terça-feira, 13 de setembro de 2016

A perspicácia especial da Senhora da Mensagem

Ao ler as várias referências feitas por alguns dos oradores que intervieram no 24.º Congresso Mariológico Mariano Internacional, com o tema ‘Acontecimento Fátima cem anos depois. História, mensagem e atualidade’, que decorreu em Fátima de 6 a 11 de setembro sob a presidência do cardeal Dom José Saraiva Martins, prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos, lembrei-me da expressão vertida em epígrafe.
Nossa Senhora, na sua qualidade de Mãe de Jesus, o Verbo (Palavra) de Deus Encarnado, é considerada a morada da Palavra. Tendo sido a morada da Palavra, porque se fez sua serva, tornou-se sua testemunha e sua profetisa. Maria é testemunha não só do que viu e ouviu, mas também do que sentiu em si mesma; e é profetisa, embora silenciosa na maior parte das vezes, porque a palavra que traz e testemunha vem de Deus, em nome de Deus e tem caraterísticas de autoridade para falar do passado (“Manifestou o poder do Seu braço e dispersou os soberbos” – Lc 1,51), do presente (“A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus meus Salvador” – Lc 1,46-47), do futuro (“Doravante me chamarão ditosa todas as gerações” – Lc 1,48) e por todo o sempre (“A Sua misericórdia se estende geração em geração sobre aqueles que O temem” – Lc 1,50).
Ela é, pois, a Senhora da Mensagem, do Evangelho ou Boa Nova: por Ela Se encarnou o excelso portador da Mensagem do Reino dos Céus. Por isso, mais do que falar da mensagem da Senhora, será mais conveniente falar da mensagem de Cristo para a qual a Senhora chama assiduamente a atenção de todos sobretudo a partir dos mais simples, humildes e pequeninos. E esta Senhora da Mensagem, como testemunha dos dramas da humanidade, também alerta o Senhor para as carências e misérias dos homens e dos povos: “Eles não têm vinho” (Jo 2,3). E alerta os homens para necessidade do cumprimento da vontade divina: “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5). Ora esta assídua atenção e perspicácia resulta da sua disponibilidade para o serviço da Palavra de Deus veiculada por um outro mensageiro, o anjo Gabriel, ao qual Ela declarou: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a Sua palavra.” (Lc 1,38). E esta perspicácia alimenta-se da contemplação do olhar orante e com o coração disponível: “Maria conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração” (Lc 2,19) e “Sua Mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2,51). Esta perspicácia consolida-se com o legado da maternidade de todos os discípulos que Lhe foi outorgado por Cristo do alto da Cruz – “Disse à mãe: Mulher, eis o teu filho! E depois disse ao discípulo: Eis a tua mãe! E, a partir daquela hora o discípulo acolheu-A como sua.”. E esta perspicácia materna acompanha e apoia os discípulos que esperam a vinda do Espírito Santo (cf At 1,14).
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A primeira vez que ouvi falar da perspicácia especial da Senhora da Mensagem foi ao Papa João Paulo II, na homilia da missa de 13 de maio de 1982, em Fátima. Dizia o Papa que veio da Polónia: “A Senhora da mensagem parecia ler, com uma perspicácia especial, os ‘sinais dos tempos’, os sinais do nosso tempo”. E justificava-se:
“Se a Igreja aceitou a mensagem de Fátima, é sobretudo porque esta mensagem contém uma verdade e um chamamento que, no seu conteúdo fundamental, são a verdade e o chamamento do próprio Evangelho. Convertei-vos (fazei penitência) e acreditai na Boa Nova (Mc 1,15): são estas as primeiras palavras do Messias dirigidas à humanidade. E a mensagem de Fátima, no seu núcleo fundamental, é o chamamento à conversão e à penitência, como no Evangelho. Este chamamento foi feito nos inícios do século XX e, portanto, foi dirigido, de um modo particular a este mesmo século.”
Depois, considera o apelo à penitência como “um apelo maternal”, “enérgico” e “feito com decisão”, pois a caridade que “se congratula com a verdade” (1Cor 13,6) sabe ser clara e firme”. Por outro lado, o chamamento à penitência vem unido ao chamamento à oração. Por isso, em conformidade com a tradição secular – dizia João Paulo II – “a Senhora da mensagem de Fátima indica o terço – o rosário – que bem se pode definir como ‘a oração de Maria’, a oração em que Ela se sente particularmente unida connosco”, pois, “Ela própria reza connosco”. E, “com esta oração do terço se abrangem os problemas da Igreja, da Sé de Pedro, os problemas do mundo inteiro” e “recordam-se os pecadores, para que se convertam e se salvem”.
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Na carta que endereçou ao seu enviado especial ao susodito Congresso, o Papa Francisco, atento àquela perspicácia da Senhora, recomendou:
“Falarás da Mãe de Jesus que avançou pelo caminho da fé e conservou fielmente a união com o seu Filho até à cruz, junto da qual por desígnio de Deus se manteve de pé (cf Jo 19,25), sofreu profundamente com o seu Filho unigénito e associou-se de coração materno ao seu sacrifício (L G 58) e exortarás todos a renovarem a vida espiritual considerando atentamente as circunstâncias e as necessidades espirituais deste tempo”.
