Decorreu ontem,
1 de setembro, no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça, a sessão solene
de abertura do ano judicial, cerimónia que, este ano, contou com três estreantes: Marcelo
Rebelo de Sousa, Presidente da República, Ferro Rodrigues, Presidente da
Assembleia da República, e Francisca Van Dunnem, Ministra da Justiça. E intervieram
de novo: Joana Marques Vidal (PGR), Elina Fraga (Bastonária da OA) e Henrique Gaspar (Presidente
do STJ).
Escassez de
magistrados
No seu discurso,
a PGR (Procuradora-Geral
da República) Joana
Marques Vidal evocou a “escassez de magistrados” a prejudicar o combate à
criminalidade “económico-financeira e à corrupção”.
Joana Vidal reivindicou
mais meios para o MP (Ministério Público) lutar de forma mais eficaz contra este tipo de criminalidade e sublinhou
que a escassez de magistrados prejudica também “a possibilidade de ensaiar
novos e distintos modelos organizacionais para responder com maior eficácia aos
desafios do combate à criminalidade grave e complexa, à criminalidade
económico-financeira e à corrupção”. No subtexto da sua alocução estarão os
fantasmas dos Vistos Gold e da Operação Marquês como os maiores
exemplos da estratégia assumida por Marques Vidal como tónica do seu mandato da
investigação à criminalidade económico-financeira, com relevo para a luta
contra a corrupção. E, segundo a PGR, a escassez de magistrados do MP implica
“um maior esforço” das equipas atuais e “um ambiente de desmotivação suscetível de poder prejudicar os resultados
positivos que, apesar de tudo, foram alcançados no ano transato”. Não
obstante, não resistiu a comparar o 1.º semestre de 2015 com o semestre
homólogo de 2016, elencando os seguintes resultados:
Passou de 106% para 111% a taxa de resolução processual; aumentou de 21%
para 27% o número de inquéritos em que se reuniram indícios de crime, tendo
prosseguido o exercício da ação penal, quer por acusação quer por suspensão
provisória do processo; foi superior a 80% a taxa de condenações em julgamento;
e aumentou de 55% para 66% o recurso a formas simplificadas do processo; diminuiu
a duração média dos processos de inquérito.
A PGR considerou
ainda a relevância desta cerimónia, pois, além de colocar os diferentes
operadores judiciários a prestar contas à comunidade, constitui “reflexo do
profundo respeito pelos valores constitucionais da independência dos
Tribunais e da autonomia do MP Público como princípios basilares do Estado de
Direito Democrático”. Em particular, sustentou que o
prestígio do MP e a confiança dos cidadãos na Justiça resultam “das respostas
às suas pretensões e às suas queixas, da capacidade de reação do sistema de
justiça à violação dos direitos e à ofensa dos bens e valores juridicamente
protegidos”.
Depois, a
líder do MP relevou a importância que o MP dá à área administrativa e fiscal,
já que esta jurisdição lida com matérias “decisivas e fundamentais no
cumprimento dos direitos dos cidadãos e na legalidade da ação da Administração
e do Estado”. E, no atinente à área de família e menores, teceu críticas à
proposta governamental para alterar a organização judiciária, por temer que se
possa ”traduzir num claro retrocesso”, já que os processos desta jurisdição
podem vir a ser distribuídos a magistrados não especializados:
“Qualquer solução organizativa nesta matéria deve ser encontrada num quadro
que, não descurando a proximidade e a facilidade do acesso do cidadão à
justiça, consagre e desenvolva a especialização, especialização dos tribunais e
especialização dos respetivos magistrados e funcionários. Na esteira, aliás,
das recomendações e deliberações constantes de diversos documentos
internacionais a que Portugal aderiu.
E declarou: “Contrariamente
ao que se ouve dizer, não basta o bom senso!”.
A interdependência dos poderes
Francisca Van Dunem, Ministra da Justiça, sublinhou a “interdependência” entre os diferentes poderes do Estado –
legislativo, executivo e judicial – enfatizando a necessidade de cooperação
entre o poder político e o judicial com vista ao fim comum: uma Justiça de maior qualidade.
Criticando o
mapa judiciário de 2014 por ter insistido numa organização judiciária que esqueceu “áreas territoriais já vulneradas,
privando as respetivas populações de uma presença judicial acessível”,
encareceu a decisão do Governo de Costa de intervir para fomentar “aproximação
da justiça dos cidadãos, em particular nas jurisdições de família e menores e
penal”. E justificou as novas alterações com “estudos geográficos e
demográficos da Nova Information
Management School, da Universidade Nova de Lisboa”, que apontam para
impactos importantes”:
O acesso à jurisdição de família e menores fica facilitado a mais de 880
mil cidadãos, sendo que 178 331 têm idade inferior a 19 anos; e, no penal, as
alterações – circunscritas a julgamentos em tribunal singular – reaproximarão
da justiça cerca de 240 mil cidadãos” – reaproximação com maior expressão nas
comarcas de Bragança, Viseu e Portalegre. Em paralelo, está em curso a revisão
dos estatutos das magistraturas.
