É
o tema da riqueza ou do perigo das riquezas que leva o evangelista a inserir no
seu relato evangélico a parábola do rico que se banqueteava lautamente e se
vestia de luxuosas roupas e de Lázaro
pobre, abandonado e chagado (16,19-31) – que só conhecemos através de
Lucas.
É
a segunda das parábolas acerca das riquezas, sendo a primeira a do
administrador infiel, à qual são apostas considerações de caráter moralizante
sobre a postura mais inteligente dos filhos das trevas que a dos filhos da luz
ou sobre a necessidade de fazer amigos com as coisas vãs para que sejamos,
depois, recebidos no Reino. É verdade que Lucas apresenta Jesus a contar uma
outra (12,16-21) a propósito do valor das
riquezas e da excessiva confiança nas mesmas: a colheita fora enorme, alargaria
tulhas e celeiros e dormiria em paz depois de se banquetear e regalar. Morreu na
insensatez acumulando tesouros ante si e o mundo mas sem cuidar da riqueza perante
Deus.
Jesus
dirige-se aos fariseus, que eram amigos do dinheiro (v.14) e troçavam de Jesus, mas
pensavam salvar-se através do minucioso cumprimento da Lei (11,37ss). Este homem rico parece-se
bastante com o administrador infiel (16,1-8a), pois, ambos parecem ter êxito
de momento e ignoram como é perigoso manejar o dinheiro esquecendo os
interesses superiores.
A
parábola ora em questão segue de forma livre um conto egípcio trazido para a
Palestina por judeus de Alexandria, onde era apreciado, passando a ser glosado
pelos rabinos e que Jesus adaptou às ideias que pretendia incutir. A descrição
minuciosa, depois da caraterização das personagens (v.19) tem alguns elementos não
visualizáveis neste mundo (vv. 20-24), mas aduzidos por Lucas para
evidenciar a finalidade da narrativa, assente no contrate das duas personagens
– o rico e o pobre – e duas saídas distintas: o rico, que goza neste mundo,
sofre no outro; ao invés, o pobre, que neste mundo pena, depois vive na
felicidade perpétua. As lições vêm a vv.25-31.
Trata-se
de um género de parábola algo diverso do usual (aliás como a
parábola do rico insensato – vd 12,13-31, já evocada). Jesus traduz na linguagem plástica
da narrativa parabólica a lição que já dera nas bem-aventuranças e nas
correspondentes invectivas do sermão da montanha (vd
6,20-26). Ao invés
do pobre, o rico é condenado por não ouvir os apelos, que lhe vêm do Alto, à
conversão e ao arrependimento e não pela riqueza em si. Ou seja, deixa-se
arruinar pela total fruição dos bens terrenos esquecendo totalmente Deus e todas
as exigências superiores.
Porém,
no atinente à finalidade, são de considerar duas vertentes: a possibilidade da
condenação do rico, já que as riquezas não garantem a salvação (mentalidade
corrente do Antigo Testamento),
comportando a parábola o apelo à conduta moralmente correta na fidelidade à Lei
e a Deus e na prática das boas obras; e a denúncia do mau uso das riquezas, com
o desprezo pelos pobres, sendo que o rico que assim procede não se salva, ao
passo que o pobre, por ser pobre aos olhos de Deus (’ani) e por quem Ele toma partido, se
salva porque se submete à vontade de Deus.
Todavia,
a parábola não acolhe a mera possibilidade; apresenta factos, de condenação e
de salvação. A condenação supõe um mau uso das riquezas, já que estas, em si,
não são boas nem más. A moralidade delas resulta do uso. De igual modo se fala
da pobreza, que não é, em si, nem boa nem má (ou
melhor: é má enquanto degrada o homem, fragilizando-lhe a
vida ou suprimindo-lha),
dependendo da maneira religiosa como se encara. Ora esta narrativa constitui,
do ponto de vista do acolhimento a Deus, um dos melhores comentários às
palavras de Jesus, “Bem-aventurados os
pobres!” (6,20)
e às de Maria, “Encheu de bens os
famintos e mandou os ricos de mãos vazias.” (1,53), e apresenta um elemento
doutrinal de grande valor: a insistência na importância do testemunho de Moisés
dos profetas (v.31)
sobre a existência e o valor de duas sortes distintas no sheol, contrariando a posição dos saduceus e frisando a crença na
outra vida.
