Ao ler as
várias referências feitas por alguns dos oradores que intervieram no 24.º
Congresso Mariológico Mariano Internacional, com o tema ‘Acontecimento Fátima cem anos depois. História, mensagem e atualidade’,
que decorreu em Fátima de 6 a 11 de setembro sob a presidência do cardeal Dom José
Saraiva Martins, prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos,
lembrei-me da expressão vertida em epígrafe.
Nossa
Senhora, na sua qualidade de Mãe de Jesus, o Verbo (Palavra) de Deus Encarnado, é considerada a morada da
Palavra. Tendo sido a morada da Palavra, porque se fez sua serva, tornou-se sua
testemunha e sua profetisa. Maria é testemunha não só do que viu e ouviu, mas
também do que sentiu em si mesma; e é profetisa, embora silenciosa na maior
parte das vezes, porque a palavra que traz e testemunha vem de Deus, em nome de
Deus e tem caraterísticas de autoridade para falar do passado (“Manifestou o poder do Seu braço e
dispersou os soberbos” – Lc 1,51), do presente (“A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em
Deus meus Salvador” – Lc 1,46-47), do futuro (“Doravante me chamarão ditosa todas as gerações” – Lc 1,48) e por todo o sempre (“A Sua misericórdia se estende geração
em geração sobre aqueles que O temem” – Lc 1,50).
Ela é, pois,
a Senhora da Mensagem, do Evangelho ou Boa Nova: por Ela Se encarnou o excelso
portador da Mensagem do Reino dos Céus. Por isso, mais do que falar da mensagem
da Senhora, será mais conveniente falar da mensagem de Cristo para a qual a
Senhora chama assiduamente a atenção de todos sobretudo a partir dos mais
simples, humildes e pequeninos. E esta Senhora da Mensagem, como testemunha dos
dramas da humanidade, também alerta o Senhor para as carências e misérias dos homens
e dos povos: “Eles não têm vinho” (Jo 2,3). E alerta os homens para necessidade do cumprimento
da vontade divina: “Fazei o que Ele vos
disser” (Jo 2,5). Ora esta assídua atenção e
perspicácia resulta da sua disponibilidade para o serviço da Palavra de Deus
veiculada por um outro mensageiro, o anjo Gabriel, ao qual Ela declarou: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim
segundo a Sua palavra.” (Lc 1,38). E esta
perspicácia alimenta-se da contemplação do olhar orante e com o coração
disponível: “Maria conservava todas estas
coisas, ponderando-as no seu coração” (Lc 2,19)
e “Sua Mãe guardava todas estas coisas no
seu coração” (Lc 2,51). Esta perspicácia consolida-se com
o legado da maternidade de todos os discípulos que Lhe foi outorgado por Cristo
do alto da Cruz – “Disse à mãe: Mulher,
eis o teu filho! E depois disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E, a partir daquela hora o discípulo acolheu-A como
sua.”. E esta perspicácia materna acompanha e apoia os discípulos que esperam a
vinda do Espírito Santo (cf
At 1,14).
***
A primeira
vez que ouvi falar da perspicácia especial da Senhora da Mensagem foi ao Papa
João Paulo II, na homilia da missa de 13 de maio de 1982, em Fátima. Dizia o
Papa que veio da Polónia: “A Senhora da
mensagem parecia ler, com uma perspicácia especial, os ‘sinais dos tempos’, os
sinais do nosso tempo”. E justificava-se:
“Se a Igreja aceitou a mensagem de
Fátima, é sobretudo porque esta mensagem contém uma verdade e um chamamento que, no seu conteúdo
fundamental, são a verdade e o
chamamento do próprio Evangelho. Convertei-vos
(fazei penitência) e acreditai na Boa
Nova (Mc 1,15): são estas
as primeiras palavras do Messias dirigidas à humanidade. E a mensagem de
Fátima, no seu núcleo fundamental, é o chamamento à conversão e à penitência, como
no Evangelho. Este chamamento foi feito nos inícios do século XX e, portanto,
foi dirigido, de um modo particular a este mesmo século.”