A Ministra admitiu
que a “adaptação à reforma judiciária”, aliada ao desequilíbrio no fluxo de
magistrados e oficiais de justiça, debilitante da capacidade de resposta do
sistema, “terá favorecido a manutenção do congestionamento em algumas
jurisdições”. Por isso, “já
foi retomada a regularidade no recrutamento de magistrados”, ficando o
Centro de Estudos Judiciários, já em setembro, “no limite da capacidade
instalada”. E foi reposta a regularidade das situações de substituição em que
exerciam numerosos oficiais de justiça, iniciando-se a “a normalização do
recrutamento, no sentido de reequilibrar o nível de preenchimento do quadro,
gravemente afetado por um fluxo
atípico de aposentações. Para o futuro, a Ministra tem as seguintes preocupações
centrais:
Legislar menos, mas legislar melhor, com mais ponderação da necessidade, melhor
articulação, mais clareza; investir seriamente na formação específica de
magistrados e oficiais de justiça, em segmentos criminais complexos, como a
corrupção, as grandes fraudes, a criminalidade grave nos mercados financeiros e
de valores mobiliários, as formas de violência radicais, na família e na
sociedade; insistir no reforço da capacitação da Polícia Judiciária; e reforçar
o uso da tecnologia.
Elogio à Ministra da Justiça e ao Presidente da República – ataque à máquina
judiciária
A bastonária
da Ordem dos Advogados aproveitou a
sua última intervenção como bastonária na abertura do ano judicial para
criticar a “máquina judiciária”, que está “presa às estatísticas”, “confunde celeridade com
automatismo” e “despreza a presunção da
inocência”.
Elina Fraga
foi dura com “alguns magistrados, que renegam pertencer à família judiciária,
para se integrarem no que se permitiu chamar máquina judiciária”, protestando:
“Não são esses juízes e procuradores que queremos que o Centro de Estudos
Judiciários forme. Nós não queremos
autómatos”.
No contexto
de críticas públicas duras aos procuradores, dominante nos últimos dois anos,
Fraga traçou ainda o que considera ser o perfil ideal:
“Procuradores descomprometidos com os poderes e os interesses, que
investiguem e acusem, num quadro de respeito pelos princípios e valores desse
Estado de Direito, cumprindo os prazos numa manifestação de respeito pela
presunção de inocência”.
A bastonária,
à beira do termo do seu mandato (no próximo ano), emitiu queixas sobre o setor, sobretudo no
respeitante aos meios e na relação da justiça com os cidadãos, mas sobretudo
com as empresas. Dirigindo-se ao poder executivo, a bastonária pediu:
“A reabertura de Tribunais, a
agregação de anteriores comarcas, sempre que a pendência o justifique, a
criação de novas secções especializadas nos concelhos mais afastados das
comarcas ou o desdobramento das já existentes”.
E apontou os
tribunais do trabalho sem meios e dignidade, a gerar sentimento de impunidade dos
empregadores, desalento nos trabalhadores e desigualdade nas relações do
trabalho.
Porém, fez rasgados
os elogios à Ministra da Justiça, atacando, sem nomear (nem era
preciso), antigos governantes:
“Os que quiseram inscrever,
solitária e ambiciosamente, o seu nome na história acabaram por ser os que
redigiram a sua página mais negra. […]. Não fossem os advogados e as
advogadas a garantir o acesso ao direito e aos tribunais todo este sistema
teria desmoronado com a implementação do novo mapa judiciário.”.
Elogiou
Francisca Van Dunem, por não ter legislado “a metro, nem ao quilo, reincidindo
em políticas do passado que valorizavam a produção legislativa, produzindo-se
legislação compulsivamente” e por não ter rasgado anteriores reformas. Contudo,
o elogio e esperança maiores foram as referidas ao Presidente da República por
ter inaugurado “novos tempos” (pessoalmente
não vejo tanto) com “novos
ventos” que “devolvem a confiança nas instituições”.
