora tivesse consigo a bíblia hebraica para efeitos de comparação e eventual dissipação de dúvidas.
O que o professor Lourenço quer fazer é a tradução de toda a bíblia grega – o AT (toda a versão dos LXX, que corresponde à Bíblia hebraica, mais os livros escritos em grego na fase helenista) e o NT.
Assim, dizer-se que a versão dos LXX nunca foi traduzida para português europeu é inteiramente verdade. Dizer que a bíblia grega não foi traduzida para português não o é. As versões existentes em português que dizem corresponder aos originais, foram traduzidas a partir da bíblia hebraica na edição massorética (TM) – isto é, em hebraico com a inserção das vogais e sinais diacríticos para melhor leitura do texto originário com os carateres hebraicos consonânticos – e dos textos gregos correspondentes ao original grego do tempo do helenismo (não os havia em hebraico) e o NT totalmente redigido em grego. Digo correspondentes aos originais, dado que os originais qua tali já não existem: o que chegou até nós são vários códices ou manuscritos em que se detetam diferenças de pormenor, raramente de substância.
A versão dos LXX pretendeu pôr em letra de forma uma versão a partir do original hebraico (só com carateres consonânticos) uma versão grega em dialeto comum – hê koiné diálektos – para que os judeus da diáspora no tempo do helenismo pudessem ter acesso ao tesouro da Torah, dos Profetas e dos Escritos e o pudessem ler e entender na língua que todos conheciam, o grego como língua franca naquele mundo. Por isso, é que os estudiosos consideram autêntica do ponto de vista doutrina e até inspirada a versão dos LXX. Hoje, o interesse pela bíblia hebraica vai no sentido inverso: perceber pelas imagens construídas no quadro da pobreza lexical da língua hebraica a riqueza e a preciosidade de muitos conceitos bíblicos.
De qualquer modo, o trabalho de Frederico Lourenço é um trabalho tremendamente meritório porque nos dará uma versão arejada e sem pruridos ideoteológicos de toda a bíblia grega incluindo alguns livros ditos apócrifos pelos católicos, mas de interesse mítico-literário.
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A versão dos LXX foi obra de diversos tradutores em Alexandria para judeus da diáspora de língua grega, vindo a tornar-se a bíblia oficial de todo o judaísmo da diáspora. Começou-se pelo Pentateuco (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio) ou Torah, provavelmente sob Ptolomeu II, Filadelfo, cerca de 250 aC, facto a que se refere a carta de Aristeias. E os demais livros foram sendo traduzidos aos poucos, até que em 150 aC a bíblia hebraica estava toda traduzida: Profetas anteriores (Josué, Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis e II Reis); Profetas posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias); e escritos (Salmos, Provérbios, Job, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes ou Qohélet, Ester, Daniel 1-12, Esdras, Neemias, I Crónicas e II Crónicas). 
Cerca de 130 aC, o neto de Jesus, filho se Sirach dá conta de que, além da Torah, circulavam em grego os demais livros. E os autores do NT citam esta versão, que se tornou o AT dos cristãos (os judeus não aceitam o NT), continuando a ser o texto oficial da atual Igreja grega. Porém, no século II, a versão dos LXX perdeu interesse na sinagoga e procedeu-se a uma tradução grega mais consonante com a bíblia hebraica, no hebraico daquele tempo.
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A bíblia grega dos LXX é encontrada por Orígenes com muitas imperfeições no estado e nas divergências dos manuscritos chegados ao seu tempo, pelo que este escritor empreendeu uma tentativa de grande envergadura para conseguir a unidade e o restabelecimento da possível pureza original. Na sua bíblia sêxtupla (hexapla) colocou em 6 colunas paralelas vários textos com o mesmo conteúdo: 1) texto hebraico em letras hebraicas; 2) texto hebraico em letras gregas; 3) tradução de Áquila; 4) tradução de Símaco; 5) versão dos LXX; e 6) tradução de Teodocião. A coluna 5) era a mais importante, porque Orígenes indicou nela por sinais diacríticos, conhecidos ao tempo, a relação da sua versão dos LXX com o original hebraico. Se o texto de Orígenes tinha coisas a menos, tal era colmatado com elementos da tradução de Áquila, Símaco ou de Teodocião, com a aposição de asterisco (*); se tinha elementos a mais eram assinalados com um óbelo (- ou .); e ambos os tipos de passagens eram assinalados com um metóbolo (/ ou /.).
