Celebra-se a
29 de setembro a festa dos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. O calendário
litúrgico, reformado na sequência da constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada
Liturgia (102-111), congrega no
mesmo dia a antiga festa de São Gabriel, a 24 de março, a de São Rafael, a 24
de outubro, a da Aparição de São Miguel, a 8 de maio (os textos da
missa eram os mesmos de 29 de setembro), e a da
Dedicação de São Miguel, a 29 de setembro – que figuravam no calendário
santoral anterior ao Concílio Vaticano II.
O nome
“Miguel” remete, pelo seu significado, para a grande questão que nos devemos
colocar permanentemente a nós próprios, “Quem
como Deus?”. Identificado, por vezes, como o anjo do turíbulo de ouro de
que fala o livro do Apocalipse, é o príncipe das milícias celestes, destinadas
à adoração e às loas ao Senhor, à execução das deliberações da vontade divina (cf Dn 7,9-10), a subir e a descer sobre o Filho do Homem (cf Jo 1,51), e à guarda dos homens, que o invocam na luta contra
o pecado para que não caiam em tentação e, consequentemente, no pecado. É o
arcanjo dos supremos combates (vd Ap 12,7-12), durante
os quais milita à frente dos anjos bons; é o melhor guia do povo cristão,
sobretudo na hora da viagem, sem retorno, para a eternidade; é o celeste
protetor da Igreja de Deus, em nome da qual oferece orações ao Altíssimo como suave
odor de incenso. Apareceu em visão ao profeta Daniel no Antigo Testamento,
revelou ao apóstolo São João o futuro da Igreja descrito no Apocalipse (cf Ap 1,1-5) e encabeçou a luta leonina dos anjos contra a
astúcia e o fogo do dragão infernal para defender a mulher e o seu menino (Ap 12,1-12).
Miguel é,
por outro lado e por excelência, o anjo da fidelidade, que não hesita nem
oscila no combate contra o mal, nunca se desviando de Deus. A vitória sobre as
forças do mal, demónio e seus sequazes, alcançada por Miguel e seus celestes
companheiros, é a figura antecipada da vitória definitiva da Igreja sobre o
mal, da luz sobre as trevas.
A festa de
São Gabriel foi introduzida no ordenamento litúrgico por Bento XV. O nome
“Gabriel” configura a asserção “Deus é a
minha força”. Sendo o mensageiro imediato da encarnação, este arcanjo torna-se,
tendo em conta a finalidade da encarnação do Verbo de Deus – Qui propter nos homines et propter nostram
salutem descendit de caelis –, o mensageiro da redenção. Com efeito, é o
enviado das grandes embaixadas: indica ao profeta Daniel o tempo bíblico
preciso da vinda do Messias (Dn 9,21-27); anuncia a
Zacarias o nascimento do precursor, João Batista (Lc 1,5-24); e, por fim, anuncia a Maria o mistério da
encarnação do Verbo divino (Lc 1,26-38), tema que acabou
por confirmar a José (Mt 1,18-25). Revela,
em nome de Deus, o mistério da maternidade de Isabel, a estéril e de idade
provecta, e, sobretudo o da maternidade divina da Virgem de Nazaré, a crente
serva humilde do Senhor. É o arcanjo zeloso da solicitude e prontidão de Deus –
um exemplo modelar para todos os membros da Igreja, que são efetivos
mensageiros de Deus junto dos homens e dos homens junto de Deus. Pio XII
declarou-o patrono das telecomunicações, a 12 de janeiro de 1951.
O nome “Rafael”
significa “medicina de Deus”. E este
arcanjo é um dos sete espíritos que estão sempre na presença de Deus, O
bendizem para sempre e Lhe oferecem o incenso das nossas orações. Manifesta-se
na Bíblia como diligente e eficaz protetor duma família que se debate pacientemente
para não sucumbir às provações. A sua missão está ligada à histórica viagem de
Tobias (cf Tb caps
11 e 12) e é muito provavelmente o anjo que
movia as águas na piscina probática, em hebraico
chamada Betzatá (cf Jo 5,1-8). Foi o anjo que apareceu ao Salvador no Getsémani
para o confortar. É, pois, conselheiro, defensor e médico. Nas enfermidades e
demais situações difíceis, podemos e devemos a ele recorrer.