Contra o “populismo
penal”
Se a PGR porfiou
a luta contra a corrupção, o Presidente
do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) empreende a luta contra o
que “apelida de populismo penal” e as
“perceções construídas na emoção e na desinformação” (nutridas
pela comunicação social) que os
cidadãos têm dos resultados do sistema de justiça. Henriques Gaspar contesta os
“novos mitos sem consistência racional”, que levam a criticar a morosidade da
Justiça, com os resultados seguintes:
“Na última década, de modo consistente, a taxa de resolução e a taxa de
descongestionamento processual têm vindo a melhorar, com valores muito
positivos em 2015 e no primeiro trimestre de 2016, baixando as pendências
processuais (12%); segundo os dados mais recentes, o tempo de duração média na
primeira instância em matéria cível, excluídas as execuções, foi de 17 meses; em
matéria penal, a duração média desde a acusação foi de 10 meses e meio; e, na
justiça laboral verificam-se oscilações no desempenho – média de duração entre
11 meses e 12 meses e meio;”
Porém, o Presidente
do STJ, que representa a liderança do poder judicial, reconhece que nem tudo vai
bem, designadamente, no campo da ação executiva (“consequência agregada de um erro
histórico e genético do modelo e dos efeitos devastadores da crise económica”) que representa cerca de “70% de todo o contencioso”.
Os números são negativos: “indicações empíricas de instâncias centrais
de execução mais significativas apontam para taxas de eficácia de 2% ou 3%”
– valores que exigem reflexão, reflexão que parte dum pressuposto: “a dimensão do problema constitui expressão
de uma economia doente”.
No quadro do
penal, recordou que Portugal, apesar duma “criminalidade moderada” em termos
europeus, tem “paradoxalmente uma das
mais elevadas taxas de encarceramento por 100.000 habitantes e a
maior duração média da permanência na prisão” face aos países da UE.
Ainda sobre
o “populismo penal”, que “compromete
o sentido das perceções e coloca a justiça perante tensões cruzadas, tanto
na compreensão das decisões como na resposta a tentativas de indução ao
unilateralismo através da força da comunicação”, Henriques Gaspar acusa os Media de promoverem uma “adesão emocional, simples e compreensível, a
causas que se acolhem ao sentimento comum, embalada em sedução suave e
retórica e com imenso espaço na comunicação” – o que pode “afetar o sentido da
proporcionalidade e criar o risco ambiental de contaminação da qualidade da
prova”. Por isso, para Gaspar, um “ambiente de unanimismo das emoções, como se tudo estivesse antecipadamente
decidido, pode criar dificuldades à aceitação das decisões dos
tribunais.
O Presidente
do STJ aludiu ainda à “corrosão semântica do crime de corrupção”,
traduzida na “grave e infamante violação do dever sagrado de probidade do
servidor público”; e mencionou “a criminalização, sob o mesmo nome, da
improbidade no setor privado, equiparando interesse público e interesses
privados”, o que “enfraqueceu o peso axiológico do conceito”. Ou seja, Gaspar
discorda da equiparação feita entre o crime de corrupção para ato ilícito aplicável a funcionários públicos ou equiparados e o crime de
corrupção no setor privado.
Finalmente,
abordou as alterações penais conducentes ao alargamento e aumento de pena do
crime de branqueamento de capitais, de que também discorda, ao dizer:
“Também o crime de branqueamento de capitais
perdeu o verdadeiro sentido referencial com o aumento do catálogo e a
diversidade de crimes subjacentes”.
A Justiça como
“condição da confiança”
Também o Presidente
da Assembleia da República, na abertura do ano judicial, alertou para o “défice
de confiança” na sociedade, colocando a Justiça como “condição da confiança” e
esperando que as decisões da justiça sejam “justas e independentes, dentro de
um prazo justo”.
Depois,
sublinhou que “numa República Democrática não há cidadão de primeira e de
segunda; não há quem esteja acima da Lei nem quem seja colocado abaixo da lei”.
Ferro
Rodrigues aproveitou o ensejo para denunciar os custos de contexto com a
burocracia e os associados à morosidade do sistema, pelo que pediu os partidos
com assento parlamentar que se concentrem “no que os une”, para facilitar “a
vida dos nossos cidadãos e às nossas empresas”. E considera que “a reforma do
Estado também passa por pequenas mudanças que, somadas, constituem avanços
importantes, que não aumentam a despesa e que nos podem colocar noutro patamar
de competitividade”. As “pequenas mudanças” a que Ferro aludiu atingem a área
da Justiça, que pode influenciar a competitividade empresarial e a atração do
investimento.