Como
crítica à sociedade classista com fosso profundo e extenso entre pobres e
ricos, denuncia o isolamento a que se remete o rico, votando à solidão do
abandono o pobre e propõe a conversão dum e a dignificação de outros. Abrindo o
coração à Palavra, o rico volta-se para o pobre e olhando o pobre poderá voltar-se
para a Palavra. Teremos a transformação social.
***
Vejamos
agora mais detalhadamente o texto.
-
Vestido de púrpura e linho fino (v.
19): Lãs tingidas de
púrpura são de Tiro e são roupas de exterior; e o linho é do Egito e faz as
roupas interiores finas. Um terratenente judeu era um rendeiro de Yahvé. Devia
prestar-lhe contas e não esbanjar os bens.
-
Lázaro (v.
20): É caso único em
que a personagem parabólica tem nome (em hebraico:
’Eli-‘ezer), “Deus é auxílio”).
Alguns manuscritos tardios atribuem nome também ao rico: Nínive e Fíneas.
-
Eram os cães (v.21): É certo que os cães vinham
lamber as feridas a Lázaro, o que hoje nos parece bem. Contudo, é de considerar
que, ao tempo e no mundo bíblico, o cão era visto como animal imundo. Tanto assim
é que são chamados de cães os pagãos, os sodomitas e os escravos (vd
Dt 23,2; Mt 15,26; Ap 22,15)
– pormenor que mostra a situação humilhante e miserável em que vivia o mendigo,
que jazia à porta do rico como o cão, sem entrar. Porém, os cães ainda comiam
os restos que resultavam da limpeza dos pratos do rico e as migalhas que lhe
caíam da mesa, ao passo que a Lázaro até isso era vedado. É grave a cega
indiferença do ricalhaço pela miséria e ansiedade do pobre.
-
Para o seio de Abraão (v.22): Na linguagem
veterotestamentária, “morrer” era significado com a expressão “ir para (ou
juntar-se) aos
pais”. Na literatura posterior aparecem outras perífrases, como: “ir para o pai Abraão”, “ser assumido por Abraão, Isaac e Jacob”,
em que se pensa na vida eterna. Os ditos do Senhor, aqui como noutros lugares,
exprimem estas mentalidades judaicas sem que sejam constitutivos de juízos de
valor sobre a veracidade e objetividade de tais mentalidades. A imagem sugere o
banquete escatológico ou a comunhão íntima com Abraão e com Deus (ideias
da literatura rabínica)
em que se releva o estado de afeição ao Pai dos crentes (e
a Deus). Lázaro foi
ali levado pelos anjos. Na literatura dos mestres não se diz ir para o paraíso, mas ser-se levado para ele pelos anjos –
ideia que se mantém nas antífonas das exéquias.
-
No inferno (v.23): (grego,
hades; hebraico, sheol).
Reino tenebroso do além-túmulo, morada dos mortos. No judaísmo desenvolvido,
pela fé na ressurreição e na retribuição preterterrena, é o lugar da pena dos
malvados e toma a designação de geena.
Henoch fala de setores contíguos – que podem ver-se – para os bons e para os maus,
o que aumenta o sofrimento dos condenados, mas parece implicar que ali permaneçam
até à ressurreição geral e ao juízo final, ideia rabínica pela qual, após as
batalhas apocalípticas da era messiânica, amanheceria para todos a idade que há
de vir, o que não é exato. A Vulgata
traduz de forma inexata que o rico sepultus
est in inferno. Ora “inferno” eram os lugares inferiores donde nada se
avistaria. Por isso, os vocábulos sheol
e hades (ou
a geena) exprimem melhor a ideia.
-
Pai (v.24). Abraão é o pai do povo eleito
(cf
1,73; 3,8) e seus
méritos beneficiam toda a sua descendência a ponto de, segundo a doutrina
rabínica, arrancar do sheol mesmo os
indignos.