Depois,
considera o apelo à penitência como “um apelo maternal”, “enérgico” e “feito
com decisão”, pois a caridade que “se congratula com a verdade” (1Cor 13,6) sabe ser clara e firme”. Por outro lado, o chamamento
à penitência vem unido ao chamamento
à oração. Por isso, em conformidade com a tradição secular – dizia João
Paulo II – “a Senhora da mensagem de Fátima indica o terço – o rosário – que bem se pode definir como ‘a
oração de Maria’, a oração em que Ela se sente particularmente unida connosco”,
pois, “Ela própria reza connosco”. E, “com esta oração do terço se abrangem os
problemas da Igreja, da Sé de Pedro, os problemas do mundo inteiro” e “recordam-se
os pecadores, para que se convertam e se salvem”.
***
Na carta que
endereçou ao seu enviado especial ao susodito Congresso, o Papa Francisco,
atento àquela perspicácia da Senhora, recomendou:
“Falarás da Mãe de
Jesus que avançou pelo caminho da fé e
conservou fielmente a união com o seu Filho até à cruz, junto da qual por
desígnio de Deus se manteve de pé (cf Jo 19,25), sofreu profundamente com o seu
Filho unigénito e associou-se de coração materno ao seu sacrifício (L G 58)
e exortarás todos a renovarem a vida espiritual considerando atentamente as
circunstâncias e as necessidades espirituais deste tempo”.
Neste
contexto da perspicácia materna, para o bispo de Leiria Fátima, Dom António
Marto, Fátima é uma verdadeira chave de leitura dos sinais dos tempos e, por
isso, “merece que lhe seja dedicado um congresso como este”. Referindo-se ao
fenómeno Fátima como “incontornável
na história da igreja e da humanidade”, frisou a importância desta mensagem
para ler os sinais do mundo: “Olhando os
sinais do tempo do século XX, Fátima encontra-se entre os maiores e anuncia na
sua mensagem muitos dos restantes sinais”. E, tendo em conta que, “talvez
só hoje”, passado um século, se está em condições de se compreender “com
maior profundidade a verdade e todo o alcance desta mensagem para a Igreja e
para a humanidade”, fez votos para que o congresso seja um “contributo sério e
válido para o aprofundamento do conhecimento da mensagem de Fátima com um olhar
mais sapiente”.
Na sua
reflexão intitulada “Messaggio di Fátima:
attualità e incidenze”, referiu que “Fátima é um fenómeno que foi revelado
e desenvolvido ao longo da história e tornou-se um ponto de referência e difusão
indispensável para a história da Igreja e da humanidade”. E perorou:
“Este acontecimento tem sido
acompanhado por um forte apelo para não se resignarem à banalidade e
inevitabilidade do mal: é possível vencer o mal, a partir da conversão do
coração a Deus, pela oração e reparação do pecado humano”.
Considerando
que o fenómeno Fátima “abrange todo o século XX”, “possivelmente o século mais
cruel e sangrento da história da humanidade”, sustentou que “é nesta situação
trágica que a Virgem Maria aparece em Fátima com uma ‘visão de paz’ e uma luz
de esperança para a Igreja e para o mundo”. E, neste sentido, declarou:
“O significado da mensagem de Fátima
ainda é válido hoje, exatamente da mesma forma como as profecias bíblicas que
foram escritas num momento específico da história, mas cuja riqueza não parou
naquele momento, mas continuou em aberto para o futuro de Deus e para a
liberdade humana”.
E concluiu:
“Assim, Fátima também tem um
significado permanente: é um símbolo que na verdade sintetiza e reflete os
perigos e riscos do século XX e apela à salvação desses perigos. Nesta
perspetiva, as práticas devocionais caraterísticas de Fátima são um quadro
teológico e espiritual, ligadas por um fio lógico e único”.