O pacto na
Justiça e a Justiça como prioridade política
Na sua estreia
na abertura solene do ano judicial, o Presidente da República, no discurso mais
aguardado para a efeméride, voltou à fórmula do pacto na Justiça. Mas, desta vez, o “entendam-se” foi dirigido aos
operadores judiciários e não aos partidos. O apelo não é novo, mas é central
nesta fase, segundo o Presidente, que sustenta que um dos principais problemas
da história democrática foi nunca se ter colocado a Justiça como prioridade
política. Assim, considerou ter chegado o tempo “de se deixar de olhar para a
Justiça apenas na sua expressão, importante e insuficiente dos seus sinais
visíveis e se pensar seriamente no combate cultural por ela, sem o que tudo
mais se esboroa, e de se perceber que essa luta não é só dos apelidados
operadores judiciários, denominação tecnocrática dos que gostam de reduzir o
fundamental a visões mecanicistas.” E, contestando a excessiva atenção à
vertente tecnocrática e dizendo que “o primeiro desafio é o cultural”, o
Presidente pretende mudar a perceção que hoje se tem da Justiça para uma
espécie de humanização, mais ligada à realidade de “miséria”. Tal “miséria”, segundo
Marcelo, releva “para a Justiça”, por mais que a queiram reduzir “a direitos
pessoais e políticos”. Deste desafio decorre o da celeridade. A este respeito,
o Presidente questiona a vontade e a sabedoria para a prossecução desta luta,
no contexto “de aceleração dos
acontecimentos e da globalização, das suas causas e efeitos”. Opinando que “a resposta ganharia
em ser o mais vasta e o mais curta possível”, farpou a visão “financista e economista”
do setor:
“Os responsáveis da história podem ser magníficos especialistas na gestão
da moda, mais financista e economicista, mas apetrechados defensores da Justiça
muito provavelmente não serão”.
Concluindo da
ladainha de queixas desfiada pelos oradores que o antecederam, apontou o dedo à
“Justiça lenta, cara e, por isso, classista”, “penalizadora da mudança social e
económica”, “tantas vezes desprovida de meios”. Mercê da sua lentidão, a
Justiça trava a mudança e tem problemas
de morosidade na “cobrança de dívidas”, nos “processos de insolvência e
falências prolongados”, além de falhas na formação e na aplicação de novas
tecnologias.
Os problemas
que os portugueses sentem no quotidiano por efeito das insuficiências do
sistema encontram-se na própria história da democracia. Segundo Marcelo “nunca foi dada prioridade política à Justiça
nos tempos de democracia em Portugal”. Só nos meados da década de 90 é
que surgiu a atenção pública generalizada à Justiça, “mais concretamente à justiça
penal, a mais mediática”. Mesmo, “nos debates políticos pré e pós-eleitorais, a
Justiça nunca entrava nas prioridades cimeiras dos portugueses”, reconheceu
Rebelo de Sousa, que de imediato desafiou:
“O que verdadeiramente importa é saber se e como é possível converter a
Justiça em prioridade política e como é possível ir formalizando de modo mais
sistemático e constante, um ainda que gradual e faseado pacto da justiça”.
E prescreveu
a receita:
“Importa que os parceiros não partidários no mundo da Justiça vão muito
mais longe do que já foram e criem plataformas de entendimento que possam fazer
pedagogia cívica e servir de base ou pelo menos abrir caminho aos partidos
políticos criando condições reforçadas para se associarem à premência de um
pacto de justiça mesmo se delineando por fases ou por áreas.”
Depois de
aludir ao falhado “Pacto da Justiça de 2006”, o Presidente lançou o desafio aos
operadores judiciários em vez de o dirigir apenas aos partidos políticos por
alegadamente ser “mais difícil
esperar que sejam os partidos políticos a encetar esse caminho”, pois os
Governos e os partidos acabam sempre por se ocupar das suas prioridades
programáticas. Mas acautelou:
“Não se trata de substituir o papel constitucional próprio dos órgãos de
soberania e dos partidos políticos, mas de garantir que os parceiros da Justiça
contribuam para a perceção judicial da prioridade da justiça e para permitir
que o labor dos órgãos de soberania seja mais célere e mais eficaz”.
Sobre o teor
do pretenso pacto interoperadores judiciários, pouco disse o Presidente, a não
ser que “importa que os parceiros
não partidários no mundo da justiça vão muito mais longe do que já
foram e criem plataformas de entendimento que possam fazer pedagogia cívica” e
que o Pacto seja “faseado”, “gradual” e feito “por áreas”.
***
O texto
desta reflexão é longo, porque suportado em vários retalhos da imprensa e revelador
de pertinentes segmentos textuais dos vários intervenientes. Neste contexto,
parece-me ser de questionar. Como suportou a PGR a falta meios e a insuficiência
do MP durante tantos anos? Como não vê o Presidente do STJ que o populismo
penal, nutrido pela Comunicação Social, tem origem e acolhimento nos operadores
judiciários? E como consegue o Chefe de Estado, em torno dum pacto de justiça,
subalternizar os partidos frente aos corporativistas operadores judiciários,
que não são melhores – sempre a queixarem-se da falta de meios e a atirar
culpas aos políticos? Porque não sugere, em detrimento de “escritórios”
privados, o reforço das capacidades técnicas nos serviços governamentais e
parlamentares? Ademais, que fizeram as nossas academias do Direito para
induzirem os “poderes” à priorização da Justiça?
2016.09.02 – Louro de Carvalho
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