-
Filho, lembra-te (v.25): Nesta conclusão abraâmica não
se vê apenas a inversão de sortes a ocorrer na outra vida (o
rico passa de feliz a infeliz e o pobre passa de miserável a bem-aventurado), mas também a cominação da pena
para sempre devido a uma vida passada em satisfações proporcionadas pelas
riquezas da iniquidade e vazia de Deus.
-
Há um grande abismo (v.26). À letra, “está fixado de modo
estável”. É a ideia da eterna inelutabilidade, dependente da disposição divina,
na separação entre a classe dos condenados e a dos bem-aventurados. Trata-se de
lugares intransponíveis e, sobretudo, estados irreversíveis. É o “capricho” do
que é eterno.
-
Peço-te, então… (v.27). Este pedido de recurso destaca
a culpabilidade do rico, que negligenciou a vontade de Deus expressa nas
Escrituras. O rico, perante a iminência do advento do Reino, queria que ao
menos os seus seis irmãos se salvassem. Porém, tal não se consegue pelo envio
de anjo ou de fantasma, de que se foge e/ou em que não se crê. E, na verdade, este
mundo está dotado dos elementos de informação e apelo mais que suficientes para
que os homens se coloquem nos caminhos da salvação.
-
Se um morto ressuscitar (v.31). O caso não é meramente
hipotético. Quando Lázaro, irmão de Maria e de Marta, for chamado à vida por
Jesus, os judeus não vão acreditar (cf Jo 11,47-48), postura semelhante se
verificará aquando da ressurreição do Senhor (cf Mt 28,11-15). É ineficaz a ação miraculosa
se subestimarmos os bens espirituais ante os bens materiais. Porém, não basta o
conhecimento da Lei, que tem de cumprir-se com humilde compunção, mas deve
também ensinar-se que os acontecimentos maravilhosos que vão ocorrer com a
ressurreição dos mortos não salvam automaticamente os homens. Nem o facto de
ter sido enviado o Messias – Jesus Cristo – tocou o íntimo de muitos homens.
***
A
avareza, o luxo e o supérfluo de uns tantos continuam a contrastar
escandalosamente com a miséria, a nudez, a falta de dinheiro, a fome e a
inacessibilidade de mais de dois terços da humanidade, a quem os bens deste
mundo lhe são devidos por direito e não por favor. É este o fardo que pesa
sobre nós.
Hoje
são os atuais apóstolos da Palavra que ajudam a ler a coerência de Jesus e da
Escritura. O milagre por excelência dos novos Moisés e Profetas não é o
prodígio nem a ressurreição, mas a mudança exterior e interior de libertação do
homem e da sociedade e a justiça que lograrem obter. Só a Palavra de Deus
anunciada pelos novos apóstolos e confirmada pelas novas testemunhas – em palavras
e atos, no contexto deste mundo, apreciado de bíblia e jornal na mão – será o
instrumento de revelação, coerência, discernimento, descoberta e acolhimento de
Deus e do seu Cristo, no Espírito. Será o decisivo sinal capaz de fazer nascer
a fé e realizar a conversão total. Para tanto, há que poder e querer contrapor
à visão secularizada do mundo e da vida, a cosmovisão cristã, empapada na palavra
de Deus e alimentada na oração e sacramentos!
Cf Bíblia
Pastoral (Ed. São Paulo, 1993:1421); Lancellotti, Boccali. Comentário a Evangelho de São Lucas
(Vozes, 1979: 164-165); Missal Popular vol I (Gráfica de Coimbra, 5.ª ed.,
1994: 998-999);Nova Bíblia dos Capuchinhos (Difusora Bíblica, 1998: 1706-1707);
Stuhlmueller, Carroll, CP. “Evangelio según san Lucas”, in Comentario Biblico San Jeronimo, Tomo III (Dir. Brown, Raymond
E., SS et alii, Ed Cristiandad, 1971: 383-384); Truchon, Raymond. Para ler as Parábolas (Ed. Perpétuo
Socorro, 1992: 192-195); Tuya, Manuel de, OP. “Evangelios 2.º”, in
Nacar-colunga. Biblia Comentada V
(BAC, 1971:159-161)
2016.09.25 – Louro de Carvalho
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