domingo, 4 de setembro de 2016

A morte de Maria Isabel Barreno lembra o caso das “três Marias”

Morreu ontem, sábado dia 3 de setembro, em Lisboa, aos 77 anos, a escritora e investigadora Maria Isabel Barreno, como confirmou à agência Lusa a escritora Maria Teresa Horta, sua amiga e coautora, com Maria Velho da Costa, das “Novas Cartas Portuguesas”.
A falecida escritora e investigadora nasceu em Lisboa a 10 de julho de 1939 e concluiu a licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras (da Universidade de Lisboa), após o que se tornou feroz defensora dos direitos das mulheres, ficando para a história como uma das “Três Marias”, nome por que ficou conhecido o processo em que, sob a égide do Estado Novo, foram acusadas pela escrita da obra de alegado “teor pornográfico” em 1971.
Decorridos mais de dois anos, o julgamento, acompanhado de perto pela imprensa internacional, chegou ao seu termo com a absolvição das três escritoras no dia 7 de maio de 1974, já depois da eclosão da Revolução abrilina. E a obra passou a ser encarada não só como um tratado sobre os direitos das mulheres em Portugal mas também como “libelo contra todas as formas de opressão”, como a descreveu a escritora Ana Luísa Amaral em 2010, quando a obra foi reeditada pela Sextante, com anotações suas. Já a Dom Quixote a reeditara em 1998 e 2001.
Isabel Barreno trabalhou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, foi jornalista e Conselheira Cultural para o Ensino do Português em França e publicou 24 títulos, entre romance e investigação na área da Sociologia. Recebeu diversas distinções, entre as quais o Prémio Fernando Namora pelo romance “Crónica do Tempo” (1991), o Prémio Camilo Castelo Branco e o Prémio Pen Club Português de Ficção, pelo livro de contos “Os Sensos Incomuns” (1993). E, em 2004 foi feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Vozes do Vento” foi o último romance que publicou, em 2009, após uma pausa de 15 anos na escrita, durante a qual desenvolveu atividades noutros campos artísticos, nomeadamente as artes plásticas, com várias exposições de desenho e tapeçaria. O tema do romance gira em torno da história dos antepassados do pai em Cabo Verde. Depois, em 2010, editou ainda o livro de contos “Corredores Secretos”, seguido de “Motes e Glosas”.
O seu corpo foi cremado hoje, domingo dia 4, às 17 horas, no cemitério dos Olivais.
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Das referências públicas é de salientar a do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que sustentou ter a obra de Maria Isabel Barreno ido muito além da coautoria das “Novas Cartas Portuguesas”, no início da década de 1970. Em mensagem de pesar e condolências à família publicada no sítio online da Presidência da República, Marcelo recorda que a publicação das “Novas Cartas Portuguesas” foi “um acontecimento que definiu uma época”. E recordou:

Tomando de empréstimo o modelo das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, mas discutindo o mundo português contemporâneo, o livro era a expressão de uma mudança de mentalidades e de uma resistência crítica que a censura mal pôde conter.
O caso – refere o Presidente – “levou às páginas da imprensa internacional as chamadas ´três Marias´: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa”. Todavia “a obra de Isabel Barreno vai muito além das Cartas, salienta o Professor Marcelo, apontando os romances, novelas e contos da autora, que “procuram sempre uma forma de conhecimento da realidade portuguesa”, “conhecimento psicológico e sociológico, empírico e filosófico, em contexto quotidiano e doméstico ou em registo fantástico” e “conhecimento que fundamenta a recusa da dominação das mulheres e da submissão aos Outros legítimos superiores”.
Por seu turno, o Ministro-Adjunto Eduardo Cabrita, que tutela a igualdade de género, em nota à agência Lusa, considerou a morte de Isabel Barreno “uma perda irreparável para a cultura portuguesa e a luta pela igualdade de direitos entre mulheres e homens”, pois “Maria Isabel Barreno foi uma notável investigadora social, uma escritora de causas e uma lutadora pelos direitos das mulheres”. Para o governante,
“Neste momento de tristeza, a melhor homenagem será lembrar o contributo de Maria Isabel Barreno para a mudança da sociedade portuguesa e dar continuidade ao combate pela igualdade de direitos entre mulheres e homens no trabalho, na vida familiar e na participação cívica e política”.
E Luís Filipe Castro Mendes, Ministro da Cultura, numa nota de pesar divulgada pelo seu gabinete, relevou a “voz ativa” de Maria Isabel Barreno na defesa dos direitos das mulheres, ela que nasceu em 1939, “num regime opressor”. Do seu pensamento destaca:
“A riqueza do seu pensamento e o rigor dos seus princípios em muito contribuíram para termos hoje uma sociedade mais justa, livre e igualitária”.
Também a escritora Maria Teresa Horta lamentou a morte de Maria Isabel Barreno, “uma mulher excecional, inteligentíssima, muito culta e leal” a quem ficou ligada desde a escrita, com Maria Velho da Costa, das “Novas Cartas Portuguesas”. Disse Teresa Horta à Lusa:
Nesta altura, que é uma altura de uma grande depressão e de um choque muito grande, o que posso dizer é isto: ela era uma mulher excecional, inteligentíssima, muito culta e muito leal, e que tem uma obra muito importante – ‘A Morte da Mãe’ – que acho que devia ser reeditada rapidamente, já deveria ter sido há muito tempo”.
Depois, frisou:
“Eu escrevi com a Isabel e com a Maria Velho da Costa, escrevemos as três as ‘Novas Cartas Portuguesas’ no tempo do fascismo, e isso agarrou-nos muito, foi uma coisa excecional”.
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“Foi em Lisboa, em maio de 1971, que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – as três Marias – decidiram escrever um livro a seis mãos, as mesmas mãos a que depois se refeririam como as de três ‘aranhas astuciosas’ (vd Barreno / Horta / Costa 2010: 34).
Cada uma das autoras tinha publicado, algum tempo antes, livros vestidos de forte dimensão política, que tinham desafiado, de várias formas, os papéis sociais e sexuais esperados das mulheres. Em Maria Mendes (1969), de Velho da Costa, a protagonista Maria perde a fala, reinventando uma outra, nova; em Os Outros Legítimos Superiores (1970), de Isabel Barreno, é denunciado o silêncio simbólico das mulheres, até pela atribuição do nome genérico ‘Maria’ a todas as personagens femininas; e em Minha Senhora de Mim (1971), de Teresa Horta, a voz poética, claramente identificada como feminina, reivindica para si o direito de falar do corpo, do desejo e da sexualidade da mulher. 
No aludido encontro de maio de 1971, ficou acordado que para a escrita em conjunto as autoras partiriam do romance epistolar Lettres Portugaises, publicado anonimamente por Claude Barbin, em 1669, apresentado como tradução, também anónima, de 5 cartas de amor dirigidas a um oficial francês pela jovem freira enclausurada no convento de Beja Mariana Alcoforado. A autoria das cartas era e é polémica – com a crítica a dividir-se entre a própria Mariana e Gabriel-Joseph de Guilleragues –, mas o impacto que tiveram no século XVII continuou a fazer-se sentir ao longo dos séculos que se seguiram a essa 1.ª publicação. Sujeitas a constantes traduções e reedições em várias línguas, as cartas de amor seriam, 300 anos depois, em 1969, publicadas em edição bilingue pela Assírio & Alvim, com o título de Cartas Portuguesas, em tradução de Eugénio de Andrade – a edição utilizada pelas preditas coautoras. Porém, mais relevante que a autoria de Cartas Portuguesas é o facto de a figura de Mariana ter passado de ‘sombra textual anónima’ para ‘uma identidade pessoal e uma genealogia familiar e nacional, que a configurou (…) como ícone da feminilidade e, aos olhos dos portugueses, da identidade nacional em geral (vd Klobucka 2006:19). O mistério da autoria viria a ser de extrema importância para a receção de Novas Cartas Portuguesas – pois as autoras nunca revelaram quem assinava parcelarmente os textos – desestabilizando as noções fixas de autoria e de autoridade. Também relevante para a conceção de Novas Cartas foi a escolha do título Cartas Portuguesas como texto matricial pelo peso simbólico de que se revestia a figura de Mariana e pela imagem feminina que delas emergia: “o estereótipo da mulher abandonada, suplicante e submissa”, alternando entre a adoração e o ódio e praticando um discurso de paixão avassaladora por aquele que se também apaixonara, mas partira depois para não mais regressar. É a relação de amor e devoção, subserviência e autovitimização que as três autoras, três séculos depois, aproveitando os contornos mais gerais, desmontam e remontam, escaqueirando fronteiras e limites, seja das temáticas, seja da própria linguagem.