Porém, o trabalho de Orígenes não teve em conta que o hebraico a que ele teve acesso era diferente do utilizado pelos construtores da versão dos LXX e copistas posteriores omitiram muitos dos sinais diacríticos. De tudo isto, aliado ao grande tamanho da hexapla, resultou que nunca esta foi copiada na íntegra. Várias tentativas se fizeram para melhorar a versão grega dos LXX, mas sem que qualquer delas fosse perfeita ou, pelo menos, hegemónica. Entretanto, cerca do ano 300, o presbítero Luciano de Antioquia editou o seu texto, a correção do grego dos LXX, que se caraterizava por maior fidelidade ao hebraico e tendência de dar uma versão o mais completa possível. Também por volta desse mesmo ano, segundo noticia São Jerónimo, surge a versão de Hesíquio, de caraterísticas similares, a mais divulgada no Egito.
Da versão dos LXX que nos foi guardada em 1550 manuscritos, mas cujo número ainda vem aumentando, os mais importantes (os principais e mais antigos) são os códices Vaticano, Sinaítico e Alexandrino e os papiros Chester Beatty. (cf Born, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Vozes, 1985: 1428-1429).
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A versão dos LXX é primeiramente mencionada na Carta de Aristeias ao seu irmão Filócrates. Ptolomeu II Filadelfo, rei do Egito (287-247 aC) criara uma valiosa biblioteca em Alexandria. Ptolomeu, para ganhar as boas graças do povo, a conselho de Aristeias, oficial da guarda real, egípcio de nascimento e pagão por religião, emancipou 100 mil escravos de diversas regiões do seu reino. Persuadido por Demétrio de Fálaro, responsável pela biblioteca, a enriquecê-la com a cópia dos livros sagrados dos judeus, enviou representantes – entre eles, Aristeias – a Jerusalém a solicitar ao sumo sacerdote Eliazar que lhe fornecesse uma cópia da Torah e judeus capazes de a traduzirem para grego. A legação foi coroada de êxito: foi enviada ao Egito uma cópia da Torah ricamente ornamentada, acompanhada por 72 israelitas – 6 de cada uma das 12 tribos – para corresponder à solicitação régia. Recebidos com grande pompa, surpreenderam a todos, durante 7 dias pela sabedoria que mostravam nas respostas que deram a 72 questões. Assim, foram levados para a isolada ilha de Faros e ali iniciaram os trabalhos, traduzindo a Torah, ajudando-se mutuamente e comparando as traduções à medida que iam acabando. Ao final de 72 dias, a tarefa colegial estava terminada. A versão dos 72 (conhecida por dos 70, número mais redondo e simbólico da totalidade) foi lida na presença de sacerdotes judeus, príncipes e povo reunidos em Alexandria. Todos a reconheceram e a declararam em perfeita conformidade com o original hebraico. O rei, profundamente satisfeito com a obra, depositou-a na biblioteca.
Embora de caraterísticas lendárias, a narrativa de Aristeias tornou-se credível: Aristóbulo (170-50 aC), numa citação feita por Eusébio, diz que “através dos esforços de Demétrios de Fálero, uma tradução completa da legislação judaica foi realizada nos dias de Ptolomeu”; o relato de Aristeias é repetido quase literalmente por Flávio Josefo (Ant. Jud. XII,2) e substancialmente por Filo de Alexandria (De Vita Moysis II,6), mas omitindo do nome de Aristeias. Carta e relato foram aceites como genuínos por muitos padres e escritores eclesiásticos até ao início do séc. XVI. Porém, ao relato de Aristeias foram acrescentados outros pormenores que serviram para enfatizar a extraordinária origem da versão: os 72 intérpretes foram inspirados por Deus (Tertuliano, Santo Agostinho, o autor de “Exortação aos Gregos” [Justino?], entre outros); durante a tradução eles não se consultaram uns aos outros, pois foram mantidos em celas separadas, quer individuais, quer em duplas, e as suas versões, quando cotejadas, estavam em plena concordância com o sentido e expressões utilizadas no texto original e, inclusive, de umas com as outras (cf “Exortação aos Gregos”, Santo Ireneu, São Clemente de Alexandria - São Jerónimo rejeitou o relato das celas isoladas afirmando que era fantasioso e falso (Praef. in Pentateuchum; Adv. Rufinum II, 25); e, ainda os 72 intérpretes traduziram não apenas os livros do Pentateuco, mas todo o Antigo Testamento hebraico. A autenticidade da carta, posta em dúvida primeiro por Louis Vivès (1492-1540), professor em Louvain (Ad S. August. Civ. Dei XVIII, 42), por Jos Scaliger (+1609), por H. Hody (+1705) e por Dupin (d. 1719), é hoje comummente negada.
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Origem comummente aceite.