Saraiva Martins lembrou a mensagem do Papa sublinhando a
“popularidade” da Mensagem de Fátima, que se apresenta como uma “síntese
do Evangelho”, a apontar o caminho para resolver os “problemas morais” da
humanidade. Neste pressuposto, afirmou que o Santuário e a mensagem das aparições na Cova da Iria devem
ser vistos não só como o altar do mundo
mas como a cátedra do mundo,
apontando caminhos para os problemas da humanidade.
E, na homilia
da missa de encerramento do Congresso promovido pela Pontifícia Academia Mariana Internacional, o celebrante acentuou a
atualidade da mensagem de Fátima do ponto de vista das circunstâncias que o
mundo atravessa e do que deve ser o caminho para as ultrapassar:
“Ela (Nossa Senhora), quando apareceu, previu as contradições da nossa
época e não foi por acaso que apareceu no início de um século marcado por duas
guerras, ideologias materialistas e ateias”.
E,
prosseguindo, denunciou a continuidade da apostasia da fé, que é preciso
superar:
“Até ao presente, continua a apostasia da fé que, progressivamente, comprometeu
e contagiou a Europa cristã que sempre ofereceu ao mundo uma cultura rica em
humanidade, criativa e respeitadora do homem e hoje parece cada vez mais
incapaz de o fazer”.
Com
propriedade o enviado do Papa considera Fátima “uma escola de verdade porque nos defende das fábulas, nos ensina a
encarar a realidade e o coração de Deus”.
***
Por seu
turno, a Irmã Ângela Coelho, religiosa da
Aliança de Santa Maria e postuladora
da causa de Canonização de Francisco e Jacinta e vice-postuladora da causa de
beatificação de Lúcia, considerou que Fátima é “a santidade da pequenez, do
essencial, do quotidiano e da responsabilidade”. Disse-o no quadro da 5.ª
visita temática à exposição temporária do Santuário de Fátima, “Terra e Céu – peregrinos e santos de Fátima”,
à margem deste 24.º Congresso Mariológico Mariano, e assegurando, na
qualidade de congressista, que a santidade “é vivida no quotidiano e na
normalidade das nossas vidas, caso contrário dificilmente será alcançada”.
A predita
visita temática, a 5.ª do conjunto das 6 que o Santuário propõe até outubro, à
exposição temporária, nas 1.as quartas-feiras de cada mês, com entrada
livre, centrou-se no tema da santidade dos e das que, mesmo ainda não tendo
sido proclamados beatos, são conhecidos pela sua fama de santidade. A religiosa
tratou a vida de “alguns peregrinos de Fátima que trilharam esta terra
com um jeito diferente”, porque “os seus olhos viram mais longe, o seu coração
sentiu mais fundo e as suas mãos moveram-se mais generosas”. E ler, com a
linguagem “feita da matéria tangível de algumas peças”, a biografia que estes
peregrinos deixaram inscrita nos caminhos de Fátima foi o desafio deixado por
esta conferencista.
O tema desta eloquente
visita “Fama de santidade: Registos
biográficos inscritos nos caminhos de Fátima” refletiu sobre os santos já
canonizados pela Igreja e sobre os que ainda aguardam a sua palavra definitiva
e que se deixaram iluminar por esta mensagem. Todos “confiaram na Senhora do
Rosário, aprenderam com Ela e agora são nosso modelo de peregrinar até ao Céu”.
Por isso, “os devemos imitar e pedir a sua intercessão”, já que “os santos são
os que desejam Deus de dia e de noite” e “estão disponíveis para fazer o
caminho da montanha, configurando-se com o Senhor crucificado”.