Honrando os
arcanjos e os anjos, cuja existência é testemunhada abundantemente pela Sagrada
Escritura, a Igreja – e cada um dos seus membros – exalta o poder de Deus,
criador do mundo visível e invisível, o libertador do homem, o libertador dos
povos.
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É a comunhão
de entidades que liga os três arcanjos (estão na presença de Deus, O louvam
e servem) e a cumplicidade das suas missões
– um preside à luta pelo bem, outro se incumbe das mensagens mais
significativas e outro acompanha os homens nas suas tribulações advertindo,
prevenindo e curando – que faz com que a junção dos três na mesma festa litúrgica
faça sentido. Ademais, até faz lembrar as antigas missas solenes, missas de
festa com três padres (um a celebrar, outro a fazer de diácono e outro a
fazer de subdiácono), num tempo
em que na Igreja Latina não havia a concelebração, a não ser na missa de
ordenação sacerdotal e episcopal.
No entanto,
a propósito do dia da festa dos três arcanjos em que o povo ainda acentua a
identidade de São Miguel, apraz-me evocar o dia 29 de setembro de 1979, que diz
diretamente respeito a três personalidades que receberam, nesse dia, a
ordenação presbiteral (o António Lemos, o Armindo Costa Almeida e eu próprio) e uma que recebeu a ordenação diaconal (o Serafim
Rodrigues). Resta continuar a solicitar a
proteção dos arcanjos para que venham em nossa companhia.
***
Por outro
lado, quero fazer uma pequena referência às preces leoninas, atribuídas a Leão
XIII.
Na verdade, a sua origem vem de antes. Com efeito, o Papa Pio IX, cujo
nome todos os movimentos políticos invocavam para fazer valer as suas ideias,
levando os soberanos a dotar os respetivos reinos da Europa Central de uma
Constituição Política – e ele mesmo a deu aos Estados Pontifícios – que obtiveram
a unificação da Itália, libertando-a da tutela da Áustria, perdeu os Estados
Pontifícios e todo o poderio temporal, remetendo-se aos limites vaticanos.
Neste
contexto de progressiva hostilidade, em 1859, dispôs que todos os sacerdotes, nos
ainda territórios pontifícios rezassem de joelhos com o povo, logo a seguir à
celebração da missa, três vezes a Ave-Maria e uma vez a Salve-Rainha seguidas
de uma oração rogando a intercessão dos santos para conjurar os graves perigos
que ameaçavam o poder temporal da Igreja por obra dos sectários. Estes
conduziam, contra o Papa, uma campanha de desprestígio e ódio, a ponto de nos
seus funerais alguém (duramente punido por isso) ter a ousadia de alvitrar o lançamento ao Tibre do
féretro com os seus restos mortais. As preces continuaram a ser rezadas depois
da queda de Roma, pois, o regime surgido com a invasão sardo-piemontesa
empreendeu uma aguerrida política anticlerical.
Em 1884,
Leão XIII renovou o estabelecido pelo seu predecessor de rezar as ditas orações
e tornou-as extensivas a todo o mundo para obter a liberdade da Igreja na Alemanha,
perseguida por Bismarck e seu Kulturkampf.
Após a pacificação com o Reich, o Papa ordenou que as preces pianas se rezassem pela conversão dos
pecadores, no contexto dos conflitos entre patrões e trabalhadores e no do
abandono progressivo da doutrina e disciplina da Igreja por parte de muitos, e
modificou a oração subsequente à Salve-Rainha e acrescentou uma outra em forma
de exorcismo dirigida a São Miguel Arcanjo. Desde então passaram a chamar-se
preces leoninas.
Em 1904, Pio
X acrescentou a tríplice invocação ao Sagrado Coração de Jesus. E Pio XI, que
presenciara de perto os horrores de comunismo quando, antes de ser papa, foi núncio
apostólico na Polónia, estabeleceu que as preces leoninas se oferecessem pela conversão
da Rússia.