Neste contexto da perspicácia materna, para o bispo de Leiria Fátima, Dom António Marto, Fátima é uma verdadeira chave de leitura dos sinais dos tempos e, por isso, “merece que lhe seja dedicado um congresso como este”. Referindo-se ao fenómeno Fátima como “incontornável na história da igreja e da humanidade”, frisou a importância desta mensagem para ler os sinais do mundo: “Olhando os sinais do tempo do século XX, Fátima encontra-se entre os maiores e anuncia na sua mensagem muitos dos restantes sinais”. E, tendo em conta que, “talvez só hoje”, passado um século, se está em condições de se compreender “com maior profundidade a verdade e todo o alcance desta mensagem para a Igreja e para a humanidade”, fez votos para que o congresso seja um “contributo sério e válido para o aprofundamento do conhecimento da mensagem de Fátima com um olhar mais sapiente”.
Na sua reflexão intitulada “Messaggio di Fátima: attualità e incidenze”, referiu que “Fátima é um fenómeno que foi revelado e desenvolvido ao longo da história e tornou-se um ponto de referência e difusão indispensável para a história da Igreja e da humanidade”. E perorou:
“Este acontecimento tem sido acompanhado por um forte apelo para não se resignarem à banalidade e inevitabilidade do mal: é possível vencer o mal, a partir da conversão do coração a Deus, pela oração e reparação do pecado humano”.
Considerando que o fenómeno Fátima “abrange todo o século XX”, “possivelmente o século mais cruel e sangrento da história da humanidade”, sustentou que “é nesta situação trágica que a Virgem Maria aparece em Fátima com uma ‘visão de paz’ e uma luz de esperança para a Igreja e para o mundo”. E, neste sentido, declarou:
“O significado da mensagem de Fátima ainda é válido hoje, exatamente da mesma forma como as profecias bíblicas que foram escritas num momento específico da história, mas cuja riqueza não parou naquele momento, mas continuou em aberto para o futuro de Deus e para a liberdade humana”.
E concluiu:
“Assim, Fátima também tem um significado permanente: é um símbolo que na verdade sintetiza e reflete os perigos e riscos do século XX e apela à salvação desses  perigos. Nesta perspetiva, as práticas devocionais caraterísticas de Fátima são um quadro teológico e espiritual, ligadas por um fio lógico e único”.
Saraiva Martins lembrou a mensagem do Papa sublinhando  a “popularidade” da Mensagem de Fátima, que se apresenta como uma “síntese do Evangelho”, a apontar o caminho para resolver os “problemas morais” da humanidade. Neste pressuposto, afirmou que o Santuário e a mensagem das aparições na Cova da Iria devem ser vistos não só como o altar do mundo mas como a  cátedra do mundo, apontando caminhos para os problemas da humanidade.
E, na homilia da missa de encerramento do Congresso promovido pela Pontifícia Academia Mariana Internacional, o celebrante acentuou a atualidade da mensagem de Fátima do ponto de vista das circunstâncias que o mundo atravessa e do que deve ser o caminho para as ultrapassar:
“Ela (Nossa Senhora), quando apareceu, previu as contradições da nossa época e não foi por acaso que apareceu no início de um século marcado por duas guerras, ideologias materialistas e ateias”.
E, prosseguindo, denunciou a continuidade da apostasia da fé, que é preciso superar:
“Até ao presente, continua a apostasia da fé que, progressivamente, comprometeu e contagiou a Europa cristã que sempre ofereceu ao mundo uma cultura rica em humanidade, criativa e respeitadora do homem e hoje parece cada vez mais incapaz de o fazer”.
Com propriedade o enviado do Papa considera Fátima “uma escola de verdade porque nos defende das fábulas, nos ensina a encarar a realidade e o coração de Deus”.
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Por seu turno, a Irmã Ângela Coelho, religiosa da Aliança de Santa Maria e postuladora da causa de Canonização de Francisco e Jacinta e vice-postuladora da causa de beatificação de Lúcia, considerou que Fátima é “a santidade da pequenez, do essencial, do quotidiano e da responsabilidade”. Disse-o no quadro da 5.ª visita temática à exposição temporária do Santuário de Fátima, “Terra e Céu – peregrinos e santos de Fátima”,  à margem deste 24.º Congresso Mariológico Mariano, e assegurando, na qualidade de congressista, que a santidade “é vivida no quotidiano e na normalidade das nossas vidas, caso contrário dificilmente será alcançada”.
A predita visita temática, a 5.ª do conjunto das 6 que o Santuário propõe até outubro, à exposição temporária, nas 1.as quartas-feiras de cada mês, com entrada livre, centrou-se no tema da santidade dos e das que, mesmo ainda não tendo sido proclamados beatos, são conhecidos pela sua fama de santidade. A religiosa tratou a vida de “alguns peregrinos de Fátima  que trilharam esta terra com um jeito diferente”, porque “os seus olhos viram mais longe, o seu coração sentiu mais fundo e as suas mãos moveram-se mais generosas”. E ler, com a linguagem “feita da matéria tangível de algumas peças”, a biografia que estes peregrinos deixaram inscrita nos caminhos de Fátima foi o desafio deixado por esta conferencista.