Os judeus, nos dois últimos séculos aC, eram tão numerosos no Egito, sobretudo em Alexandria, que chegaram a constituir 2/5 da população total. Pouco a pouco a maioria deles deixou de usar o hebraico ou mesmo o esqueceu em grande parte, caindo no perigo de esquecer a Torah. Por isso, tornou-se necessário e costumeiro interpretar na língua grega a Torah, lida nas sinagogas; e, após certo tempo, alguns homens zelosos resolveram compilar uma tradução grega do Pentateuco. Isto ocorreu por volta de meados do séc. III aC, como se disse. Para os demais livros hebraicos – proféticos, históricos e hagiográficos – era natural que os judeus alexandrinos, usando, nas reuniões litúrgicas, o Pentateuco já traduzido, desejassem também a tradução daqueles. E, gradualmente, todos os livros foram sendo traduzidos para o grego, que se tornara a língua materna destes judeus. Tal exigência aumentava conforme o aumento do seu desconhecimento do hebraico. Não é possível definir com exatidão o tempo ou os eventos que levaram a estas diferentes traduções; mas é certo que a Lei, os Profetas e, ao menos, parte dos outros livros (ou seja, os Hagiógrafos ou os Escritos) existiam antes do ano 130 aC, como aparece no prólogo do Eclesiástico, que não data abaixo deste ano. É ainda difícil saber onde as diversas traduções foram feitas, pois as informações são escassas. Ponderando as palavras e expressões egípcias que ocorrem na versão, a maioria deve ter sido feita no Egito, muito provavelmente em Alexandria. Entretanto, o livro de Ester foi traduzido em Jerusalém.
É difícil quem e quantos foram os tradutores ou se existe fundamento para o número 72. Os talmudistas dizem que o Pentateuco foi traduzido por 5 intérpretes. Porém, a história não oferece mais pormenores. Contudo, um exame do texto aponta para o facto de, em geral, os autores não serem judeus da Palestina enviados ao Egito; diferenças de terminologia, método etc. sugerem que os tradutores não eram os mesmos para os diferentes livros. É impossível também dizer se a obra foi executada oficial ou privativamente, como parece ser o caso de Eclesiástico; contudo, o complexo dos diversos livros, depois de traduzidos e ordenados (o autor de Eclesiástico conhecia a coleção), foi recebido como oficial pelos judeus de língua grega.
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A versão dos LXX oferece em forma e substância o verdadeiro sentido dos Livros Sagrados, mas difere consideravelmente do atual TM (texto hebraico massorético). Tais discrepâncias, contudo, não são de grande importância, mas assunto de interpretação. Algumas provêm dos tradutores, que tiveram à disposição recensões hebraicas diferentes das conhecidas como massoréticas (às vezes os textos variam, outras vezes, os textos são idênticos, mas lidos em ordem diferente). Outras discrepâncias devem-se à personalidade dos tradutores, para não se falar da influência exercida nas obras pelos métodos de interpretação, dificuldades inerentes à tarefa e maior ou menor conhecimento de grego e hebraico. E, como o texto hebraico não dispunha de vogais, poderiam suprir as palavras com vogais diversas das que foram usadas mais tarde pelos massoretas.
Também não devemos achar que possuímos o texto grego exatamente como foi escrito pelos tradutores: as frequentes transcrições feitas durante os primeiros séculos e as correções e adições de Orígenes, Luciano e Hesíquio danificaram (voluntária ou involuntariamente) a pureza do texto. Ademais, os copistas geraram a ocorrência de corrupções textuais, transposições, adições e omissões no texto primitivo da Septuaginta. Em particular, podemos notar a adição de passagens paralelas, notas explanatórias ou traduções duvidosas causadas por notas marginais.
(cf  Heeren, A. Vander. A Versão Septuaginta. http://www.universocatolico.com.br/index.php?/pdf/a-versao-septuaginta.pdf).
No atinente ao NT, em 1964, já vinha na 9.ª edição o Novum Testamentum graece et latine, por Augustinus Merk SI, sendo que a sua versão grega segue basicamente a versão luciana, ao passo que a sua versão latina segue a edição Sisto-Clementina de 1592.
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São, pois, aguardados com natural expectativa e avidez os 6 volumes (4 do AT e 2 do NT) de F. Lourenço, esperando o seu apuro linguístico e literário na certeza de que sabe colocar em bom português um bom texto a partir do grego como língua comum (com hebraísmos e latinismos, mais que na sua vertente clássica. Por isso, logo que possa, acabarei de ler o vol. I, Os Evangelhos.

2016.09.26 – Louro de Carvalho

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