A 13 de
outubro de 1884, Leão XIII teve uma visão. Após a celebração da Missa, estava
em consulta com os cardeais sobre certos temas na capela privada do Vaticano,
quando subitamente se detém aos pés do altar e fica imerso numa realidade que
só ele vê. O rosto treme-lhe de horror e impacto. Vai empalidecendo. De
repente, encaminha-se para o seu gabinete privativo levantando a mão a saudar. Seguem-no
e perguntam-lhe o que está a suceder, ao que respondeu: “Que imagens terríveis pude ver e escutar”. E recolheu-se no seu
gabinete de trabalho. Com efeito, vira demónios e ouvira os seus rugidos, as suas
blasfémias, as suas burlas; e a voz terrivelmente esfuziante de Satanás a
desafiar Deus, garantindo que podia destruir a Igreja e levar toda a gente para
o inferno se Ele lhe desse tempo e poder suficientes. Pediu permissão a Deus
para dispor de 100 anos para poder influenciar o mundo como nunca antes pudera
fazer.
Aqui, Leão
XIII pôde compreender que, se o demónio não lograva cumprir o seu propósito no tempo
permitido, sofreria una derrota humilhante. Viu, pois, São Miguel Arcanjo
aparecer e precipitar Satanás no abismo do inferno com as suas legiões.
Meia hora
depois, chamou o Secretário para a Congregação dos Ritos, a quem entregou uma
folha de papel e ordenou que a enviasse a todos os bispos do mundo indicando
que tinha de ser recitada, sob mandato, após cada missa, a oração que ali tinha
escrito, juntamente com as outras orações aos pés do altar que se diziam depois
de cada missa rezada. Eis a razão do exorcismo abreviado composto por Leão
XIII, acrescentado às preces pianas,
que se tornaram leoninas!
***
Nas atuais circunstâncias em que se pretende que a Missa fique desprovida
dos atos piedosos de mera inspiração particular, mesmo que de Papa, e em que se
fez avultar a vertente da participação, a dimensão bíblico-litúrgica e o tom da
eclesialidade, não se vê como conveniente, muito menos com caráter obrigatório,
a retoma das preces leoninas a seguir à missa, até porque a missa não deveria ser
simplesmente rezada quando tem a participação de “povo”, pequena ou alargada.
Porém, nada obsta e talvez possa até ser útil, a critério dos indivíduos e
grupos a retoma das preces leoninas em recitação privada, sobretudo fora da
missa.
Com efeito, a Sacrosanctum Concilium, nos seus números 12 e 13, declara:
“A participação na sagrada Liturgia
não esgota, todavia, a vida espiritual. Na verdade, o cristão, chamado a rezar
em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, como ensina
o Apóstolo, e deve rezar sem cessar. E o mesmo Apóstolo nos ensina a trazer
sempre no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que a sua vida se
revele na nossa carne mortal. É essa a razão por que no Sacrifício da Missa
pedimos ao Senhor que, tendo aceitado a oblação da vítima espiritual, faça de
nós uma ‘oferta eterna’ a si consagrada. (SC 12).
“São, pois, muito de recomendar os
exercícios piedosos do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as
leis e as normas da Igreja, e especialmente quando se fazem por mandato da Sé
Apostólica. Gozam também de especial dignidade as práticas religiosas das
Igrejas particulares, celebradas por mandato dos Bispos e segundo os costumes
ou os livros legitimamente aprovados. Importa, porém, ordenar essas práticas
tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada
Liturgia, de certo modo derivem dela e a ela, que por sua natureza é muito
superior, conduzam o povo”. (SC 13).
Também João
Paulo II, no Regina Caeli, a 24 de abril de 1994, dizia:
“Deus queira que a oração nos fortaleça para a batalha espiritual de que
fala a carta aos Efésios: “Fortalecei-vos no Senhor e na força do Seu poder” (Ef 6,10).
“A essa mesma batalha se refere o livro do Apocalipse, colocando-nos diante
dos olhos a imagem de São Miguel Arcanjo (cf Ap 12,7).
Seguramente tinha muito presente essa cena o Papa Leão XIII quando, no final do
século passado, introduziu em toda a Igreja uma oração especial a São Miguel: ‘São Miguel Arcanjo, defende-nos na batalha
contra os ataques e as ciladas do maligno; sê o nosso baluarte...’. Embora,
na atualidade, essa oração já não se recite no fim da celebração eucarística,
convido-vos a todos a não a esquecer e a rezá-la para obter ajuda na batalha
contra as forças das trevas e contra o espírito deste mundo.”
Mais: nada impede que o bispo na sua diocese possa mesmo fazer incluir em
determinadas ocasiões as preces leoninas, no todo ou em parte, na pós-missa ou na
pós-recitação de hora canónica do Ofício Divino.