À data do predito encontro das coautoras em 1971, Oliveira Salazar já tinha sido substituído por Marcelo Caetano (em 1968) e Salazar tinha falecido em 1970. Entretanto, o governo de Caetano, que anunciara uma abertura política, continuava a praticar a governação ditatorial e repressiva, alheia aos processos de descolonização e das lutas pelos direitos cívicos que haviam eclodido durante toda a década de 60 na Europa e nos EUA. O Governo mantinha teimosamente as ‘províncias ultramarinas’, pelo que, em 1961, eclodira a guerra do Ultramar que havia, até 25 de abril de 1974, mobilizado quase 150 000 homens, na grande maioria jovens. No decurso da escrita de Novas Cartas Portuguesas, naquele ano de 1971, os sentimentos de injustiça e revolta por causa da guerra colonial aumentavam entre os militares e suas famílias. Muitos desertavam. ‘Angola é nossa’, o mote que dominava as manifestações pró regime, não surtia efeito mobilizador num país que, nos últimos 10 anos, vira quase 2 milhões dos seus habitantes atravessar as fronteiras, muitos deles clandestinamente e a arriscar a própria vida, e ir construir bairros de lata em países mais prósperos. Eles iam para a guerra forçados, mas alguns iam com o escopo de ganhar dinheiro para sobreviver no futuro próximo se regressassem vivos e sãos.
A música portuguesa de intervenção protagonizada por Sérgio Godinho e que fora iniciada por José Afonso, já tinha construído o seu caminho em 1971, o mesmo ano em que o país assistia apático ao Festival da Eurovisão com Tonicha a cantar ‘Menina do Alto da Serra’. Fora do país, em janeiro desse ano, ocorrera a 3.ª alunagem, a da nave Apolo 14, e o Vietname do Sul invadia Laos; em abril, meio milhão de norte-americanos manifestava-se, em Washington, contra a guerra do Vietname; em julho, era inaugurada a torre sul do World Trade Center; em outubro, a Assembleia Geral da ONU admitia a República Popular da China; e, em dezembro, Pablo Neruda ganhava o Prémio Nobel da Literatura. 9 meses após maio de 1971, em Lisboa, já no início de 1972, Isabel Barreno, Teresa Horta e Velho da Costa punham termo à escrita de Novas Cartas Portuguesas, escrevendo, em carta penúltima: ‘Em boa verdade vos digo: que continuamos sós mas menos desamparadas’ (vd Barreno / Horta / Costa 2010: 304). E, em abril de 1972, o livro foi publicado, com a chancela dos Estúdios Cor, com direção literária de Natália Correia, que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, insistiu em a publicar na íntegra.
A história que rodeou a publicação e 1.ª receção da obra é conhecida por entrevistas dadas aos jornais, sobretudo por uma das autoras, Maria Teresa Horta. Essa 1.ª edição foi recolhida e destruída pela censura de Caetano, três dias depois do seu lançamento no mercado; o processo judicial foi instaurado às três autoras, por terem escrito, em colaboração, mediante prévia combinação, o livro a que deram o título de Novas Cartas Portuguesas, posteriormente considerado de ‘conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública’; as três autoras foram sujeitas, separadamente, a interrogatórios da PIDE/DGS, na tentativa de se descobrir qual delas havia escrito as partes consideradas de maior atentado à moral, o que as três recusaram revelar; o julgamento iniciou-se a 25 de outubro de 1973 e só não teve desfecho contrário ao que teve, após sucessivos incidentes e adiamentos, devido à Revolução abrilina. 
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Olhar a génese de Novas Cartas Portuguesas, integrada no contexto histórico, político, social e literário do Estado Novo, ajuda a avaliar o seu impacto na sociedade portuguesa pós-abrilina e a sua receção internacional, suscitada pela quase imediata tradução da obra em vários países ocidentais e pela sua proeminente repercussão junto de vários grupos e figuras ligadas ao feminismo internacional ou ao mundo literário. É de recordar que, depois da apreensão do livro e do processo instaurado às três autoras (processo que foi movido pelo próprio Estado), emergiu a solidariedade da comunidade literária e intelectual portuguesa e estrangeira, os protestos e as manifestações em prol da causa das ‘três Marias’, designação com que ficou conhecido o caso.
O processo prolongou-se por dois anos, entre 1972 e 1974, e conheceu vários advogados, de Francisco Sousa Tavares a Salgado Zenha e Duarte Vidal. Conheceu, como se disse, o desfecho a 7 de maio de 1974, já após a Revolução dos Cravos. As rés foram absolvidas. E na fundamentação da decisão do juiz, podia ler-se:
“O livro 'Novas Cartas Portuguesas' não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram”.
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Mais de 40 anos depois, o livro continua ter a sua atualidade. Reescrevendo as cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirmou-se como libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (a denunciar a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de invulgar originalidade e atualidade, do ponto de vista literário e social. Hoje, porém, pode ser lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), dado que resiste à catalogação, ao desmantelar de fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão. Ainda hoje vem ao encontro de questões prementes na agenda política atual, como a feminização da pobreza enquanto obstáculo à promoção da paz e ao desenvolvimento mundial. Pelo seu amplo significado em termos políticos e estéticos, o livro permanece como obra fundamental na literatura e cultura contemporâneas, dando um contributo inestimável para a história das mulheres e para as questões relativas à igualdade e à justiça.

2016.09.04 – Louro de Carvalho

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