O tema desta eloquente visita “Fama de santidade: Registos biográficos inscritos nos caminhos de Fátima” refletiu sobre os santos já canonizados pela Igreja e sobre os que ainda aguardam a sua palavra definitiva e que se deixaram iluminar por esta mensagem. Todos “confiaram na Senhora do Rosário, aprenderam com Ela e agora são nosso modelo de peregrinar até ao Céu”. Por isso, “os devemos imitar e pedir a sua intercessão”, já que “os santos são os que desejam Deus de dia e de noite” e “estão disponíveis para fazer o caminho da montanha, configurando-se com o Senhor crucificado”.
Por sua vez, o padre Franco Manzi, professor do Seminário Arquidiocesano de Milão “Pio XI”, no âmbito da sua notável comunicação “O conteúdo teológico da mensagem de Fátima e sua interpretação”, considerou que as revelações de Fátima “não são redutíveis a mensagens dadas por Nossa Senhora e pelo Anjo”. E esclareceu:
“Podemos interpretar o conteúdo das aparições Fátima como um triunfo contemporâneo da comunicação do Espírito Santo graças à presença de Nossa Senhora e do Anjo da Paz, que se expressaram através dos três pastorinhos. Aqui em Fátima, milhares de pessoas deixaram-se  atrair, não só através das mensagens de Nossa Senhora, mas sobretudo pelo testemunho dos três videntes, que vivem de acordo com Cristo”.
O conferencista assegurou que as aparições da Cova da Iria “são revelações privadas de caráter profético através do amadurecimento da fé e da salvação dos três videntes”, o que “permitiu a edificação e conversão da Igreja Portuguesa e da Igreja Universal”. Segundo ele, o carisma profético dos pastorinhos, que eram “crentes em Cristo”, entra no âmbito “mais complexo da assistência do Espírito Santo à Igreja, que Jesus prometeu nos discursos de Deus”.
O sacerdote não considera “casual que que o Espírito Santo tenha aparecido a três profetas e não a um só”, o que mostra a “riqueza pedagógica pela comunhão de vários membros”. E, evidenciando o significado de cada experiência espiritual dos videntes. Especificou:
“Na experiência espiritual de Jacinta intui-se uma experiência generosa de Cristo servo, sofredor e abandonado na Cruz. Na experiência espiritual de Francisco há uma imitação contemplativa de Cristo escondido e silencioso. Na experiência longa de Lúcia já se percebe uma imitação persistente de Cristo na obediência até ao fim à vontade salvífica do Pai”.
Também Salvatore Perrella, sacerdote da Ordem dos Servos de Maria e diretor da Pontifícia Faculdade Teológica Marianum, na sua reflexão, considerou as aparições marianas “um dom oferecido à fé e um desafio à razão”, sendo necessário “respeitar o percurso da Igreja e dos homens”. E defendeu que “Fátima teve a aparição de Nossa Senhora, mas quando a Virgem Maria aparece, não vem sozinha, é sempre uma serva do Senhor”, dado que “Maria aparece-nos através do Evangelho de Deus. É um sinal de Deus que nos chega através de Maria”.
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Ora, à leitura dos sinais dos tempos feita com especial perspicácia pela Senhora da Mensagem deve corresponder uma igual perspicácia da parte de quem gere a resposta aos dramas dos homens e dos povos, para que estes a possam assumir na dignificação da sua vida. 
Assim, tem razão o cardeal Martins quando sustenta que ante a “perda do sentido dos valores e desorientação das consciências”, a Senhora apresenta “princípios não negociáveis dos quais se deve partir para uma correta convivência civil e cristã: a vida, a família, o matrimónio, a união entre um homem e uma mulher,  a caridade concreta e a dignidade pessoal”; ou ao pressupor que “à silenciosa apostasia da fé, a Virgem propõe a fé em Cristo crucificado” ensinando-nos “a caminhar bem sobre a terra para que na nossa caminhada brilhe o céu”.
Por isso, há que olhar, com olhos de ver, para Fátima que nos “fala de famílias simples, modestas, mas dignas e capazes de serem solidárias com o próximo” e “da experiência de crianças bafejadas com a sorte de uma graça imprevista”, mostrando-nos a seriedade com que “aqueles corações acolheram os pedidos do céu”.
Oxalá que a reflexão sobre o que Fátima vem sendo ao longo de 100 anos, o que é hoje e o que se prevê ser no futuro, no dizer do Reitor do Santuário, ajude a “perceber” a grande atualidade desta mensagem, que tem como elemento fundamental a “paz” e que permanece revestida “de uma premência incrível” – peculiarmente centrada “na sensibilidade e na atenção aos outros e às suas necessidades” e comprometida com a “necessidade de combater a ditadura da indiferença”, como ensina o Papa Francisco.

2016.09.13 – Louro de Carvalho

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