Ei-las
em latim:
Ave Maria,
gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus
ventris tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc
et in hora mortis nostrae. Amen.
(ter)
Salve, Regina, mater misericordiae: vita, dulcedo et spes nostra, salve. Ad
te clamamus exsules filii Evae. Ad te suspiramus, gementes et flentes, in hac
lacrimarum valle.
Eia, ergo, advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte.
Et Iesum, benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria. Amen.
V. Ora pro nobis, sancta Dei Genetrix.
R. Ut digni efficiamur promissionibus Christi.
R. Ut digni efficiamur promissionibus Christi.
Oremus. Deus, refugium nostrum et
virtus, populum ad te clamantem propitius respice; et intercedente gloriosa et
immaculata Virgine Dei Genetrice Maria, cum beato Iosepho ejus sponso, ac
beatis Apostolis tuis Petro et Paulo, et omnibus Sanctis, quas pro conversione
peccatorum, pro libertate et exaltatione sanctae Matris Ecclesiae, preces
effundimus, misericors et benignus exaudi. Per eumdem Christum Dominum
nostrum. Amen.
Sancte
Míchael Archangele, defende nos in prǽlio; contra nequitiam et insidias diaboli
esto præsidium. Imperet illi Deus, supplices deprecamur: tuque, Princeps
militiæ cælestis, Satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem
animarum pervagantur in mundo, divina virtute in infernum detrude. Amen.
V. Cor Iesu
Sacratissimum
R. Miserere
nobis.
(ter)
Em Português:
Avé, Maria,
cheia de graça, o Senhor é
convosco, bendita sois vós entre
as mulheres e bendito é o fruto
do vosso ventre, Jesus.
Santa
Maria, Mãe de Deus, rogai por nós
pecadores, agora e na hora da nossa morte. Ámen
(três vezes)
Salvé,
Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!
A Vós
bradamos, os degredados filhos de
Eva. A Vós suspiramos, gemendo e
chorando neste vale de lágrimas.
Eia,
pois, advogada nossa, esses
Vossos olhos misericordiosos a
nós volvei. E, depois deste
desterro, nos mostrai Jesus,
bendito fruto do Vosso ventre.
Ó
clemente, ó piedosa, ó doce
Virgem Maria.
V. Rogai por nós Santa Mãe de Deus
R. Para que sejamos dignos das
promessas de Cristo
Oremos: Deus, nosso refúgio e fortaleza, atendei,
propício, os clamores do vosso povo e pela intercessão da gloriosa e Imaculada
Virgem Maria, Mãe de Deus, de São José, seu esposo, dos bem-aventurados
Apóstolos Pedro e Paulo e de todos os Santos, ouvi, misericordioso e benigno,
as súplicas que do fundo da alma vos dirigimos, pela conversão dos pecadores e
pela liberdade e exaltação da Santa Mãe Igreja. Pelo mesmo Cristo, Nosso
Senhor. Ámen.
São
Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate, sede nosso escudo contra a maldade e
as ciladas do demónio. Subjugue-o Deus, instantemente vo-lo suplicamos; e vós, Príncipe
da Milícia Celeste, pelo divino poder, precipitai no inferno Satanás e os
outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perdição das almas.
Sacratíssimo
Coração de Jesus, tende piedade de nós (3 vezes)
2016.09.29 – Louro de Carvalho
Muito bom o artigo. Parabéns! Irei usar as orações leoninas após a missa a partir de agora.
ResponderEliminarUma dúvida: rezar o anima christi após a missa concede nos uma indulgência parcial?
À recitação do Anima Christi está, sem dúvida, atribuída uma indulgência parcial. As indulgências acopladas a orações e outros atos de piedade não caducam, a não ser as que são concedidas para determinadas celebrações ou períodos celebrativos, as quais não se conseguem (lucram) fora desses períodos e celebrações. Entretanto, com o Concílio Vaticano II, as indulgências parciais não se computam em dias como até então; são apenas e genericamente ditas "indulgência parcial".
EliminarPor favor, onde eu posso encontrar (links), as fontes primárias que me mostrem as razões e motivos que extraíram as orações leoninas ao término da missa? Parabéns pelo excelente texto. Feliz 2020!
ResponderEliminarMarcelo Baglione