Por sua vez,
o padre Franco Manzi, professor do Seminário Arquidiocesano de Milão “Pio XI”, no
âmbito da sua notável comunicação “O
conteúdo teológico da mensagem de Fátima e sua interpretação”, considerou
que as revelações de Fátima “não são redutíveis a mensagens dadas por Nossa
Senhora e pelo Anjo”. E esclareceu:
“Podemos interpretar o conteúdo das aparições Fátima como um triunfo
contemporâneo da comunicação do Espírito Santo graças à presença de Nossa
Senhora e do Anjo da Paz, que se expressaram através dos três pastorinhos. Aqui
em Fátima, milhares de pessoas deixaram-se atrair, não só através das mensagens de Nossa
Senhora, mas sobretudo pelo testemunho dos três videntes, que vivem de acordo
com Cristo”.
O
conferencista assegurou que as aparições da Cova da Iria “são revelações
privadas de caráter profético através do amadurecimento da fé e da salvação dos
três videntes”, o que “permitiu a edificação e conversão da Igreja Portuguesa e
da Igreja Universal”. Segundo ele, o carisma profético dos pastorinhos, que
eram “crentes em Cristo”, entra no âmbito “mais complexo da assistência do
Espírito Santo à Igreja, que Jesus prometeu nos discursos de Deus”.
O sacerdote
não considera “casual que que o Espírito Santo tenha aparecido a três profetas
e não a um só”, o que mostra a “riqueza pedagógica pela comunhão de vários
membros”. E, evidenciando o significado de cada experiência espiritual dos
videntes. Especificou:
“Na experiência espiritual de Jacinta intui-se uma experiência generosa de
Cristo servo, sofredor e abandonado na Cruz. Na experiência espiritual de
Francisco há uma imitação contemplativa de Cristo escondido e silencioso. Na
experiência longa de Lúcia já se percebe uma imitação persistente de Cristo na
obediência até ao fim à vontade salvífica do Pai”.
Também Salvatore
Perrella, sacerdote da Ordem dos Servos de Maria e diretor da Pontifícia Faculdade
Teológica Marianum, na sua reflexão, considerou as aparições marianas “um dom
oferecido à fé e um desafio à razão”, sendo necessário “respeitar o percurso da
Igreja e dos homens”. E defendeu que “Fátima teve a aparição de Nossa Senhora,
mas quando a Virgem Maria aparece, não vem sozinha, é sempre uma serva do
Senhor”, dado que “Maria aparece-nos através do Evangelho de Deus. É um sinal
de Deus que nos chega através de Maria”.
***
Ora, à
leitura dos sinais dos tempos feita com especial perspicácia pela Senhora da
Mensagem deve corresponder uma igual perspicácia da parte de quem gere a
resposta aos dramas dos homens e dos povos, para que estes a possam assumir na
dignificação da sua vida.
Assim, tem
razão o cardeal Martins quando sustenta que ante a “perda do sentido dos
valores e desorientação das consciências”, a Senhora apresenta “princípios não
negociáveis dos quais se deve partir para uma correta convivência civil e
cristã: a vida, a família, o matrimónio, a união entre um homem e uma
mulher, a caridade concreta e a dignidade pessoal”; ou ao pressupor que
“à silenciosa apostasia da fé, a Virgem propõe a fé em Cristo crucificado”
ensinando-nos “a caminhar bem sobre a terra para que na nossa caminhada brilhe
o céu”.
Por isso, há
que olhar, com olhos de ver, para Fátima que nos “fala de famílias simples,
modestas, mas dignas e capazes de serem solidárias com o próximo” e “da
experiência de crianças bafejadas com a sorte de uma graça imprevista”, mostrando-nos
a seriedade com que “aqueles corações acolheram os pedidos do céu”.
Oxalá que a
reflexão sobre o que Fátima vem sendo ao longo de 100 anos, o que é hoje e o que
se prevê ser no futuro, no dizer do Reitor do Santuário, ajude a “perceber” a
grande atualidade desta mensagem, que tem como elemento fundamental a “paz” e
que permanece revestida “de uma premência incrível” – peculiarmente centrada “na
sensibilidade e na atenção aos outros e às suas necessidades” e comprometida
com a “necessidade de combater a ditadura da indiferença”, como ensina o Papa
Francisco.
2016.09.13 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário